Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 30 de junho de 2018

Jorge de Sena - Retrato de um desconhecido

De um livro de Sena que conjuga fotografias de obras em outros domínios da arte – como a pintura e a escultura – e poemas de sua própria criação, extraí a poesia de hoje, a muito conjecturar sobre as circunstâncias vivenciadas pelo pintor e pelo jovem retratado no quadro que ilustra esta postagem, ambos desconhecidos.

 

Segundo o poeta, o olhar do jovem cavaleiro não teria sido retratado com fidelidade pelo mestre, senão do modo como este o imaginou: pouco importa, contudo, pois se trata de uma “magnífica pintura”, distintamente do que, em suposição, dissera o autor alguns anos depois que a pintara.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge de Sena

(1919-1978)

 

Retrato de um desconhecido

 

Fita-nos, como o pintor pensou,

não como jamais fitou alguém.

Ele próprio se não conheceu nunca

nesse retrato que a família, que os amigos,

sempre acharam todos parecido.

O Mestre, anos depois, que por acaso

viu, sem voltar a ver já o modelo,

o quadro esplêndido, achou pintura má

no que fizera; e não reconheceu

aquele olhar tão vàriamente fundo,

diverso do que, em tintas, punha sobre o mundo.

 

Mas tudo conjectura apenas.

 

Quem era? Qual o nome? Não sabemos

nada, inteiramente nada. A fronte límpida,

a boca que se fecha num desdém tão vago,

os olhos falsamente juvenis, irónicos,

o róseo, o negro, a terra, a leve pincelada

parecem falar. Apenas o parecem. E,

dele, como do Mestre, não sabemos nada.

E quanto à data... a data é muito incerta.

 

Magnífica pintura.  Oh!  Sem dúvida,

de uma importante personagem. Inda

dependeremos desse jovem? Mas quem era?

Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube

naquel’ momento de olhos em que o mundo coube?

 

Lisboa, 28/8/58

 

Retrato do Jovem Cavaleiro

Escola Portuguesa, séc. XVI

Museu Nacional de Arte Antiga (Lisboa)

 

Referência:

 

SENA, Jorge de. Retrato de um desconhecido. In: __________. Metamorfoses, seguidas de Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena e com um posfácio e notas do autor. Lisboa, PT: Livraria Morais Editora, 1963. Pintura: p. 54; texto do poema: p. 55-56. (‘Círculo de Poesia’; v. 28)

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Jack Kerouac - 113º Coro ‎

A voz lírica começa o dia como qualquer outro: levanta-se, veste-se e sai de casa. Faz então o que tem de fazer, fornicar inclusive, para cumprir o ensinamento do “carpe diem”, pois tal é o que a vida naturalmente degustada propõe aos seres sobre a terra: “crescei e multiplicai-vos!”

Contudo Kerouac afirma que há perfeição no vazio, o que significa que qualquer coisa que carreguemos perturba essa perfeição, e não conseguiremos chegar lá. Mas como alcançar esse primado de vacuidade em meio ao burburinho urbano que nos convoca, momento a momento, ao imediatismo e ao hedonismo? Para refletir...

J.A.R. – H.C.

Jack Kerouac
(1922-1969)

113th Chorus

Got up and dressed up
and went out & got laid
Then died and got buried
in a coffin in the grave,
Man –
Yet everything is perfect,
Because it is empty,
Because it is perfect
with emptiness,
Because it’s not even happening.

Everything
Is Ignorant of its own emptiness –
Anger
Doesn’t like to be reminded of fits –

You start with the Teaching
Inscrutable of the Diamond
And end with it, your goal
is your startingplace,
No race was run, no walk
of prophetic toenails
Across Arabies of hot
meaning – you just
numbly don’t get there.

In: “Mexico City Blues” (1959)

Esvazie os ossos de você
(Stefan Fiedorowicz: pintor canadense)

113º Coro

Levantou-se, vestiu-se
e saiu & acasalou
Então morreu e foi encerrado
em um ataúde no túmulo,
Homem –
Ainda assim tudo é perfeito,
Porque vazio,
Porque perfeito
na vacuidade,
Porque sequer está sucedendo.

O que quer que seja
Ignora o seu próprio vazio –
A raiva
Não gosta que lhe recordem os ataques –

Comece com o Ensinamento
Inescrutável e Diamantino
E termine com ele, seu objetivo
é o seu ponto de partida,
Não se percorre páreo algum, incursão
alguma de gadanhos proféticos
Em meio a Arábias de cálido
significado – trôpego assim
dificilmente você há de chegar lá.

Em: “Blues da Cidade do México” (1959)

Nota:

(*). Kerouac faz alusão ao ensinamento contido no texto budista da “Sutra do Diamante”, a que muito se dedicou, sob influência de outra grande figura da “Geração Beat”, a saber, Allen Ginsberg.

Referência:

KEROUAC, Jack. 113th chorus. In: ALLEN, Donald M. (Ed.). The new american poetry. 21st printing. New York, NY: Grove Press Inc.; London, EN: Evergreen Books Ltd., 1960. p. 168.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

André Chénier - A Poesia

Extraído a um longo poema intitulado “L’Invention”, de 1787, este excerto contém passagem essencial da teoria estética defendida por Chénier – que sucumbiu guilhotinado no curso da Revolução Francesa –, por meio do qual pode-se ver como as palavras são conjugadas maravilhosamente para delas se extrair, nas linhas de cada verso, um efeito musical reiterado em rimas parelhas.

A imitação criativa – dizia-o Chénier – não é repetir indefinidamente as mesmas ideias de antigos poetas, senão usar a forma, estrutura e o estilo que eles empregavam para expressar, nos versos, novos pensamentos ou ideias, os quais, por óbvio, não teriam passado pela mente de um Virgílio ou de um Horácio, por exemplo.

J.A.R. – H.C.


André Chénier
(1762-1794)
Retrato de Joseph-Benoît Suvée

La Poésie

 

Seule, et la lyre en main, et de fleurs couronnée,

De doux ravissements partout accompagnée,

Aux lieux les plus déserts, ses pas, ses jeunes pas,

Trouvent mille trésors qu’on ne soupçonnait pas.

Sur l’aride buisson que son regard se pose,

Le buisson à ses yeux rit et jette une rose.

Elle sait ne point voir, dans son juste dédain,

Les fleurs qui trop souvent, courant de main en main,

Ont perdu tout l’éclat de leurs fraîcheurs vermeilles;

Elle sait même encore, ô charmantes merveilles!

Sous ses doigts délicats réparer et cueillir

Celles qu’une autre main n’avait su que flétrir.

Elle seule connaît ces extases choisies,

D’un, esprit tout de feu mobiles fantaisies,

Ces rêves d’un moment, belles illusions,

D’un monde imaginaire aimables visions,

Qui ne frappent jamais, trop subtile lumière,

Des terrestres esprits l’oeil épais et vulgaire.

Seule, de mots heureux, faciles, transparents,

Elle sait revêtir ces fantômes errants...


Alegoria da Poesia
(Carlo Dolci: pintor italiano)

A Poesia

 

Só, e a lira na mão, e de flores coroada,

De um doce enlevo a toda hora acompanhada,

Nos mais ermos confins, seus passos, jovens passos,

Vão tesouros achar, de que não vemos traços.

Quando na árida sarça ela repousa o olhar,

Ri a sarça e uma rosa atira-lhe, a brincar.

Com discreto desdém ela finge não ver

As flores que ali vão, já quase a fenecer,

De mão em mão passando, exânimes, pendidas;

Mas, doce inspiração! por seus dedos colhidas,

Essas que em outras mãos talvez emurchecessem

Renascem com vigor, e logo reflorescem.

Somente ela conhece os êxtases ardentes,

De um espírito em fogo os ideais moventes,

Os sonhos de um momento, as belas ilusões,

De um mundo imaginário alvas aparições

Que, como luz sutil, não podem alcançar

Do espírito terrestre o olho espesso e vulgar.

Só ela sabe, só, com felizes, clareantes

Palavras revestir essas visões errantes...


Referência:

CHÉNIER, André. La poésie / A poesia. Tradução de José Jeronymo Rivera. In: RIVERA, José Jeronymo (Organização e tradução). Poesia francesa: pequena antologia bilíngue. 2. ed., revista e aumentada. Brasília, DF: Thesaurus, 2005. Em francês: p. 54; em português: 55.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

D. Francisco Manuel de Melo - Mundo é comédia ‎

Há quem veja nas experiências do mundo somente drama ou tragédia. Contudo, o poeta português a tudo contempla como se fosse comédia, em cujo contexto os personagens se equipam com máscaras ou, mais amplamente, com vestuário a que se atribui algum sentido, objetivando projetar relevância e distinção, ou de outra forma, status social.

 

Todavia Melo não se deixa enganar: vê por baixo dessas maquinações somente imposturas – e o ar eventualmente sisudo nada diz do que está por trás dessas figuras. Tramoias e tramoias dos que ficam a tanto discursar e a fazer com que tudo se disponha erradamente – a exemplo daqueles que, não muito longe daqui, tomam parte no parlamento deste Pindorama!

 

J.A.R. – H.C.

 

D. Francisco Manuel de Melo

(1608-1666)

 

Mundo é comédia

 

Dez figas para vós, pois com furtado

Consular nome vos chamais Prudência,

Se, fazendo co’o Mundo conferência,

Discursais, revolveis, e eis tudo errado!

 

Quem vos vir, Apetite disfarçado,

Digno vos julgará de reverência,

E a vós, Ódio, por homem de consciência,

Vendo-vos tão sesudo e tão pesado.

 

Dois a dois, três a três, e quatro a quatro,

Entram, de flamas tácitas ardendo,

Astutos Paladiões em simples Troias.

 

Quem enganas, ó Mundo, em teu teatro?

A mim não pelo menos, que estou vendo

Dentro do vestuário estas tramoias.

 

Comediantes Italianos

(Antoine Watteau: pintor francês)

 

Referência:

 

MELO, D. Francisco Manuel de. Mundo é comédia. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Introdução, selecção e notas). Antologia da poesia portuguesa (séc. XII – séc. XX). v. 2: sécs. XVII-XX. Porto: Lello & Irmão, 1977. p. 175.

terça-feira, 26 de junho de 2018

E. E. Cummings - Impressão IX

São bastante dominantes as imagens que o poeta emprega em seu poema para deixarem de ser percebidas pelo leitor: as inversões nas duplas morte e vida, ascender e descender, luz natural do alvorecer e luz de vela ao anoitecer, sonhos do sono e os devaneios poéticos, a vida penosa da cidade e a vida melodiosa e estrelada da mente, e por aí vai.

 

Poemas são como estrelas que a presença ou não da luz natural sobre os céus ocultam ou ressaltam: nesse vai e vem sucessivo de dias e noites, a poesia ora se passa nos sonhos do poeta ora se decanta em poemas que rebrilham no firmamento durante a noite, pois durante o dia somente há espaço para o árduo transcorrer da lida.

 

J.A.R. – H.C.

 

E. E. Cummings

(1894-1962)

 

Impression IX

 

the hours rise up putting off stars and it is

dawn

into the street of the sky light walks scattering poems

 

on earth a candle is

extinguished         the city

wakes

with a song upon her

mouth having death in her eyes

 

and it is dawn

the world

goes forth to murder dreams...

 

i see in the street where strong

men are digging bread

and i see the brutal faces of

people contented hideous hopeless cruel happy

 

and it is day,

 

in the mirror

i see a frail

man

dreaming

dreams

dreams in the mirror

 

and it

is dusk on         earth

 

a candle is lighted

and it is dark.

the people are in their houses

the frail man is in his bed

the city

 

sleeps with death upon her mouth having a song

in her eyes

the hours descend,

putting on stars...

 

in the street of the sky night walks scattering poems

 

Homem na Noite

(Maria Karalyos: pintor romena)

 

Impressão IX

 

As horas emergem apagando as estrelas e é

madrugada

nas ruas do céu a luz caminha a entornar poemas

 

na terra uma vela

se extingue         a cidade

desperta

com uma canção em sua

boca e a morte nos olhos

 

e é madrugada

o mundo

sai para dizimar sonhos...

 

vejo na rua homens

fortes cavando em busca de pão

e observo os rostos brutais de

gente satisfeita medonha desesperançada cruel feliz

 

e já é dia,

 

no espelho

vejo um frágil

homem

a sonhar

sonhos

sonhos no espelho

 

e cai

o crepúsculo         sobre a terra

 

uma vela se acende

na escuridão.

as pessoas abrigam-se em suas casas

o homem frágil está sobre a cama

a cidade

 

adormece com a morte em sua boca e uma canção

nos olhos

as horas imergem,

assentando estrelas...

 

nas ruas do céu a luz caminha a entornar poemas

 

Referência:

 

CUMMINGS, E. E. Impression IX. In: __________. Complete poems: 1904-1962. Edited by George James Firmage. New York, NY: Liveright Publishing Corporation, 1991. p. 67.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Paul Auster - Viático ‎

Se o título muito contém da mensagem que o poema espera denotar, neste caso concreto, estaremos no limite da existência humana, frente a frente com a morte, já moribundos e à espera da extrema unção, esse sagra viático ao qual se atribui poderes para se empreender em estado de graça a última viagem.

 

O título não deve, obviamente, ser tomado em sua literalidade, senão em sua acepção simbólica, pois Auster encontra-se no sítio da representação semítica, onde borbulham as crônicas de um povo obstinado que, onde quer que se encontre, deixa-se levar pelas linhas de força orientadas às pedras e ao muro nesse “país de falta”, às voltas com o não dizível que emerge de um passado, remoto ou recente, de dor e de lamentações.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paul Auster

(n. 1947)

 

Viaticum

 

You will not blame the stones,

or look to yourself

beyond the stones, and say

you did not long for them

before your face

had turned to stone.

In front of you

and behind you, in the darkness

that moves with day, you almost

will have breathed. And your eyes,

as though your life were nothing more

than a bitter pilgrimage

to this country of want, will open

on the walls

that shut you in your voice,

your other voice, leading you

to the distances of love,

where you lie, closer

to the second

and brighter terror

of living in your death, and speaking

the stone

you will become.

 

In: “Wall Writing” (1971-1975)

 

Mar e Rocas

(Vasilij Belikov: pintor russo)

 

Viático

 

Não culparás as pedras,

nem te verás

além das pedras, por dizer

que não esperaste por elas

antes que teu rosto

fosse pedra.

Diante de ti

e atrás, no escuro

que se move com o dia, terás

quase respirado. E teus olhos,

como se tua vida fosse nada mais

que amarga peregrinação

a este país de falta, vão se abrir

para os muros

que te trancam a voz,

tua outra voz, levando-te

às distâncias do amor,

onde restarás, mais perto

do segundo,

e mais claro, terror

de viver em tua morte, e dizendo

a pedra

em que te tornarás.

 

Em: “Escritos na Parede” (1971-1975)

 

Referência:

 

AUSTER, Paul. Viaticum / Viático. Tradução de Caetano W. Galindo. In: __________. Todos os poemas. Edição bilíngue. Tradução e prefácio de Caetano W. Galindo. Introdução de Norman Finkelstein. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2013. Em inglês: p. 144; em português: p. 145.