A ecoar o tom de certas linhas de “A Journey of Magi” (“A Viagem dos Magos”), do anglo-americano T. S. Eliot, o poeta espanhol, nesta seção específica de um longo poema, discorre em tom meio filosófico sobre a verdade, mesmo a justiça, num mundo onde “ambiciosos” e “charlatães” tudo fazem para atropelar a “lei” e a “ordem”.
Verdade abstrata, a seu ver, seria “luxo” desnecessário de sonhadores, mesmo porque, sobre o signo do que é relativo, a verdade acaba sempre por ser violentada pelos astutos, apartados de quaisquer princípios éticos, tendo em vista os interesses em jogo. Daí o motivo de se chegar a um ponto que se pretende meramente resolutivo para questões da vida prática: a verdade enquanto construção de “miúdos” consensos entre as partes. Conclui então Baltasar: “A verdade é um sonho; menos que um sonho, fumaça!”.
A propósito, grimparam-me à mente as ideias do alemão Jürgen Habermas (n. 1929) em “Theorie des Kommunikativen Handelns” (“Teoria do Agir Comunicativo”; 2 v.), de 1981, em cujas páginas embrenha-se o filósofo, prevalentemente, nos meandros do discurso e da condição de sua validez para se chegar a um consenso capaz de sintetizar os pressupostos de verdade – quiçá de justiça –, de correção e de franqueza.
J.A.R. – H.C.
Luis Cernuda
(1902-1963)
La Adoración de los Magos
II
Los Reyes
Baltasar
Como pastores nómadas, cuando hiere la espada
del invierno,
Tras una estrella incierta vamos, atravesando
de noche los desiertos,
Acampados de día junto al muro de alguna ciudad
muerta,
Donde aúllan chacales; mientras, abandonada
nuestra tierra,
Sale su cetro a plaza, para ambiciosos o
charlatanes que aún exploten
El viejo afán humano de atropellar la ley, el
orden.
Buscamos la verdad, aunque verdades en abstracto
son cosa innecesaria,
Lujo de soñadores, cuando bastan menudas
verdades acordadas.
Mala cosa es tener el corazón henchido hasta dar
voces, clamar por la verdad, por la justicia.
No se hizo el profeta para el mundo, sino el dúctil
sofista
Que toma el mundo como va: guerras, esclavitudes,
cárceles y verdugos
Son cosas naturales, y la verdad es sueño, menos
que sueño, humo.
Os três reis magos
(Sydney Goodwin: artista anglo-australiano)
A Adoração dos Magos
II
Os Reis
Baltasar
Como pastores nômades, quando a espada
do inverno golpeia,
Vamos atrás de uma estrela incerta, atravessando
os desertos de noite,
Acampados de dia junto à muralha de alguma
cidade morta,
Onde uivam os chacais; enquanto isso, abandonada
a nossa terra,
Seu cetro sai à praça, para refrear ambiciosos ou
charlatães que ainda ousem explorar
O velho afã humano de atropelar a lei e a ordem.
Buscamos a verdade, ainda que verdades
em abstrato sejam coisas desnecessárias,
Luxo de sonhadores, quando bastam miúdas
verdades consensuais.
Má coisa é estar tão cheio de coração a ponto
de gritar, clamar por verdade, por justiça.
Não se fez o profeta para o mundo, senão
o dúctil sofista
Que toma o mundo tal como ele é: guerras,
escravidões, cárceres e algozes
São coisas naturais, e verdade é um sonho, menos
que um sonho, fumaça.
Referência:
CERNUDA, Luis. La adoración de los magos:
II – Los reyes – Baltasar. In: __________. Antología. Edición de José
María Capote Benot. 12. ed. Madrid, ES: Ediciones Cátedra, 2002. p. 191.
(‘Letras Hispánicas’)
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