Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Miodrag Pávlovitch - A última refeição

A natureza notoriamente alegórica deste poema de Pávlovitch revela algum ponto de contato com a cena dos Evangelhos em que Cristo, pouco antes de sua morte, ceia com os seus discípulos, muito embora, nos versos do autor sérvio, o cenário se modifique de um refeitório, onde se repastam os comensais, diretamente a outro associável ao Hades: “sob os nossos pés o céu; acima o teto baixo do túmulo”.

 

Sedentos todos eles, haverão de “cruzar as águas” rumo a um “paraíso ressecado”, quando então receberão “de volta suas antigas faces, feito remédio, das mãos do velhote”: concebe-se aqui, suponho, a morte como uma metamorfose de retorno à autenticidade, como migração de uma estação de postimeira fartura à outra estiolada, passando por águas extintoras do fogo das paixões – traduzível por um hipotético período de provações –, até que – outra presunção! – todos cheguem sãos e salvos à eterna morada.

 

J.A.R. – H.C.

 

Miodrag Pávlovitch

(1928-2014)

 

Последњи обед

 

Седамо за сто

поврће, ми, тањири,

сланик и комади хлеба.

За обедом влада ред,

свако са свог места

вири из лобање.

Кад се отворе врата

видимо дпанове неба.

 

Нико нас не дира,

но вести ипак стижу:

јешћемо бесплатно

у овој мензи довек

и свако ће добити натраг

сва своја лица

из руке старца, као лек.

 

Не морамо устати од стола

док прокишњава кров,

не морамо више ни јести,

Нити се бојати бола,

ишчезавамо просто

скрштених руку,

лепо ли је поћи у вечни дом!

 

Седамо за сто

на којем ничег нема

осим реда;

под нашим ногама је небо,

горе: ниска таваница гроба.

Начуљи уво

ни кап се тајне више не чује,

жедни смо прешли преко воде,

а све је у рају суво.

 

A última ceia

(Jean de Boulogne Valentin: pintor francês)

 

A última refeição

 

Estamos sentados à mesa

as verduras, nós, os pratos,

o saleiro e pedaços de pão.

A ordem impera

e cada um de seu lugar

vigia do interior da caveira.

Quando a porta se abre

enxergamos a palma da mão do céu.

 

Ninguém nos incomoda,

mas as notícias continuam chegando:

comeremos de graça

eternamente neste refeitório

e cada um receberá de volta

suas antigas faces,

feito remédio, das mãos do velhote.

 

Nem precisamos erguer-nos da mesa

enquanto há goteiras no telhado,

nem devemos mais comer,

ou temer a dor,

simplesmente desaparecemos

mãos cruzadas

partindo para a eterna morada.

 

Estamos sentados à mesa

em que nada resta

além da ordem –

sob os nossos pés o céu

acima o teto baixo do túmulo.

Apura o ouvido –

não se ouve uma gota sequer de segredo,

sedentos cruzamos as águas

e o paraíso está ressecado.

 

Referência:

 

PÁVLOVITCH, Miodrag. Последњи обед / A última refeição. Tradução de Aleksandar Jovanović. In: __________. Bosque da maldição. Seleção, introdução e tradução de Aleksandar Jovanović. Edição bilíngue. Brasília, DF: Editora da UnB, 2003. Em sérvio: p. 118 e 120; em português: p. 119 e 121. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)

terça-feira, 29 de novembro de 2022

António Feijó - Felina

Nesta bailata – canção própria para um baile –, cujo tema são os felinos e o banzé que fazem na água-furtada do ente lírico, Feijó exibe notável imaginação e capacidade verbal, lançando mão de palavras já não de frequente uso no momento, ou, pelo menos, não de emprego reiterado entre os leitores brasileiros, motivo pelo qual apresento um pequeno elucidário em sequência ao poema.

 

O clima não é lá para muitos romances sobre os telhados do casario, pois chove e faz frio. Mas pouco importa: para uma noitada felina, de paixão, sedução, galanteria, traições, cizânias entre parceiros, de “baralhas de saloios e fadistas”, o lado mais fatigante cabe ao próprio falante, que vê seu repouso embaraçado entre insônias e pesadelos.

 

J.A.R. – H.C.

 

António Feijó

(1859-1917)

 

Felina

 

Galgam os gatos, guturais, gritando,

Nas gotejantes, glácidas goteiras,

As julietas maltesas namorando,

Em mios sensuais pelas trapeiras.

 

Chora, chapinha, chuviscando, a chuva!

No deserto beiral do meu telhado,

Uma cinzenta graziela viúva

Contempla o seu “miau” envenenado...

 

Há lamentosos, lutulentos lances,

Por sobre a telha de Marselha, oblonga...

Sonhos, idílios, infernais romances,

Cavaleiros de Malta e barba longa!

 

Dum, conheço uma história muito triste,

Dum que lembrava o D. João doutrora,

Sempre com o bigode e a cauda em riste...

Mas era longo referi-la agora.

 

Pelos sítios escusos dos telhados

Há gatas sem pudor fazendo vistas,

Traições, banzés, focinhos arranhados,

Baralhas de saloios e fadistas.

 

Ouvindo-os, entre insônias horrorosas,

Paroquiais, pesados pesadelos,

Guloso, gloso gloriosas glosas,

E faço caracóis com os cabelos!...

 

Em: “Bailatas” (1907)

 

Gatos no telhado

(Teresa Kluszczyńska: pintora polonesa)

 

Elucidário:

 

Glácidas – glaciais, gélidas;

Julietas – fofas, macias;

Trapeiras – águas-furtadas;

Graziela – engraçada, divertida;

Lutulentos – cheios de lodo;

Baralhas – (fig.) confusões, altercações;

Saloios – campônios, rústicos.

 

Referência:

 

FEIJÓ, António. Felina. Felina. In: __________. Poesias completas de António Feijó. 2. ed. Lisboa, PT: Livraria Bertrand, [19--]. p. 264-265.

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