Carlos Drummond de Andrade - Receita de Ano-Novo

Drummond, primeiramente, desvela-nos as mil razões pelas quais quase nunca chegamos a concretizar a maioria das intenções a que nos propomos ao final de cada ano, tornando o correr dos dias um fluxo que, no mais das vezes, repete o denso caudal em que enredadas as nossas vidas – “mal vividas ou sem sentido, talvez”.

Ao poeta parece-lhe que um Ano-Novo digno do nome seja questão de merecimento, em decorrência de se haver plantado as “sementinhas do vir-a-ser” no quotidiano, pequenas ou imperceptíveis de início, mas que depois se tornam como hábitos positivos capazes de dar voltas àquilo que nos toca desfavoravelmente, tornando-nos homens e mulheres dignos de sermos reputamos como “novos”, no sentido autêntico da palavra.

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Receita de Ano-Novo

 

Para você ganhar belíssimo Ano-Novo

cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano-Novo sem comparação com todo

o tempo já vivido

(mal vivido talvez ou sem sentido)

para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado

às carreiras,

mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo

até no coração das coisas menos percebidas

(a começar pelo seu interior)

novo espontâneo, que de tão perfeito

nem se nota,

mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha ou

qualquer outra birita,

não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens?

passa telegrama?)

Não precisa

fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido

pelas besteiras consumadas

nem parvamente acreditar

que por decreto da esperança

a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa,

justiça entre os homens e as nações,

liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

direitos respeitados, começando

pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano novo

que mereça este nome,

você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,

mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano-Novo

cochila e espera desde sempre.

 

Traje para a vitória sobre o sol:

o novo homem

(Kazimir S. Malevich: artista russo)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond. Receita de ano-novo. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 83-84.