Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 21 de maio de 2024

Michel Deguy - Lembrete (Primeira seção)

Por intermédio de meia dúzia de dísticos sentenciosos, o poeta francês dá início a um “Lembrete” em quatro seções, um dos quais – nomeadamente o segundo – muito se assemelha à derradeira proposição do “Tractatus Logico-Philosophicus”, de Wittgenstein (1889-1951), a saber – “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar” –, com a distinção de que Deguy não sugere o silêncio do filósofo austríaco, mas o exercício da escrita.

 

Tomada por si só a seção, dela se depreendem os elementos à volta da iniciativa poética, da lírica enquanto forma primordial de se apreender, por indução ou dedução, por paridade e diferenciação, um mundo do qual, absolutamente, não há como se conhecer todos os padrões; do poema enquanto ponte a conectar o perceptível ao semântico, o visível ao verbal, o sensível ao inteligível.

 

J.A.R. – H.C.

 

Michel Deguy

(1930-2022)

 

Aide Mémoire

 

Ce qui a lieu d’être

Ne va pas sans dire

 

Ce qu’on ne peut pas dire...

Il faut l’écrire

 

La partie donne sur le tout

Qui donne la partie

 

Savoir à quoi ça ressemble

C’est notre savoir – non absolu

 

Il faut de la semblance

Pour faire de la contiguïté

 

Le poème est des choses prochaines

Qu’il faut aller chercher

 

Quando o silêncio fala

(Sali Swalla: artista norte-americana)

 

Lembrete

 

O que veio a ser

É preciso dizer

 

O que não pode ser dito...

Deve ser escrito

 

A parte dá no todo

Que dá a parte

 

Saber com que se parece

É nosso saber – não absoluto

 

É preciso semelhança

Para se fazer contiguidade

 

O poema é coisa próxima

Que é preciso ir buscar

 

Referência:

 

DEGUY, Michel. Aide mémoire / Lembrete (primeira seção). Tradução de Paula Glenadel e Marcos Sisear. In: __________. A rosa das línguas. Edição bilíngue: francês x português. Organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar. São Paulo, SP: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 2004. Em francês: p. 156; em português: p. 157. (Coleção ‘Ás de colete’; v. 6)

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Mário Cesariny - Juntemos este leito estas cidades

Num discurso a propor a recolha de toda a “espuma dos dias”, teses construídas sobre fundamentos que se pretendem fidedignos à realidade – olhares, cenários citadinos, êxtases, sentimentos de amor, “tudo isso” –; idem, o que se tem por suas respectivas antíteses, por elaborações contrapostas a tais construções pretensamente irrefutáveis – “nada disto” –; o poeta aparenta ceder à nebulosa dos sonhos o mister de sintetizar o significado pleno de todas essas experiências.

 

Sobre o leito, o sono e o sonho: nas horas de recolhimento, a maré, o refluxo do que se passou em vigília, no espaço mais íntimo de cada ser, nossas mentes povoadas por símbolos capazes de nos dizer se estamos ou não em pleno autocontrole psíquico, ou como diria Jung, se, em nosso veleiro, há suficiente equilíbrio entre a vela e a quilha.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mário Cesariny

(1923-2006)

 

Juntemos este leito estas cidades

 

Juntemos este leito estas cidades

os países os mares as poesias

juntemos o fiambre e o lírio roxo

a morte em plena rua e a vida hermética

 

Juntemos peça a peça as armas todas

todo o sol todo o tempo que há na terra

juntemos o riacho e a areia viva

juntemos toda a música

 

Juntemos o que há sobre o que espera

como um bicho na noite antena tensa

pata tensa um centímetro de pata

 

Gládio ou desgosto ou só meia verdade

teu riso minha coleta juntemos

isso tudo tudo isso nada disto.

 

Interior com o leito e as luzes da cidade

(Victoria Sukhasyan: artista russa)

 

Referência:

 

CESARINY, Mário. Juntemos este leito estas cidades. In: __________. Nobilíssima visão. Lisboa, PT: Guimarães, 1959. p. 71-72.

domingo, 19 de maio de 2024

Pier Paolo Pasolini - A poesia da tradição

Por meio destes versos, Pasolini expressa todo o seu pessimismo em relação à geração de jovens caudatária das jornadas de 68 – sobretudo na Itália –, geração alheada que, abandonando a beleza tradicional da arte – e da poesia em especial –, acabou por fomentar no país a disseminação de um ideário americanizado de cultura, não exatamente revolucionário, senão quando muito reformista.

 

É de se presumir que Pasolini não esteja a apregoar a necessidade de um retorno à linguagem tradicional do passado, mas que também não se cortem os laços com aquilo que se tem por genuína identidade cultural, pois que, de outro modo, a voragem da massificação tende a ganhar força sem quaisquer resistências, num ‘continuum’ de gerações aburguesadas que, no fundo, “obedecem”, a despeito de, eventualmente, externalizarem “desobediências”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pier Paolo Pasolini

(1922-1975)

 

La poesia della tradizione

 

Oh generazione sfortunata!

Cosa succederà domani, se tale classe dirigente –

quando furono alle prime armi

non conobbero la poesia della tradizione

ne fecero un’esperienza infelice perché senza

sorriso realistico gli fu inaccessibile

e anche per quel poco che la conobbero, dovevano dimostrare

di voler conoscerla sì ma con distacco, fuori dal gioco.

Oh generazione sfortunata!

che nell’inverno del ‘70 usasti cappotti e scialli fantasiosi

e fosti viziata

chi ti insegnò a non sentirti inferiore –

rimuovesti le tue incertezze divinamente infantili –

che non è aggressivo è nemico del popolo! Ah!

I libri, i vecchi libri passarono sotto i tuoi occhi

come oggetti di un vecchio nemico

sentisti l’obbligo di non cedere

davanti alla bellezza nata da ingiustizie dimenticate

fosti in fondo votata ai buone sentimenti

da cui ti difendevi come dalla bellezza

con l’odio razziale contro la passione;

venisti al mondo, che è grande eppure così semplice,

e vi trovasti chi rideva della tradizione,

e tu prendeste alla lettera tale ironia fintamente ribalda,

erigendo barriere giovanili contro la classe dominante del passato

la gioventù passa presto; oh generazione sfortunata,

arriverai alla mezza età e poi alla vecchiaia

senza aver goduto ció che avevi diritto di godere

e che non si gode senza ansia e umiltà

e così capirai di aver servito il mondo

contro cui con zelo “portasti avanti la lotta”:

era esso che voleva gettar discredito sopra la storia – la sua;

era esso che voleva far piazza pulita del passato – il suo;

oh generazione sfortunata, e tu obbedisti disobbedendo!

Era quel mondo a chiedere ai suoi nuove figli di aiutarlo

a contraddirsi, per continuare;

vi troverete vecchi senza l’amore per i libre e la vita:

perfetti abitanti di quel mondo rinnovato

attraverso le sue reazioni e repressioni, sì, sì, è vero,

ma soprattutto attraverso voi, che vi siete ribellati

proprio come esso voleva, Automa in quanto Tutto;

non vi si riempirono gli occhi di lacrime

contro un Battistero con caporioni e garzoni

intenti di stagione in stagione

né lacrime aveste per un’ottava del Cinquecento,

né lacrime (intellettuali, dovute alla pura ragione)

non conosceste o non riconosceste i tabernacoli degli antenati

né le sedi dei padri padroni, dipinte da

– e tutte le altre sublime cose

non vi farà trasalire (con quelle lacrime brucianti)

il verso di un anonimo poeta simbolista morto nel

la lotta di classe vi cullò e vi impedì di piangere:

irrigiditi contro tutto ciò che non sapesse di buoni sentimenti

e di aggressività disperata

passaste una giovinezza

e, se eravate intellettuali,

non voleste dunque esserlo fino in fondo,

mentre questo era poi fra i tanto il vostro vero dovere,

e perché compiste questo tradimento?

per amore dell’operaio: ma nessuno chiede a un operaio

di non essere operaio fino in fondo

gli operai non piansero davanti ai capolavori

ma non perpetrarono tradimenti che portano al ricatto

e quindi all’infelicità

oh sfortunata generazione

piangerai, ma di lacrime senza vita

perché forse non saprai neanche riandare

a ciò che non avendo avuto non hai neanche perduto;

povera generazione calvinista come alle origini della borghesia

fanciullescamente pragmatica, puerilmente attiva

tu hai cercato salvezza nell’organizzazione

(che non può altro produrre che altra organizzazione)

e hai passato i giorni della gioventù

parlando il linguaggio della democrazia burocratica

non uscendo mai dalla ripetizione delle formule,

ché organizzar significar per verba non si poria,

ma per formule sì,

ti troverai a usare l’autorità paterna in balia dei potere

imparlabile che ti ha voluta contro il potere,

generazione sfortunata?

Io invecchiando vidi le vostre teste piene di dolore

dove vorticava un’idea confusa, un’assoluta certezza,

una presunzione di eroi destinati a non morire –

oh ragazzi sfortunati, che avete visto a portata di mano

una meravigliosa vittoria che non esisteva!

 

In: “Trasumanar e organizzar” (1971)

 

Um grupo de escritores

(Cathleen S. Mann: pintora inglesa)

 

A poesia da tradição

 

Oh, geração desventurada!

O que vai acontecer amanhã se esta classe dirigente –

quando deram os primeiros combates

não conheciam a poesia da tradição

tiveram dela uma experiência infeliz porque sem

um sorriso realista ela lhe era inacessível

e também, pelo pouco que a conheceram, precisavam mostrar

que queriam conhecê-la, sim, mas com distanciamento, fora do jogo.

Oh, geração desventurada!

que no inverno de 70 usou casacos e xales de fantasia

e cresceu mimada,

quem lhe ensinou a não se sentir inferior –

você removeu suas incertezas divinamente infantis –

quem não é agressivo é inimigo do povo! Ah!

Os livros, os velhos livros passaram sob seus olhos

como objetos de um velho inimigo

e você sentiu o dever de não ceder

diante da beleza nascida de injustiças esquecidas

no fundo se dedicou aos bons sentimentos

dos quais se defendia como da beleza

com o ódio racial contra a paixão;

veio ao mundo, que é grande e ainda assim tão simples,

e encontrou quem se ria da tradição

e tomou ao pé da letra essa ironia falsamente transgressora,

erigindo barreiras infantis contra a classe dominante do passado

a juventude passa logo; oh, geração desventurada,

vai chegar à meia-idade e depois à velhice

sem ter gozado o que tinha direito de gozar

e que só se goza com ânsia e humildade

e assim vai entender que só serviu ao mundo

contra o qual com zelo “levou em frente a luta”:

era ele que queria lançar descrédito sobre a história – a sua;

era ele que queria fazer tábula rasa do passado – o seu;

oh, geração desventurada, e você obedeceu desobedecendo!

Era aquele mundo que pedia a seus novos filhos que o ajudasse

a contradizer-se, para prosseguir;

nele vão se ver velhos, sem amor pelos livros e pela vida:

perfeitos habitantes daquele mundo renovado

através de suas reações e repressões, sim, sim, é verdade,

mas sobretudo através de vocês, que se rebelaram

justo como ele queria, Autômato enquanto Todo;

seus olhos não se encheram de lágrimas

diante de um Batistério com líderes e jovens

concentrados de estação em estação,

nem lágrimas derramaram por uma oitava do Renascimento,

nem lágrimas (intelectuais, devidas à pura razão)

conheceram ou não reconheceram os tabernáculos dos antepassados

nem as moradas dos pais patrões, pintadas por

– e todas as outras coisas sublimes

não lhes causará tremor (com aquelas lágrimas ardentes)

o verso de um anônimo poeta simbolista morto nem

a luta de classes os embalou e impediu de chorar;

endurecidos contra tudo que não cheirasse a bons sentimentos

e agressividade desesperada,

pularam uma juventude

e, se eram intelectuais,

então não o quiseram ser até o fundo,

quando este era entre tantos o seu verdadeiro dever,

e por que cometeram essa traição?

por amor ao operariado: mas ninguém pede a um operário

que não seja operário até o fundo,

os operários não choraram diante das obras-primas

mas não perpetraram traições que levam à chantagem

e portanto à infelicidade

oh, desventurada geração,

você vai chorar, mas de lágrimas sem vida

porque talvez não saberá sequer retornar

ao que não tendo tido nem sequer perdeu;

pobre geração calvinista como nas origens da burguesia

infantilmente pragmática, puerilmente ativa,

você buscou a salvação na organização

(que não pode produzir senão mais organização)

e passou os dias da juventude

falando a linguagem da democracia burocrática

sem nunca sair da repetição das fórmulas,

porque organizar significar per verba não poderia

mas por fórmulas, sim,

você vai se ver usando a autoridade paterna à mercê do poder

inominável que a quis contra o poder,

geração desventurada!

Eu envelhecendo vi suas cabeças cheias de dor

onde turbilhonava uma ideia confusa, uma absoluta certeza,

uma presunção de heróis destinados a não morrer –

oh, meninos desventurados, que viram ao alcance da mão

uma maravilhosa vitória que não existia!

 

Em: “Transumanar e organizar” (1971)

 

Referência:

 

PASOLINI, Pier Paolo. La poesia della tradizione / A poesia da tradição. Tradução de Maurício Santana Dias. In: __________. Poemas. Tradução e notas de Maurício Santana Dias. Organização e introdução de Alfonso Berardinelli e Maurício Santana Dias. Posfácio de Maria Betânia Amoroso. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2015. Em italiano: p. 194, 196 e 198; em português: p. 195, 197 e 199.