O falante, enquanto “funcionário” de um escritório qualquer, põe-se a redigir um poema sobre o seu mata-borrão – flor estranha a esse austero e conspícuo ambiente –, mas logo a “borracha” se apressa em apagá-lo da página, embora o status de ser vivente se mantenha, eis que símile de animais ou de plantas, neste último caso a “arfar” sobre terreno infenso.
Tudo então retorna ao seu estado de inércia, letárgico e sedento, porque o lado utilitário da vida não se mostra hábil a dar conta das necessidades inefáveis da existência, de certo elemento incógnito que nos reclama o seu desvendar a cada manhã, como um enigma que nos traga luz, presença de espírito, emancipando-nos pela via do extraordinário.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
O funcionário
No papel de serviço
escrevo o teu nome
(estranho à sala
como qualquer flor)
mas a borracha
vem e apaga.
Apaga as letras,
o carvão do lápis,
não o nome,
vivo animal,
planta viva
a arfar no cimento.
O macio monstro
impõe enfim o vazio
à página branca;
calma à mesa,
sono ao lápis,
aos arquivos, poeira;
fome à boca negra
das gavetas, sede
ao mata-borrão;
a mim, a prosa
procurada, o conforto
da poesia ida.
Em: “O engenheiro” (1942-1945)
Vida de Escritório
(Anthony Renardo Flake: artista norte-americano)
Referência:
MELO NETO, João Cabral de. O
funcionário. In: __________. Da educação pela pedra à pedra do sono:
antologia poética. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1986. p. 239.
COMEÇO O DIA com a leitura desse extraordinário poema de J. C. Melo Neto, palavra disparada como um tiro seco, sobre a vida fugaz, sobre as coisas que são, de repente "devoradas" pela "borracha" evidentemente metafórica apagando a realidade e instaurando, pela poesia, um momento mágico de criação. Destaque-se a NOTA INTELIGENTE do leitor sensível, J. a. RODRIGUES, que nos traz do passado, esse raro presente. Leitura necessária!. (Geraldo Reis - poeta menor - Autor de PASTORAL DE MINAS e DURANDO ENTRE VINDIMAS).
ResponderExcluir