Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de maio de 2016

Gonçalves Dias - Não me deixes!

É bastante provável que o poema abaixo transcrito, redigido em 1857, a falar de uma flor debruçada nas águas de um regato, tenha servido de inspiração para o poema, que revela muitos elementos congêneres, intitulado “A Flor e a Fonte” (1902), do paulista Vicente de Carvalho.

A metáfora em relação às pessoas apegadas às coisas do mundo parece-me, à primeira vista, suficientemente clara. Outra hipótese plausível diz respeito à luta por um sentimento amoroso aguçado por experiências anteriores infelizes.

J.A.R. – H.C.

Gonçalves Dias
(1823-1864)

Não me deixes!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava...
“Ai, não me deixes, não!”

“Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!”

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
“Ai, não me deixes, não!”

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
“Ai, não me deixes, não!”

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
                                               “Não me deixaste, não!”

Belas Flores
(Bob Ross: pintor norte-americano)

Referência:

DIAS, Gonçalves. Não me deixes! In: MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 92-93.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Leconte de Lisle - Os Elefantes

É como se estivéssemos na África, numa savana tropical, e presenciássemos a passagem de uma manada de elefantes à nossa frente: ratificaríamos, então, a sua imponência física, seus costumes e instintos.

São criaturas inteligentes que parecem deslocar-se para além de uma simples migração, senão que envoltos numa peregrinação, aparecendo e desaparecendo enigmática e dignamente. Eis aí um representante do poderio animal, com raros predadores, como o próprio homem e, ocasionalmente, o leão. 

J.A.R. – H.C.

Charles Marie René Leconte de Lisle nasceu em 1818. Em 1852 publicou, sob o título de “Poemas Antigos”, o seu primeiro livro, embora já algumas composições tivessem aparecido em revistas. Suas obras poéticas, tais como ele próprio as distribuiu numa edição definitiva, compõem-se de três volumes: “Poemas Antigos”; “Poemas Bárbaros” (1862) e “Poemas Trágicos” (1884). Há ainda uma coleção póstuma intitulada: “Últimos Poemas” (1895). Escreveu, também, para o teatro “Les Erinnyes” e “L’Appolonide”. Pertenceu à Academia francesa, para a qual foi eleito em 1886 na vaga de Victor Hugo. Morreu em 1894 (MILLIET, 1957, p. 78).

Leconte de Lisle
(1818-1894)

Les Éléphants

Le sable rouge est comme une mer sans limite,
Et qui flambe, muette, affaissée en son lit.
Une ondulation immobile remplit
L’horizon aux vapeurs de cuivre où l’homme habite.

Nulle vie et nul bruit. Tous les lions repus
Dorment au fond de l’antre éloigné de cent lieues,
Et la girafe boit dans les fontaines bleues,
Là-bas, sous les dattiers des panthères connus.

Pas un oiseau ne passe en fouettant de son aile
L’air épais, où circule un immense soleil.
Parfois quelque boa, chauffé dans son sommeil,
Fait onduler son dos dont l’écaille étincelle.

Tel l’espace enflammé brûle sous les cieux clairs.
Mais, tandis que tout dort aux mornes solitudes,
Lés éléphants rugueux, voyageurs lents et rudes
Vont au pays natal à travers les déserts.

D’un point de l’horizon, comme des masses brunes,
Ils viennent, soulevant la poussière, et l’on voit,
Pour ne point dévier du chemin le plus droit,
Sous leur pied large et sûr crouler au loin les dunes.

Celui qui tient la tête est un vieux chef. Son corps
Est gercé comme un tronc que le temps ronge et mine
Sa tête est comme un roc, et l’arc de son échine
Se voûte puissamment à ses moindres efforts.

Sans ralentir jamais et sans hâter sa marche,
Il guide au but certain ses compagnons poudreux;
Et, creusant par derrière un sillon sablonneux,
Les pèlerins massifs suivent leur patriarche.

L’oreille en éventail, la trompe entre les dents,
Ils cheminent, l’oeil clos. Leur ventre bat et fume,
Et leur sueur dans l’air embrasé monte en brume;
Et bourdonnent autour mille insectes ardents.

Mais qu’importent la soif et la mouche vorace,
Et le soleil cuisant leur dos noir et plissé?
Ils rêvent en marchant du pays délaissé,
Des forêts de figuiers où s’abrita leur race.

Ils reverront le fleuve échappé des grands monts,
Où nage en mugissant l’hippopotame énorme,
Où, blanchis par la Lune et projetant leur forme,
Ils descendaient pour boire en écrasant les joncs.

Aussi, pleins de courage et de lenteur, ils passent
Comme une ligne noire, au sable illimité;
Et le désert reprend son immobilité
Quand les lourds voyageurs à l’horizon s’effacent.

(Dans: “Poèmes Barbares”, 1862)

Elefante Sedento
(Heila van der Merwe: pintora sul-africana)

Os Elefantes

Mar sem limite – o areal vermelho abrasa e estua
Em seu leito onde o sol raios de ouro espadana.
Ondula, em fumos no ar, sobre a planície nua,
O amplo horizonte onde fervilha a vida humana.

Nenhum rumor. Somente os leões dormem saciados,
Cem léguas em redor, no antro absconso das feras.
Bebe a girafa a água dos veios azulados
Sob as palmeiras – doce asilo das panteras.

Nem um pássaro, um só, num voo de abandono,
Corta com o alfanje da asa o infinito que escalda.
Por vezes a serpente, acordada em seu sono,
Move as escamas lampejantes de esmeralda.

E enquanto o espaço abafa em mormaços violentos
E em tudo pesa a lassidão de um sono incerto,
Os Elefantes vão, rudes viajeiros lentos,
Rumo ao país natal, através do deserto...

De um ponto do horizonte, entre nuvens de poeira,
Mexem-se com vagar, tardos e desconformes...
E em linha regular, – soldados em fileira –
Dunas levam rolando entre as patas enormes.

À frente marcha o velho chefe. Tem o dorso
Áspero. É um tronco exposto ao tempo que o espezinha.
A cabeça é uma rocha; e, num mínimo esforço,
Dobra, crespo e brutal, o arco mole da espinha.

Conservando na marcha um ritmado compasso,
Ele indica o país que o Destino lhes marca...
E, abrindo a areia, os peregrinos, passo a passo,
Seguem passivamente o velho patriarca...

A orelha em leque, a tromba a rolar entre dentes,
Caminham sempre... Os ventres negros lhe latejam;
No ar abrasado o suor sobe, em volutas quentes,
Enquanto, em derredor, milhões de insetos voejam...

Que lhes importa a sede e a inclemência maldita
Do sol de brasas? E o moscardo que os ameaça?
Se eles sonham com a terra encantada onde habita
Entre figueiras, longe, a sua heroica raça?

Verão, a cascatear de altos montes incultos,
O rio em que rolava o hipopótamo a fio...
Onde, em noites de luar, vinham mirando os vultos
N’água, em torno aos juncais, beber a água do rio.

É por todo esse ideal que os enche de saudade,
Que eles cortam o areal longínquo que se explana...
E o deserto retoma a ampla imobilidade
Quando, ao longe, se perde a lenta caravana...

(Em: “Poemas Bárbaros”, 1862)

Referências:

Em Francês

LISLE, Leconte de. Les éléphants. LISLE, Leconte de et al. Anthologie des poètes français du XIXème Siècle: 1818-1841. Tome 2. Paris, FR: Alphonse Lemerre Éditeur, 1888. p. 18-20.

Em Português

LISLE, Leconte de. Os elefantes. Tradução de Olegário Marianno. In: MARIANNO, Olegário (Org.). Traduções selecionadas: antologia de tradutores. Rio de Janeiro, GB: Guanabara Waissman Koogan Ltda., 1932. p. 113-116.

MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957.

domingo, 29 de maio de 2016

William Blake - A Abstração Humana

Neste poema, de “Songs of Experience” (“Canções da Experiência”), Blake argumenta que a razão humana e o pensamento abstrato podem acarretar prejuízos, porque as virtudes que exaltam pressupõem a existência de infortúnios: a comiseração pressupõe a pobreza, enquanto a piedade pressupõe o sofrimento. Segue ele então com um rol de falsas virtudes conexas ao pecado ou ao vício: a paz decorre do medo mútuo, o amor torna-se autocentrado, e a solicitude é o chamariz empregado pela crueldade.

Implícita no poema está uma crítica ao modo pelo qual as pessoas têm desenvolvido uma autêntica camisa de força mental, ou seja, sistemas de pensamento que levaram à construção de estruturas sociais opressivas.

J.A.R. – H.C.

William Blake
(1757-1827)
Pintura de Thomas Phillips

The Human Abstract

Pity would be no more
If we did not make somebody Poor;
And Mercy no more could be
If all were as happy as we.

And mutual fear brings peace,
Till the selfish loves increase:
Then Cruelty knits a snare,
And spreads his baits with care.

He sits down with holy fears,
And waters the ground with tears;
Then Humility takes its root
Underneath his foot.

Soon spreads the dismal shade
Of Mystery over his head;
And the Caterpillar and Fly
Feed on the Mystery.

And it bears the fruit of Deceit,
Ruddy and sweet to eat;
And the Raven his nest has made
In its thickest shade.

The Gods of the earth and sea
Sought thro’ Nature to find this Tree;
But their search was all in vain:
There grows one in the Human Brain.

Cidade dos Anjos
(Ruth Clotworthy: pintora neozelandesa)

A Abstração Humana

Não haveria Dó, com certeza,
Se não criássemos Pobreza,
Tampouco haveria Piedade,
Fosse comum a Felicidade.

O medo mútuo a paz conquista,
Até que cresça o amor egoísta:
A Crueldade tece ardis;
Zelosa, espalha um chamariz.

Ele se senta em medos santos
E rega o chão com seus prantos.
A Humildade então se enraíza
No mesmo solo em que ele pisa.

O Mistério se espalha em penumbra
Até que, a cabeça, lhe cubra:
E a mosca, bem como a Lagarta,
Do doce Mistério se farta.

E ela dá o fruto da Trapaça,
Rubro e doce em sua ameaça.
Seu ninho, o Corvo construiu
Sob seu ramo mais sombrio.

Os Deuses da terra e do mar
Tentaram a Árvore encontrar
Na Natureza, inutilmente,
Pois ela cresce em nossa Mente.

Referência:

BLAKE, William. The human abstract / A abstração humana. In: __________. Canções da inocência e canções da experiência. Tradução, textos introdutórios e comentários de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho. Edição bilíngue comentada. São Paulo, SP: Disal, 2005. Em inglês: p. 123; em português: p. 122.

sábado, 28 de maio de 2016

Wallace Stevens - Mundo sem Peculiaridade

No mundo sem peculiaridade de Stevens, se o poema expressar algo de pessoal do poeta, muito provavelmente abarca o tema de um relacionamento difícil com sua parceira, odiando e expressando frieza ao menor toque, de modo a revelar privações emocionais ou, até mesmo, de ordem sexual.

Ele é o filho inumano de uma Terra que, de fato, desconhece. Tudo o que, à sua volta, é expressão da natureza, torna-se explicável, sob tal perspectiva, somente em função de experiências humanas.

A mortalidade humana faz um paralelo com o ciclo da vida; a memória dos pais já falecidos com a “madureza rubra das folhas redondas”. E, ao fim, depois de um incomodado questionamento, o poema caminha em direção à aceitação das circunstâncias. Então, a Terra deixa de ser um lugar sem sentido, para revelar-se uma morada na qual todas as coisas vêm a se tornar um único ser, “seguro e verdadeiro”.

J.A.R. – H.C.

Wallace Stevens
(1879-1955)

World Without Peculiarity

The day is great and strong −
But his father was strong, that lies now
In the poverty of dirt.

Nothing could be more hushed than the way
The moon moves toward the night.
But what his mother was returns and cries on his breast.

The red ripeness of round leaves is thick
With the spices of red summer.
But she that he loved turns cold at his light touch.

What good is it that the earth is justified,
That it is complete, that it is an end,
That in itself it is enough?

It is the earth itself that is humanity...
He is the inhuman son and she,
She is the fateful mother, whom he does not know.

She is the day, the walk of the moon
Among the breathless spices and, sometimes,
He, too, is human and difference disappears

And the poverty of dirt, the thing upon his breast,
The hating woman, the meaningless place,
Become a single being, sure and true.

Homem e Mulher Contemplando a Lua
(Caspar David Friedrich: pintor alemão)

Mundo Sem Peculiaridade

Grande e forte é o dia –
Mas o seu pai era forte, aquele que agora jaz
Na pobreza da sujeira.

Nada pode ser mais silencioso do que o modo
Como a lua se move em direção à noite.
Porém o que sua mãe foi retorna e chora sobre o seu peito.

A madureza rubra das folhas redondas está repleta
Das especiarias do rubro verão.
Mas ela, a quem ele amou, torna-se fria ao seu leve toque.

Quão bom é que justificada esteja a Terra,
Que esteja completa, que seja um fim,
Que seja suficiente em si mesma?

É a própria Terra que é a humanidade...
Ele é o filho inumano e ela,
Ela é a fatídica mãe, a quem ele não conhece.

Ela é o dia, o percurso da lua
Entre as especiarias ofegantes e, às vezes,
Ele, também, é humano e a diferença se desvanece.

E a pobreza da sujeira, a coisa sobre o seu peito,
A detestável mulher, o lugar sem sentido,
Convertem-se num único ser, seguro e verdadeiro.

Referência:

STEVENS, Wallace. World without peculiarity. In: __________. The collected poems. Eleventh printing. New York, NY: Alfred A. Knopf Inc., feb.1971. p. 453-454.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Bhagavad Gîtâ (Excerto)

O Gîtâ (“Canção de Deus”, em sânscrito) principia antes do clímax da Guerra Kurukshetra, na qual o príncipe Pandava Arjuna se vê assolado por dúvidas no campo de batalha. Percebendo que seus inimigos são os seus próprios parentes, amigos queridos e reverenciados, ele se vira para o seu cocheiro e guia, Krishna, rogando-lhe conselhos. Em resposta à desorientação e ao dilema moral de Arjuna, Krishna o instrui sobre os seus deveres como guerreiro e príncipe, proferindo uma variedade de conceitos filosóficos, vale dizer, atinentes à ciência da autorrealização e da consubstanciação da unidade no divino.

O excerto abaixo traduz o momento exato em que Krishna, a representação da divindade, estimulado pela curiosidade de Arjuna, enuncia-lhe os seus poderes e formas de manifestação neste plano da realidade.

J.A.R. – H.C.

Krishna Instrui Arjuna
(Jadurani Devi Dasi: artista norte-americana)

A Excelência Divina
(Excerto)

(...)

32. De toda a criação, Eu sou o princípio,
o meio e o fim. Das ciências, sou a ciência do
Espírito e o verbo dos oradores.

33. Das letras, sou o A; nas palavras a conjunção.
Eu sou o tempo perdurável e Aquele cuja
face se volta para todas as partes.

34. Eu sou tanto a Morte, que não poupa
a ninguém, como o Renascimento, que dissolve
a Morte. Eu sou a Glória, a Fortuna, a Eloquência,
a Memória, o Juízo, a Força, a Fidelidade,
a Paciência.

35. Entre os cantos, sou o Hino Sublime;
entre os versos, sou o Verso Místico. Entre as
estações, sou a primavera; entre os meses, sou
o mês mais frutífero.

36. Eu sou a sorte entre os jogadores, e o
Esplendor de tudo o que brilha. Eu sou a Valentia
e a Vitória; Eu sou a Bondade dos bons.

37. Eu sou o chefe de grandes tribos e famílias;
Eu sou o Sábio dos sábios, o Poeta dos
poetas, o Bardo dos bardos, o vidente dos videntes,
o Profeta.

38. Para os governadores, sou o Cetro do
poder; entre os estadistas e conquistadores, sou
a Diplomacia e a Política. Sou o Silêncio dos
segredos, e o Saber dos eruditos.

39. Em suma, ó príncipe! Eu sou Aquilo
que é o princípio essencial na semente de todos
os seres e de todas as coisas na Natureza; cada
ser, animado ou inanimado, é por Mim penetrado,
e, sem Mim, nada pode existir nem por um instante.

40. Sem fim são as minhas manifestações
divinas, ó Arjuna! Só exemplos delas te apresentei.
Os meus poderes são infinitos em qualidade
e variedade.

41. Todo ser e toda coisa são o produto
de uma infinitésima porção do meu Poder e
da minha Glória.

42. Mas para que mais minúcias, ó príncipe?
Sabes que Eu sustento todo este universo continuamente,
só com um infinitesimal fragmento de Mim mesmo.

Parthasarathi
(Sriman Pariksit Dasa: artista norte-americano)

Referência:

A excelência divina (excerto). In: BHAGAVAD-GÎTÂ: a mensagem do mestre. Tradução de Francisco Valdomiro Lorens. 22. ed. São Paulo, SP: Pensamento, 2000. p. 115-116.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Carlo Vittorio Cattaneo - Meditação de Narciso

Cattaneo (1941-1996), poeta e escritor, foi tradutor para o italiano de obras de autores portugueses, como Eugénio de Andrade e Jorge de Sena. Com este último trocou inúmeras correspondências entre, sobretudo, 1969 e 1978.

Em sentido contrário, a versão ao português do poema abaixo, de autoria do italiano, é de ninguém menos do que o próprio Jorge de Sena: por meio dela se pode ter contato com uma escrita estribada no lúbrico e no carnal, a recorrer à imaginação e às representações simbólicas para melhor expressar os seus embates intestinos.

J.A.R. – H.C.

Narciso
(Caravaggio: pintor italiano)

Meditação de Narciso

que persigo é beleza? é vaidade
de adormentadas aves antes do escapar
íntimo por pegos onde o olhar se cala
é virgindade de folhas trespassadas por agulhas
e pelos temporais suspensos nos recessos do dia?

é um bosque só em que penetro avanço em símbolos
erecto me revelo como um rubro que engana
das fissuras abertas faço brotar gemas
e a candura opaca jaz em solidão

um eco me absorve e uma ilusão renasço
multímodo nos ritos do morrer – e vi
em cada meu fragmento que lava se adensa
cresta queima torna estéril a secreta estância
de amar e conhecer onde Narciso se ama

qual a injúria? busquei signos e cifras
de perfeição em outros corpos e no voo
a Narciso encontrei e ao eco de Narciso
a fantasia me dilata e me reduz
a uma carne só – prisão ou liberdade?

sei e não sei que importa? uma onda me entrega
ao proibido amplexo o meu rosto
o meu nome o meu sexo – além da morte me amo

Vênus se diverte com o amor e a música
(Ticiano Vecellio: pintor italiano)

Referência:

CATTANEO, Carlo Vittorio. Meditação de Narciso. Tradução de Jorge de Sena. In: SENA, Jorge de (Antologia, tradução, prefácio e notas). Poesia do século XX: de Thomas Hardy a C. V. Cattaneo. Porto, PT: Editorial Inova, 1978. p. 486-487. (Colecção “As Mãos e os Frutos”; v. 14).

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Hilda Hilst - O escritor e seus múltiplos

A poetisa paulista resgata todas as dimensões que um escritor pode assumir em sua labuta, no ato cotidiano de espicaçar a linguagem até os seus limites, assim como ela própria o faz em sua obra “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, na qual se vê um exercício de transgressão e de acinte ao pudor.

Hilst vê esse Caderno Rosa como um bem residual ofertado aos leitores, tal qual um cerimonial de “Potlatch”. E mais: sem receio nem pejo de haver incorrido em erro, pois apenas se pode falar em liberdade se a possibilidade de fracassar estiver inserida nos considerandos.

J.A.R. – H.C.

Hilda Hilst
(1930-2004)

O escritor e seus múltiplos

O escritor e seus múltiplos vêm nos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colocou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra
Poupem-me os desperdícios de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch”.
E hoje, repetindo Bataille:
“Sinto-me livre para fracassar”.

Poema publicado na contracapa da
primeira edição de “Amavisse”
(São Paulo: Massao Ohno, 1989)

Muitos Eus
(Cristina Troufa: artista portuguesa)

Referência:

HILST, Hilda. O escritor e seus múltiplos. In: __________. Uma superfície de gelo ancorada no riso: antologia de Hilda Hilst. Seleção, organização e apresentação de Luisa Destri. São Paulo, SP: Globo, 2012. p. 78