Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

James Tate - Ensinando o macaco a escrever

Czeslaw Milosz, o compilador da obra de onde extraí o poema abaixo, tece o seguinte comentário sobre ele, de forma sucinta e precisa: “O poema de James Tate é, até certo ponto, uma sátira sobre a profissão do escritor e uma conexão entre o amor próprio e o ímpeto para criar” (MILOSZ, 1998, p. 251).

O símio acha-se ao nível da animalidade, mas para escrever poesia, tem que se alçar a um deus, um criador, transcendendo o mundo físico do ser: Tate contrasta o mundo interior – o mundo de um ser humano – e o mundo exterior – o mundo da natureza, do qual o mico toma parte; para que este evolua até aquele, faz-se necessário alcançar a etapa da cognição e da representação da linguagem, de forma a poder expressar pensamentos, sentimentos e intuições. Desse modo, logrará sucesso em aproximar-se do firmamento índigo da condição humana...

J.A.R. – H.C.

James Tate
(1943–2015)

Teaching the ape to write

They didn’t have much trouble
teaching the ape to write poems:
first they strapped him into the chair,
then tied the pencil around his hand
(the paper had already been nailed down).
Then Dr. Bluespire leaned over his shoulder
and whispered into his ear:
“You look like a god sitting there.
Why don’t you try writing something?”

Bacchus
(Martin Wittfooth: pintor canadense)

Ensinando o macaco a escrever

Eles não tiveram muitas dificuldades
em ensinar o macaco a escrever poemas:
primeiramente o amarraram a uma cadeira,
depois prenderam o lápis em torno de sua mão
(o papel já havia sido fixado).
Então o Dr. Bluespire inclinou-se sobre o seu ombro
e lhe sussurrou ao ouvido:
“Você parece um deus sentado aí.
Por que não tenta escrever algo?”

Referência:

TATE, James. Teaching the ape to write. In: MILOSZ, Czeslaw (Ed.). A book of luminous things: an international anthology of poetry. 1st. ed. New York, NY: Houghton Mifflin Harcourt, 1998. p. 251.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Kabir - Como dizer o que não pode ser dito?

No livro em referência não há numeração de páginas e, por isso, se identifica o poema abaixo pelo seu número – 9 (nove) – dos 100 (cem) que foram vertidos ao português por José Tadeu Arantes, a partir da tradução ao inglês do polímata bengali Rabindranath Tagore.

O Eterno é o tema do poema, cujo autor se prende a afirmar o quanto de incerteza há na ontologia divina. Ninguém a provar que Ele existe ou não existe, embora se encontrem figuras, como o biólogo evolutivo inglês Richard Dawkins, que, desde a testada de uma de suas obras mais famosas, sustenta que Deus não passa de um “delírio”. Se tem ou não razão, prefiro abster-me de tecer comentários!

J.A.R. – H.C.

Kabir
(1440-1518)

Poema nº 9

Como dizer o que não pode ser dito?
Como dizer “Ele não é isso” ou “Ele é aquilo”?
Se disser: “Ele está dentro de mim”, envergonharei o universo.
Se disser: “Ele está fora”, que loucura estarei dizendo!

Ele torna interior e exterior indiscerníveis.
De fato, Ele não está desvelado, nem coberto de véus.
O manifesto e o imanifesto são apenas o escabelo de seus pés.
Jamais houve ou haverá palavra que diga o que Ele é.

A cidade eterna
(Megan A. Duncanson: pintora norte-americana)

Referência:

KABIR. [9] Como dizer o que não pode ser dito?. Tradução de José Tadeu Arantes. Kabir: cem poemas. Seleção e tradução ao inglês de R. Tagore. Tradução, ensaios e notas de José Tadeu Arantes. São Paulo: Attar, 2013.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Francisco Carvalho - Esboço de um poema metafísico

O poeta vai até o limite daquilo que conhecemos como vida, para, de lá, fazer projeções metafísicas, ou melhor, lançar indagações ao espírito ainda em terra, preso à materialidade da carne, a experimentar as derradeiras sensações nesta planície de átomos, que, ao fim e ao cabo, se reintegrarão ao “fluxo universal da matéria”.

É quando olhamos para os efeitos projetados pelo tempo em nossos corpos que, então, nos dedicamos a atribuir maior valor aos princípios a presidir a existência, finita como tudo, mas sujeita à esperança de podermos continuá-la – quem saberia afirmá-lo? – em outros planos de vida talvez mais venturosos.

J.A.R. – H.C.

Francisco Carvalho
(1927-2013)

Esboço de um poema metafísico

Em que lugar do corpo se apascenta a alma dos homens?
Em que abismo do Ser anda a balir a alma
ovelha tresmalhada?
Em que remota possessão do corpo terá fundado
a alma seu império de torres medievais?
Em que orla das planícies do Sono
andará a alma esquecida das eventualidades do corpo?

Quando pressentes a Morte, silenciosamente emigras
para o limiar azul ou te recolhes
à concha de areia onde se evaporam as nossas sensações?
Que resta de ti quando nada resta do corpo?
quando nada resta do sonho?
quando nada resta de tudo?
Que restará de ti quando de nossas retinas se apagarem
os últimos vestígios da memória luminosa do universo?
Que restará de ti quando a vida
se escoar do coração e quando todos os átomos
e células do nosso corpo tiverem se reintegrado
no fluxo universal da matéria?

Que restará de ti, veio subterrâneo
de uma jazida que resplandece no fundo de um poço?
Que restará de ti quando o corpo não for mais corpo
nem um sistema organizado de átomos
e quando esse movimento, e esse dinamismo cristalino
e essa obstinada simetria cessarem
repentinamente de pulsar?
e toda a sua dinâmica se calar para sempre?
e todo o seu ritmo de água represada
como uma criança vencida pelo sono
adormecer embalado pelo ritmo de Deus?

Em Obras
(Sergey Rimoshevsky: pintor bielorusso)

Referência:

CARVALHO, Francisco. Esboço de um poema metafísico. In: __________. Quadrante solar: poesia. Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira 1982. 1. ed. São Paulo, SP: L. R. Editores, 1983. p. 25-26.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Enrique Badosa - Arte Poética

Qual o poeta que nunca teorizou sobre o seu próprio mister? Temos aqui o espanhol Badosa a discorrer sobre o que lhe parece ser, em última instância, a arte poética, uma recorrência sempre a levar em consideração o que se pode fazer com as mãos, em especial, a inarredável hipótese de que nos permitem compulsar os livros.

No derradeiro verso da sexta e última estrofe, o poeta vislumbra a possibilidade de se envelhecer com “Deus entre as mãos” e, decerto, com isso, reporta-se ao fato de que as pessoas mais velhas são as guardiãs dos livros sagrados, como a Bíblia, da qual extraem prazer em leituras como as do Eclesiastes, do livro da Sabedoria ou dos provérbios de Salomão.

J.A.R. – H.C.

Enrique Badosa
(n. 1927)

Arte Poética

...que dure más el arte
que la naturaleza.
Lope de Vega

Dibujar nuevas islas en los mapas,
saber quedarse solo y saber ir
junto con los demás, y preguntarse
qué debemos hacer con nuestras manos.

Escuchar lo que es bueno y habla bien,
vivir la libertad con los amigos
y poder, para siempre, ser un hombre
que lleva un libro abierto entre las manos.

Buscar con mis palabras la palabra,
cansarme, levantarme y merecer
el pan, la sal y el agua cada dia,
y un justo bienestar para otras manos.

Ganar el buen amor y conversar,
tener silêncios pulcros y leales,
y ser libres amando y presintiendo
que los hijos nos cogen de la mano.

Saber que no estoy solo en la tristeza,
que tampoco estoy solo en la alegria,
y que también a mí puede alcanzarme
la mala soledad sobre las manos.

Pensar constantemente todo aquello
que ya no tendré tiempo de escribir,
tomar un libro nuevo y esperar
y envejecer, con Dios entre las manos.

Mãos da Paz
(Dalene McIntosh: pintora sul-africana)

Arte Poética

...que a arte dure mais
que a natureza.
Lope de Vega

Desenhar novas ilhas nos mapas,
saber ficar sozinho e saber ir
junto com os demais, e perguntar-se
o que devemos fazer com nossas mãos.

Escutar aquele que é bom e fala bem,
viver a liberdade com os amigos
e poder, para sempre, ser um homem
que leva um livro aberto entre as mãos.

Buscar com minhas palavras a palavra,
cansar-me, levantar-me e merecer
o pão, o sal e a água de cada dia,
e um justo bem-estar para outras mãos.

Ganhar o bom amor e conversar,
ter silêncios limpos e leais,
e ser livre amando e pressentindo
que os filhos nos levam pela mão.

Saber que não estou sozinho na tristeza,
que tampouco estou sozinho na alegria,
e que também a má solidão pode
vir a alcançar-me pelas mãos.

Pensar constantemente em tudo aquilo
que já não terei tempo de escrever,
tomar um livro novo e esperar
e envelhecer, com Deus entre as mãos.

Referência:

BONALD, José Manuel Caballero. Arte poética. In: MORALES, María Luz (Selección, prólogo y notas biográficas). Libro de oro de la poesía en lengua castellana: España y América. Segunda parte: siglo XX. Tomo II. 2. ed. Barcelona, ES: Editorial Juventud, 1984. p. 1275-1276. (‘Libros de Bolsillo Z’; n. 179)

domingo, 27 de janeiro de 2019

Jorge Luis Borges - O guardião dos livros

Cheio de imaginação – pois não creio que retrate literalmente uma história que, de fato, tenha se passado, embora haja boa dose de plausibilidade na narrativa –, Borges descreve as palavras de um hipotético guardião dos livros sagrados do imperador, Hsiang, que, ironia das ironias, sequer sabia ler.

Primeiramente, evocam-se as invasões dos tártaros do norte, montados em potros pequenos, que a tudo deram fim, mas não aos livros, que foram salvos pelo avô de Hsiang, agora recolhidos a uma torre onde se encontra o orador do poema. Há, mais à frente, os hexagramas do I Ching, memórias, jardins, templos, mistérios astrais... e segredos não revelados.

J.A.R. – H.C.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

El guardián de los libros

Ahí están los jardines, los templos y la justificación de
los templos,
La recta música y las rectas palabras,
Los sesenta y cuatro hexagramas,
Los ritos que son la única sabiduría
Que otorga el Firmamento a los hombres,
El decoro de aquel emperador
Cuya serenidad fue reflejada por el mundo, su espejo,
De suerte que los campos daban sus frutos
Y los torrentes respetaban sus márgenes,
El unicornio herido que regresa para marcar el fin,
Las secretas leyes eternas,
El concierto del orbe;
Esas cosas o su memória están en los libros
Que custodio en la torre.

Los tártaros vinieron del Norte
en crinados potros pequeños;
aniquilaron los ejércitos
que el Hijo del Cielo mandó para castigar su impiedad,
erigieron pirámides de fugo y cortaron gargantas,
mataron al perverso y al justo,
mataron al esclavo encadenado que vigila la puerta,
usaron y olvidaron a las mujeres
y siguieron al Sur,
inocentes como animales de presa,
crueles como cuchillos.
En el alba dudosa
el padre de mi padre salvó los libros.
Aquí están en la torre donde yazgo,
recordando los días que fueron de otros,
los ajenos y antiguos.

En mis ojos no hay días. Los anaqueles
están muy altos y no los alcanzan mis años.
Leguas de polvo y sueño cercan la torre.
¿A qué engañarme?
La verdad es que nunca he sabido leer,
pero me consuelo pensando
que lo imaginado y lo pasado ya son lo mismo
para un hombre que ha sido
y que contempla lo que fue la ciudad
y ahora vuelve a ser el desierto.
¿Qué me impide soñar que alguna vez
descifré la sabiduría
y dibujé con aplicada mano los símbolos?
Mi nombre es Hsiang. Soy el que custodia los libros,
que acaso son los últimos,
porque nada sabemos del Imperio
y del Hijo del Cielo.
Ahí están en los altos anaqueles,
cercanos y lejanos a un tiempo,
secretos y visibles como los astros.
Ahí están los jardines, los templos.

En: “Elogio de la sombra” (1969)

O Rato de Biblioteca
(Carl Spitzweg: pintor alemão)

O guardião dos livros

Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A música precisa, as precisas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que o Firmamento concede aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De modo que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que eu guardo na torre.

Os tártaros vieram do Norte
Em crinudos potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Erigiram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como o animal que é a presa,
Cruéis como punhais.
Na aurora duvidosa
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre em que, jazendo,
Recordo os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.

Em meus olhos não há dias. As prateleiras
São muito altas e meus anos não podem alcançá-las.
Léguas de pó e sono circundam a torre.
Para que me enganar?
A verdade é que eu nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado são iguais
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que um dia
Eu decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas prateleiras,
Ao mesmo tempo perto e distantes,
Secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.

Em: “Elogio da sombra” (1969)

Referência:

BORGES, Jorge Luis. El guardián de los libros / O guardião dos livros. Tradução de Josely Vianna Baptista. In: __________. Poesia. Edição bilíngue. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009. Em espanhol: p. 442-443; em português: p. 53-54.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Edmundo de Bettencourt - Cinema

O poeta canta loas ao cinema, naquilo que é capaz de enlevar o telespectador, por imagens e por músicas, trazendo as mais diversas mensagens em seu enredo – e é claro, não nos enganemos!, mesmo aquelas de cunho sub-reptício, isto porque estamos falando de um dos principais produtos da denominada “indústria cultural”.

Tem-se ainda a pontuar as limitações que a linguagem do cinema possui frente à do texto literário: raras vezes as adaptações, para a grande tela, de renomadas obras da literatura mundial resultam em filmes à altura da história em que se baseiam, em razão, sobretudo, da escolha que os cineastas fazem das cenas “mais importantes” das obras transpostas – eleição que, como se poderia suspeitar, passa pelo domínio das idiossincrasias –, afinal, tudo deverá ser recontado num lapso máximo de duas a três horas!

J.A.R. – H.C.

Edmundo de Bettencourt
(1889-1973)

Cinema

No meu olhar,
de gosto,
ritmo,
aroma
e seda,
com ele,
por mágica alameda
eu sonho ir ao espaço das visões,
que rolam como os mundos,
numa sagrada música visível,
onde eu me dispersaria...

Ó Cinema, ó maravilha
em que eu me possuiria,
mas que apenas possuo
da sombra,
na viva solidão da multidão quieta,
entre as carícias do silêncio ao pensamento,
sem esforço levado
a sofrer, a sentir
o que de eterno há num momento!

Em ti, a vida,
mais viva porquanto mais alada
em fantasia livre,
sem noites e sem dias,
brutal ou delicada,
é síntese movendo-se
em transcendência de tristezas e alegrias,
numa calma final de nuvens macias como penas,
que tempestades não consomem,
de encontro ao metálico recorte
das projecções estéticas do homem!

Cinema!
mais que tudo, és
o que lá fora buscam almas inquietas!
Mais que tudo, nos dás
o sonho que das almas sobe
nas imagens dos poetas!

Em: “O Momento e a Legenda” (1917-1930)

Lady Elizabeth Murray e Dido Elizabeth Belle
(Autoria Desconhecida)

Referência:

BETTENCOURT, Edmundo de. Cinema. In: __________. Poemas: 1930-1962. Lisboa, PT: Portugália, dez/1963. p. 41-43. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; v. 14)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Muriel Rukeyser - Soneto

Originalmente publicado em “Theory of Flight” (“Teoria do Voo”), de 1935, num padrão de pontuação ligeiramente afastado do convencional, tal como abaixo apresentado, este soneto de Muriel põe ênfase sobre os meandros da comunicação humana, embora pareça, à primeira vista, dado o tom de seus primeiros versos, mais um poema de amor.

A poetisa revela o que pode estar por trás de um poder retórico – recheado de “coisas amenas” – para estabelecer conexões entre dois mundos que, em última instância, são estranhos entre si. Seja como for, adverte para não cairmos em “mudez ou indiferença, tampouco petrificarmos o milagre da vida por nossa indiferença”.

J.A.R. – H.C.

Muriel Rukeyser
(1913-1980)

My thoughts through yours

My thoughts through yours refracted into speech
transmute this room musically tonight,
the notes of contact flowing, rhythmic, bright
with an informal art beyond my single reach.
Outside, dark birds fly in a greening time  :
wings of our sistered wishes beat these walls  :
and words afflict our minds in near footfalls
approaching with latening hour’s chime.

And if an essential thing has flown between us,
rare intellectual bird of communication,
let us seize it quickly  :  let our preference
choose it instead of softer things to screen us
each from the other’s self  :  muteness or hesitation,
nor petrify live miracle by our indifference.

From: “Theory of Flight” (1935)

Bando de pássaros contra o céu escuro
(Michael Vigliotti: pintor norte-americano)

Meus pensamentos através dos teus

Meus pensamentos espelhados nos teus se refrataram num
discurso, transmutando musicalmente o recinto nesta noite,
fazendo manar as notas de contato com uma arte informal,
rítmicas, brilhantes, para bem longe do meu simples alcance.
Lá fora, aves escuras voam numa estação de reverdecimento:
As asas de nossos desejos superados chocam-se nesses muros:
e as palavras angustiam nossas mentes em pisadas contíguas
que se aproximam com o ressoar das horas mais avançadas.

E caso uma coisa essencial houver levantado voo entre nós,
uma rara ave intelectual da comunicação,
aproveitemo-la rapidamente; deixemos que nossa preferência
a eleja no lugar de coisas mais amenas para proteger-nos
um frente ao outro: sem mudez ou hesitação,
e sem petrificar o milagre da vida por nossa indiferença.

Referência:

RUKEYSER, Muriel. My thoughts through yours refracted into speech. In: __________. Waterlily fire: poems 1935-1962. 1st. printing. New York, NY: The MacMillan Company, 1962. p. 9.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Cesare Pavese - Trabalhar cansa

Há a expressão de um desejo neste poema de Pavese: o de ter alguém com quem possa compartilhar a jornada – por isso a procura por uma companheira numa “praça deserta”. Mas persiste, por trás de qualquer primeira impressão que os versos possam denotar, a sensação de que o poeta esteja mesmo é ratificando a tese de que o homem contemporâneo predispõe-se à solidão, haja vista que a sua existência é caracterizada por certo desconforto que, por vezes, o leva ao absurdo do suicídio – aliás, como o cometeu o próprio Pavese.

Esse homem que percorre as ruas o dia todo, depois de uma lida cansativa e taciturna, é a face oposta do menino, que “escapa de casa”, indolente que é, em fuga do trabalho para buscar o prazer da ociosidade. No retorno para casa, pergunta-se: “Vale a pena ser só para ser sempre mais só?”.

J.A.R. – H.C.

Cesare Pavese
(1908-1950)

Lavorare stanca

Traversare una strada per scappare di casa
lo fa solo un ragazzo, ma quest’uomo che gira
tutto il giorno le strade, non è più un ragazzo
e non scappa di casa.

Ci sono d’estate
pomeriggi che fino le piazze son vuote, distese
sotto il sole che sta per calare, e quest’uomo, che giunge
per un viale d’inutili piante, si ferma.
Val la pena esser solo, per essere sempre più solo?
Solamente girarle, le piazze e le strade
sono vuote. Bisogna fermare una donna
e parlarle e deciderla a vivere insieme.
Altrimenti, uno parla da solo. È per questo che a volte
c’è lo sbronzo notturno che attacca discorsi
e racconta i progetti di tutta la vita.

Non è certo attendendo nella piazza deserta
che s’incontra qualcuno, ma chi gira le strade
si sofferma ogni tanto. Se fossero in due,
anche andando per strada, la casa sarebbe
dove c’è quella donna e varrebbe la pena.
Nella notte la piazza ritorna deserta
e quest’uomo, che passa, non vede le case
tra le inutili luci, non leva più gli occhi:
sente solo il selciato, che han fatto altri uomini
dalle mani indurite, come sono le sue.
Non è giusto restare sulla piazza deserta.
Ci sarà certamente quella donna per strada
che, pregata, vorrebbe dar mano alla casa.

O Homem Solitário
(Munir Alawi: artista palestino)

Trabalhar cansa

Atravessar uma rua para escapar de casa
só o faz o menino, mas este homem que gira
o dia todo pelas ruas não é mais um menino
e não escapa de casa.

O verão tem tardes
que até as praças são vazias, vastas
sob o sol que vai se pondo, e este homem, que chega
por uma avenida de inúteis plantas, para.
Vale a pena ser só para ser sempre mais só?
Somente contorná-las, as praças e as ruas
estão vazias. É preciso abordar uma mulher
e falar-lhe e decidi-la a viver juntos.
De outro modo, se fala sozinho. É por isso que às vezes
se encontra o bêbado noturno que faz discursos
e conta os projetos da vida toda.

Não é certamente esperando na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem gira pelas ruas
para de vez em quando. Se fossem em dois,
mesmo que andando pela rua, a casa seria
onde está aquela mulher e valeria a pena.
De noite, a praça volta a ser deserta
e este homem que passa não vê as casas
entre inúteis luzes, não ergue mais os olhos:
sente só o calçamento que fizeram outros homens
de mãos endurecidas como as suas.
Não é justo restar na praça deserta.
Existirá certamente aquela mulher pela rua
que se suplicada ajudaria em casa.

(Tradução publicada em “Folhetim” em 3.4.1983)

Referências:

Em italiano:

PAVESE, Cesare. Lavorare stanca. In: __________. Lavorare stanca. Torino, IT: Einaudi, 1977. p. 80-81.

Em Português

PAVESE, Cesare. Trabalhar cansa. Tradução de Maria Betânia Amoroso. In: SUZUKI JR., Matinas; ASCHER, Nelson (Organizadores). Folhetim: poemas traduzidos. São Paulo, SP: Folha de São Paulo, 1987. p. 158-159.