Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

João Cabral de Melo Neto - O funcionário

O falante, enquanto “funcionário” de um escritório qualquer, põe-se a redigir um poema sobre o seu mata-borrão – flor estranha a esse austero e conspícuo ambiente –, mas logo a “borracha” se apressa em apagá-lo da página, embora o status de ser vivente se mantenha, eis que símile de animais ou de plantas, neste último caso a “arfar” sobre terreno infenso.

Tudo então retorna ao seu estado de inércia, letárgico e sedento, porque o lado utilitário da vida não se mostra hábil a dar conta das necessidades inefáveis da existência, de certo elemento incógnito que nos reclama o seu desvendar a cada manhã, como um enigma que nos traga luz, presença de espírito, emancipando-nos pela via do extraordinário.

J.A.R. – H.C.

 

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

 

O funcionário

 

No papel de serviço

escrevo o teu nome

(estranho à sala

como qualquer flor)

mas a borracha

vem e apaga.

 

Apaga as letras,

o carvão do lápis,

não o nome,

vivo animal,

planta viva

a arfar no cimento.

 

O macio monstro

impõe enfim o vazio

à página branca;

calma à mesa,

sono ao lápis,

aos arquivos, poeira;

 

fome à boca negra

das gavetas, sede

ao mata-borrão;

a mim, a prosa

procurada, o conforto

da poesia ida.

 

Em: “O engenheiro” (1942-1945)

 

Vida de Escritório

(Anthony Renardo Flake: artista norte-americano)


Referência:

MELO NETO, João Cabral de. O funcionário. In: __________. Da educação pela pedra à pedra do sono: antologia poética. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1986. p. 239.

Um comentário:

  1. COMEÇO O DIA com a leitura desse extraordinário poema de J. C. Melo Neto, palavra disparada como um tiro seco, sobre a vida fugaz, sobre as coisas que são, de repente "devoradas" pela "borracha" evidentemente metafórica apagando a realidade e instaurando, pela poesia, um momento mágico de criação. Destaque-se a NOTA INTELIGENTE do leitor sensível, J. a. RODRIGUES, que nos traz do passado, esse raro presente. Leitura necessária!. (Geraldo Reis - poeta menor - Autor de PASTORAL DE MINAS e DURANDO ENTRE VINDIMAS).

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