Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de maio de 2020

Luis Cardoza y Aragón - Recordação

O poeta se autoavalia como sendo um erro de Deus na criação, ou melhor, “um erro consciente do erro de Deus, “uma parábola fracassada” – uma operação de soma ou subtração, pouco importa! –, a começar por ser um homem, transpassado por ceticismos e paixões, a perscrutar dores e, em consequência, sempre a ter o gosto de cinzas nos lábios.

Se fosse mulher, afirma-o, as coisas seriam ainda mais antagônicas: ou estaria encerrada em conventos, haurindo, muito provavelmente, uma educação ascética para a vida, ou seria uma “epicurista”, partindo para o lado mais explicitamente concupiscente da experiência humana – a se considerar a biografia da personagem por ele citada na elucubração – Ninón (v. nota, mais abaixo).

J.A.R. – H.C.

Luis Cardoza y Aragón
(1901-1992)

Recuerdo

Nací con la plena conciencia de que Dios se había equivocado en mí. Yo era una suma (¿o una resta?) mal hecha. Un error consciente del error de Dios. Iba a ser hembra – equilibrio estable – y estoy seguro de que, si no fuese varón, hoy sería una Ninón epicureamente insuperable o estaría ya en las fortificaciones. Soy una parábola fracasada.

(Escéptico y apasionado, un deseo imperioso de buscar el dolor y por todos lados, siempre, un sabor de cenizas. )

O anjo da lareira
(Max Ernst: pintor alemão)

Recordação

Nasci com a plena consciência de que Deus havia se equivocado em mim. Era eu uma soma (ou uma subtração?) malfeita. Um erro consciente do erro de Deus. Ia ser uma fêmea – equilíbrio estável – e tenho certeza de que, se não fosse um varão, hoje seria uma Ninón (*) epicureamente insuperável ou estaria já nos conventos. Sou uma parábola fracassada.

(Cético e apaixonado, um desejo imperioso de buscar a dor e por todos os lados, sempre, um sabor de cinzas.)

Nota:

(*) Estimo que o poeta, de origem guatemalteca, embora radicado por anos a fio no México, esteja a se referir a Ninón Sevilha (1929-2015), uma atriz cubana, mas que, como Aragón, também viveu longamente naquele país. Sobre o lado “epicurista” da atriz, há de se observar que atuou em clássicos do melodrama mexicano, como “Aventureira” (1950), “Vítimas do Pecado” (1951) e “Sensualidade” (1951). Quanto à menção ao intento de encerrar-se em fortificações, decerto consiste na educação enclausurada em conventos – fato biográfico bastante conhecido da vida de Niñon.

Referência:

ARAGÓN, Luis Cardoza y. Recuerdo. In: MIRANDA, Rocío (Ed.). 24 poetas latinoamericanos. 1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 132. (‘Coedición Latinoamericana’)

sábado, 30 de maio de 2020

Gregory Corso - Sem essa palavra

Corso aqui propõe quase um programa de como se deve elaborar as construções poéticas, ou melhor, como ele concebe o que deve ou não ser objeto do poema, e de que forma lançar mão das melhores palavras para produzir efeitos capazes de percutir na mente do leitor e perdurar no tempo, sem oferecer margem ao derrame de linhas com uma imagística banal ou de gosto duvidoso.

Propõe ele que se deva “alongar” as palavras e, desse modo, pode-se conjecturar que esteja a dizer que o autor deve enriquecer o seu vocabulário, ouvindo atentamente o que as outras pessoas dizem e como elas empregam os vocábulos. Pois, sem criatividade e insuficiência de dicção, melhor seria desistir da empreitada, mantendo-se em silêncio, tornando-se hábil em ouvir o que os mais talentosos têm a dizer.

J.A.R. – H.C.

Gregory Corso
(1930-2001)

No word

It is better man a word elongate
and eat up what another spake
for no man is word enough
who complains, to boot,
the word he ate was tasteless tough

It is better man give his diction
become mouthless
It is better
than another man, myself,
heed his restriction

I Know no word that is mine
and I am tired of this
It is better to sew his mouth
dynamite his ears hearless
drown his vocabulary

It is better
his eyes speak and listen as well as see

A biblioteca
(Jacob Lawrence: pintor norte-americano)

Sem essa palavra

É melhor homem soltar longas palavras
e engolir as que um outro fala
pois não é digno homem de palavra
quem ainda por cima reclama
que aquelas que comeu não tinham sal

É melhor homem deixar a fala
e não ter boca
é melhor que alguém, eu mesmo,
repare em sua falta

Não é meu vocábulo
e já estou cheio dos seus.
É melhor costurar-lhe os lábios
cortar as suas orelhas sem ouvidos
queimar o seu dicionário

É melhor
que os seus olhos ouçam e falem além disso.

(Folhetim, 13.02.83)

Referências:

Em Inglês

CORSO, Gregory. No word. In: __________. Gasoline. San Francisco, CA: City Light Books, 1958. p. 47.

Em Português

CORSO, Gregory. Sem essa palavra. Tradução de Décio Pignatari. In: SUZUKI JR., Matinas; ASCHER, Nelson (Organizadores). Folhetim: poemas traduzidos. São Paulo, SP: Folha de São Paulo, 1987. p. 52.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Fernando Paixão - Sá-Carneiro

Nascido também em Portugal, Paixão se reporta aos longos versos decassílabos encontráveis em poemas do poeta lusitano Mário de Sá-Carneiro, padrão de métrica que, por aqui, foi satirizado por Ronald de Carvalho (1893-1935) como “tardos elefantes, movendo a tromba, sob o vivo clarão dos poentes purpurinos”. Para ser exato e não faltar com a verdade, Carvalho mais se dirige aos versos alexandrinos, com doze sílabas poéticas.

Sobre o fascínio pela morte, não há muito mais a ser dito: Sá-Carneiro suicidou-se ao 26 anos incompletos, em 26.4.1916, no Hotel de Nice, em Paris, França. Quanto à tendência de experimentar um ser multifário, não se há de esquecer que Sá-Carneiro teve como um de seus diletos amigos o também poeta – e que poeta! – Fernando Pessoa (1888-1935), a figura prototípica do ser heteronímico.

J.A.R. – H.C.

Fernando Paixão
(n. 1955)

Febre de decassílabos em queda...
Nervos versos
estiram-me o corpo além
da carne exata.
Cavalo enaltecido em rodopios
sou vício de entranhas
verrumante aspereza do desejo.
Ah, morrer... como me fascinas...
Por teus carrosséis de luz
Sou dois: outro a ser em mim
a dor de não ser eu.

Em: “25 azulejos” (1994)

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Referência:

PAIXÃO, Fernando. Sá-Carneiro. In: ASCHER, Nelson et al. Poetas na biblioteca: antologia. São Paulo, SP: Fundação Memorial da América Latina, 2001. p. 136.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

John Updike - Perfeição Desperdiçada

Sem rima ou métrica, este soneto de Updike rende a sensação de que nos tornamos parte de uma história que, antes, já se desenrolara em outro ato, mais especificamente, a morte de alguém muito querido que, provavelmente, atuava em representações cômicas, incapaz de ser substituído, em seus gracejos, piadas ou chistes, por nenhum outro imitador ou descendente.

Família e amigos são testemunhas de nossos pensamentos e sentimentos, preferências e animosidades, gestos engraçados e hobbies, de modo que se tornam hábeis em entrar em sintonia conosco, conhecendo-nos mais de perto: seríamos a estrela de uma peça que somente cada qual se revela competente para representar – nossas vidas – e, quando finamos, a “magia” que nos envolve se desvanece para sempre.

J.A.R. – H.C.

John Updike
(1932-2009)

Perfection Wasted

And another regrettable thing about death
is the ceasing of your own brand of magic,
which took a whole life to develop and market –
the quips, the witticisms, the slant
adjusted to a few, those loved ones nearest
the lip of the stage, their soft faces blanched
in the footlight glow, their laughter close to tears,
their tears confused with their diamond earrings,
their warm pooled breath in and out with your heartbeat,
their response and your performance twinned.
The jokes over the phone. The memories packed
in the rapid-access file. The whole act.
Who will do it again? That’s it: no one;
imitators and descendants aren’t the same.

A melancolia de Maria Madalena
(Artemisia Gentileschi: pintora italiana)

Perfeição Desperdiçada

E outra coisa intolerável sobre a morte
é a cessação de tua própria marca de magia,
que levou uma vida inteira para se desenvolver
e fixar-se no mercado –
os gracejos, os chistes, as pertinentes
mesuras para alguns, aqueles entes queridos
mais próximos
ao cenário, os rostos suaves clareados pelo esplendor
dos refletores, os risos apensos às lágrimas,
as lágrimas confundidas com seus brincos de diamantes,
a cálida respiração sincronizada ao ritmo das batidas
do teu coração,
a resposta deles e tua performance irmanadas.
As piadas pelo telefone. As memórias compactadas
no arquivo de acesso rápido. O ato por inteiro.
Quem o representará de novo? Isso mesmo: ninguém;
imitadores e descendentes não são a mesma coisa.

Referência:

UPDIKE, John. Perfection wasted. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 402.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Allen Ginsberg - Garatuja

O croqui pintado por Ginsberg nas palavras desta “Garatuja” circunscreve-se ao que se difunde da figura de um outro poeta norte-americano pertencente à “Beat Generation” – Kenneth Rexroth (1905-1982) –, de sua imagem cansada (sobrolho, bigode e cabelos brancos) ao seu gosto pela música da francesa Edith Piaf, além do perfil sobremodo polêmico, quer em termos de sua vida acadêmica e profissional, quer em face de sua vida amorosa, com voltas e reviravoltas.

A propósito, as três últimas linhas do poema refletem esse estado de coisas: as cidades por onde Rexroth andou foram muitas – South Bend, Indiana, onde nasceu, Chicago, São Francisco, Santa Bárbara, Nova York, Paris, só para citar algumas –, e muitos os seus relacionamentos amorosos – afinal, Eros, o Deus do amor, foi-lhe muito pródigo e, nem por isso, deixou de pregar-lhe severas peças.

J.A.R. – H.C.

Allen Ginsberg
(1926-1997)

Scribble

Rexroth’s face reflecting human
tired bliss
White haired, wing browed
gas mustache,
flowers jet out of
his sad head,
listening to Edith Piaf street song
as she walks the universe
with all life gone
and cities disappeared
only the God of Love
left smiling

(Berkeley, March 1956)

Um velho barbado
(Rembrandt: pintor holandês)

Garatuja

Rexroth (*), seu rosto refletindo a cansada
bem-aventurança humana
Cabelo branco, sobrolho vincado
bigode tagarela
flores jorrando
da cabeça triste,
ouvindo Edith Piaf e suas canções de rua
enquanto ela passeia com o universo
e toda sua vida que passou
e as cidades que desapareceram
só ficou o Deus do amor
sorrindo

(Berkeley, Março de 1956)

Nota do Tradutor Claudio Willer:

(*) Rexroth – Kenneth Rexroth. O bigode tagarela, a seguir, no original é gassy mustache; gassy é falante, tagarela, mas também, segundo Ginsberg me informou, estaria associado a sua visão de Rexroth parado debaixo de um antigo lampião de rua de gás. Para minha surpresa (pois gosto de seus poemas curtos, como aqueles para Lindsay e Burroughs e este), Ginsberg observou que achava este poema menor (minor). Talvez isso refletisse a relação um tanto ambivalente com Rexroth, que reconheceu a genialidade dos trechos de Vision of Cody que ele lhe havia mostrado, endossou Uivo em termos e detestou as routines, os trechos de Naked Lunch que chegou a ver.

Referências:

Em Inglês

GINSBERG, Allen. Scribble. In: __________. Reality sandwiches: 1953-1960. 26th printings: June 2005. San Francisco, CA: City Lights Books, 1963. p. 59. (Pocket Poets n. 18)

Em Português

GINSBERG, Allen. Garatuja. Tradução Claudio Willer. In: __________. Uivo, kaddish e outros poemas. Tradução, seleção e notas de Claudio Willer. 2. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. p. 222.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Jorge de Lima - Dormes

A bela adormecida contemplada pelo poeta é descrita por atributos que, sob o ponto de vista lógico, são nada factíveis de se apresentarem no plano da realidade, haja vista que antagônicos entre si – muito embora no domínio da inação, do letargo, possam eles irromper da mente inconsciente daquele (ou daquela, como no caso) que se encontra nos braços de Morfeu.

Vejam-se as parelhas: parada, mas andarilha; anjo desnudo, portanto sem sexo, virgem e, paradoxalmente, com prole. Tais imagens, como outras sugeridas pelos versos do soneto, são, em grande medida, desconcertantes para o leitor. Tudo isso só é mesmo possível num sonho com características extremadamente surrealistas. Ou será que os pintores dessa escola não seriam pródigos em trazer às telas aquilo que de mais recôndito existe na mente humana?

J.A.R. – H.C.

Jorge de Lima
(1893-1953)

Dormes

Dormes. Surgem de ti coisas pressagas.
Ó bela adormecida, não tens sexo,
como as algas marítimas que as vagas
jogam na praia em renovado amplexo.

O vendaval é o mesmo em que te apagas
num torvelinho de ímpeto convexo;
dormindo, rodopias, e te alagas
num turbilhão de diálogos sem nexo.

Sonâmbula parada, és a andarilha,
ilhada entre lençóis. Virgem tens prole,
pois és ao mesmo tempo avó, mãe, filha.

E que o sono multíparo te viole,
anjo desnudo, salamandra de asas
ressuscitada de dormidas brasas.

Em: “Livro de Sonetos” (1949)

A ninfa adormecida e cupido
(John Hoppner: pintor inglês)

Referência:

LIMA, Jorge de. Dormes. In: __________. Antologia poética. Seleção e posfácio de Fábio de Souza Andrade. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2014. p. 167.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Álvaro Mutis - Cada poema

Numa poética trôpega de tantas abstrações, sob a forma de uma litania em anáforas, o poeta colombiano discorre sobre o poema, tentando defini-lo metaforicamente com imagens que exprimem o lado menos jubiloso do mundo – ou mesmo o seu desconcerto –, a infundir um “lento naufrágio do desejo”, a muito se parecer com um pássaro em fuga da morte, a quem, irremissivelmente, se instila o “acre cereal da agonia”.

Cabe uma breve observação: ao findar a versão deste poema ao português, encontrei uma bela tradução do mesmo poema, levada a efeito pelo ensaísta e tradutor Geraldo Holanda Cavalcanti, da Academia Brasileira de Letras, acessível neste endereço (p. 292-295 do doc.). Nota-se o lado “poeta” de Geraldo na tradução, vertendo belamente o texto original ao nosso idioma – distintamente da versão que ora apresento, mais próxima do literal.

J.A.R. – H.C.

Álvaro Mutis
(1923-2013)

Cada poema

Cada poema un pájaro que huye
del sitio señalado por la plaga.

Cada poema un traje de la muerte
por las calles y plazas inundadas
en la cera letal de los vencidos.

Cada poema un paso hacia la muerte,
una falsa moneda de rescate,
un tiro al blanco en medio de la noche
horadando los puentes sobre el río,
cuyas dormidas aguas viajan
de la vieja ciudad hacia los campos
donde el día prepara sus hogueras.

Cada poema un tacto yerto
del que yace en la losa de las clínicas,
un ávido anzuelo que recorre
el limo blando de las sepulturas.

Cada poema un lento naufragio del deseo,
un crujir de los mástiles y jarcias
que sostienen el peso de la vida.

Cada poema un estruendo de lienzos que derrumban
sobre el rugir helado de las aguas
el albo aparejo del velamen.

Cada poema invadiendo y desgarrando
la amarga telaraña del hastío.

Cada poema nace de un ciego centinela
que grita al hondo hueco de la noche
el santo y seña de su desventura.

Agua de sueño, fuente de ceniza,
piedra porosa de los mataderos,
madera en sombra de las siemprevivas,
metal que dobla por los condenados,
aceite funeral de doble filo,
cotidiano sudario del poeta,
cada poema esparce sobre el mundo
el agrio cereal de la agonía.

O cemitério abandonado
(Yuliy Yulevich: pintor russo)

Cada poema

Cada poema um pássaro que foge
do local atingido pela praga.

Cada poema um indumento da morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera letal dos vencidos.

Cada poema um passo em direção à morte,
uma falsa moeda de resgate,
um tiro ao alvo no meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio,
cujas adormecidas águas viajam
da velha cidade até os campos
onde o dia prepara suas fogueiras.

Cada poema um toque hirto
do que jaz na mesa de autópsia das clínicas,
um ávido anzol que percorre
o limo macio das sepulturas.

Cada poema um lento naufrágio do desejo,
um ranger dos  mastros e cordames
que sustentam o peso da vida.

Cada poema um estrondo de telas que desabam
sobre o rugir gelado das águas
o alvo aparelho do velame.

Cada poema invadindo e dilacerando
a amarga teia do fastio.

Cada poema nasce de um sentinela cego
que grita ao oco profundo da noite
a palavra chave de sua desventura.

Água de sonho, fonte de cinza,
pedra porosa dos abatedouros,
madeira à sombra das sempre-vivas,
sino que dobra pelos condenados
óleo funeral de fio duplo,
sudário cotidiano do poeta,
cada poema esparge sobre o mundo
o acre cereal da agonia.

Referência:

MUTIS, Álvaro. Cada poema. In: MIRANDA, Rocío (Ed.). 24 poetas latinoamericanos. 1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 65-66. (‘Coedición Latinoamericana’)

domingo, 24 de maio de 2020

Egito Gonçalves - O Anjo do Relógio - Chartres

O Anjo do Relógio de Sol” (“L’Ange du Meridién”), um clássico soneto, é o primeiro do grupo de seis poemas de Rilke, dedicados a capturar “insights” suscitados pela Catedral de Chartres, localizada em França – por este visitada em janeiro de 1906 –, servindo como um tipo de prelúdio aos demais poemas, modulando-lhes o tom. A propósito, na imagem abaixo postada, pode-se ver o aludido anjo de pedra e o seu ostensivo sorriso.

É a esse soneto que faz alusão, de início, o poeta lusitano, bem assim às idiossincrasias que, fomentadas pelo anjo, Rilke as plasmou em seus versos. Na segunda estrofe, contudo, há uma inflexão, eis que o sorriso do anjo, na visão de Gonçalves, sucumbiu por força da tempestade que desabou sobre a Catedral, deixando órfão o poema. Ou terá sido o anjo que, com suas frágeis asas, tentara romper com a escala do tempo? – pergunta-se Gonçalves.

J.A.R. – H.C.

Egito Gonçalves
(1920-2001)

O Anjo do Relógio / Chartres

Ainda o vi, o anjo do relógio. Era como Rilke
nos dissera: nada sabia do nosso ser,
sorria no seu pétreo resplendor, apenas
segurando a mensagem da sombra
que obedecia à convenção das horas. Asas curtas
nos ombros, demasiado curtas
para o voo, para qualquer viagem...

Na segunda vez já não estava. O sorriso
estatelara-se
no solo. Rilke saberia já da tempestade
que assaltaria a forte catedral
para deixar o poema solitário?
Ou o anjo
tentara com as suas asas frágeis
quebrar o tempo, o cansaço das horas
negadas às estrelas?

Em: “E no entanto move-se” (1995)

Anjo com um relógio de sol
na fachada da Catedral de Chartres

Referência:

GONÇALVES, Egito. O anjo do relógio / Chartres. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 110.

sábado, 23 de maio de 2020

Claude McKay - A Dançarina do Harlem

Por trás de toda a vulgaridade numa cena de mulheres seminuas, dançando num cabaré, sempre há um sentido oculto que muitas vezes não é observado pelos presentes: a infelicidade de algumas dessas mulheres, que ali estão em corpo, esboçando um falso sorriso, mas, em espírito, encontram-se a quilômetros de distância, lucubrando sobre cenários alternativos e não tão ordinários.

É disso que McKay, poeta negro norte-americano, trata neste soneto, quando se detém a analisar o comportamento de uma dançarina no Harlem, um bairro com presença majoritária de residentes afrodescententes, em Nova Iorque (EUA): no poema, defende-se a ideia de que se deve procurar por um significado mais profundo em todas as coisas, em vez de aceitar qualquer estereótipo que se nos afigure à primeira vista.

J.A.R. – H.C.

Claude McKay
(1889-1948)

The Harlem Dancer

Applauding youths laughed with young prostitutes
And watched her perfect, half-clothed body sway;
Her voice was like the sound of blended flutes
Blown by black players upon a picnic day.
She sang and danced on gracefully and calm,
The light gauze hanging loose about her form;
To me she seemed a proudly-swaying palm
Grown lovelier for passing through a storm.
Upon her swarthy neck black, shiny curls
Profusely fell; and, tossing coins in praise,
The wine-flushed, bold-eyed boys, and even the girls,
Devoured her with their eager, passionate gaze;
But, looking at her falsely-smiling face
I knew her self was not in that strange place.

Dança da mulher nua: Gret Palluca
(Ernst L. Kirchner: pintor alemão)

A Dançarina do Harlem

Rodeados por jovens messalinas, os rapazes riam, aplaudiam
E observavam o seu corpo perfeito, meio vestido, balançar;
Sua voz semelhava-se ao som harmônico de pífanos,
Soprados por flautistas negros em dia de convescote.
Ela cantava e dançava com graciosidade e calma,
A leve malha pendendo solta sobre a sua forma;
Para mim, parecia uma palmeira altivamente oscilante,
Ainda mais adorável por subsistir a uma tormenta.
Sobre o seu trigueiro colo negro, cachos brilhantes
Rolavam profusamente; e, lançando moedas em ovação,
Os jovens, com os olhos afoitos e corados pelo vinho, e até as moças,
Devoravam-na com um olhar ansioso e apaixonado;
Mas, ao observar o seu rosto falsamente sorridente,
Eu percebia que ela mesma não estava naquele estranho lugar.

Referência:

McKAY, Claude. The Harlem dancer. In: DOVE, Rita (Ed.). The penguin anthology of twentieth century american poetry. New York, NY: Penguin Books, 2013. p. 93-94.