Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Érico Andrade - Cícero Dias

Fazer da poesia um instrumento descritivo e ao mesmo tempo um panegírico para prestar homenagem a pessoa próxima ou distante: eis o mote empregado por Érico Andrade para brindar a obra pictórica de Cícero Dias (1907-2003), plena de elementos caracterizadores da “alma brasileira”, ilimitada em suas facetas e diversidade.

Presumo, pela data e local apostos ao poema, que Érico Andrade tenha conhecido o pintor em Paris (FR), pouco antes de este ter falecido, em 28 de janeiro de 2003, pois lá esteve cursando doutorado, quando então o poeta-professor se encantou com o vigor de suas telas, carregadas de luz e cor, quase sempre a manter a temática decorativa de seu Pernambuco natal: o mar, a vegetação, o canavial e o povo do Nordeste.

J.A.R. – H.C.

Érico Andrade
(n. 1977)

Cícero Dias

Teu lirismo é de uma terra maciça,
espalhada morosamente sob uma pele frágil.
Molhada,
mais de desejo que de água.

O teu azul repousa cedo.
Oscila entre uma amargura confusa de si mesma
e uma tácita alegria.

Nas tuas telas
confortam-nos o olhar o movimento sereno e branco;
inexistente
de uma rede vagarosa.

Afogado de um azul soberano
teu vermelho desarranja-se
na lembrança celeste
de tuas matas.

(Paris, 2005)

Sem Título
(Cícero Dias: pintor pernambucano)

Referência:

ANDRADE, Érico. Cícero Dias. In: MARTIN, Clairton et al. Coletânea Ladjane Bandeira de poesia. Organizada por Cida Pedrosa, Elizabeth Siqueira, Janice Japiassu. Recife, PE: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2007. p. 31.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Paula Meehan - Sementes

Depois de revitalizada do abatimento, de uma casa tristonha, de um inverno voraz que destruiu-lhe o jardim em decorrência de uma tempestade; depois de ver algo precioso não ser destruído e dar graças por nem tudo estar perdido, a poetisa percebe o poder de continuidade da vida, fruto do binômio casualidade x utilidade – pois Meehan descrê em deidades.

Não sendo Meehan particularmente religiosa, ainda assim é capaz de reconhecer o poder que há nas sementes, motivo pelo qual elogia as suas propriedades ou atributos. Têm elas o elemento potencial da fertilidade, em meio à natureza, fazendo ressurgir o cenário que nos cerca em novas primícias e infinitas esperanças.

J.A.R. – H.C.

Paula Meehan
(n. 1955)

Seed

The first warm day of spring
and I step out into the garden from the gloom
of a house where hope had died
to tally the storm damage, to seek what may
have survived. And finding some forgotten
lupins I’d sown from seed last autumn
holding in their fingers a raindrop each
like a peace offering, or a promise,
I am suddenly grateful and would
offer a prayer if I believed in God.
But not believing, I bless the power of seed,
its casual, useful persistence,
and bless the power of sun,
its conspiracy with the underground,
and thank my stars the winter’s ended.

Os Pequenos Prados na Primavera
(Alfred Sisley: pintor francês)

Sementes

No primeiro dia cálido da primavera
saio ao jardim desde a penumbra
de uma casa onde havia morrido a esperança
de fazer frente aos danos da tormenta, para procurar
o que pode
ter sobrevivido. E encontrando alguns esquecidos
tremoços que plantei como sementes no outono
passado,
retendo cada um em seus dedos uma gota de chuva,
como uma oferenda de paz ou uma promessa,
de repente estou agradecida e ofereceria
uma oração se acreditasse em Deus.
Mas como nele não creio, bendigo o poder das
sementes,
sua persistência útil e casual,
e bendigo o poder do sol,
sua conspiração com o subsolo,
e agradeço a minhas estrelas pelo término
do inverno.

Referência:

MEEHAN, Paula. Seed. In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 186.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Juan Gelman - O jogo que jogamos

Com versos a torcer os sentidos, em razão dos vocábulos de teor antitético, o poeta argentino expressa a sua aposta pela morte, como se aquilo por que aspira houvesse se transformado no seu exato oposto: a saúde na doença, a ventura na infelicidade, a inocência na malícia, a pureza na impureza, o amor no ódio, a esperança no ceticismo.

Decerto são sentimentos, desprazeres, convicções, ânimos e estados físicos que se podem observar numa sociedade doente como a contemporânea, atingindo aqueles que não logram seguir os seus valores, quase sempre de ordem material, supervalorizando o “ter” em detrimento do “ser”, erigindo barreiras que se multiplicam em razão da injustiça social a alastrar-se: “o mal ronda a terra”, como diria o grande historiador Tony Judt.

J.A.R. – H.C.

Juan Gelman
(1930-2014)

El juego en que andamos

Si me dieran a eligir, yo eligiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.

Se me dieran a eligir, yo eligiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.

Si me dieran a eligir, yo eligiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.

Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.

Melancolia I
(Albrecht Dürer: pintor alemão)

O jogo que jogamos

Se me dessem para escolher, eu escolheria
esta saúde de saber que estamos multo enfermos,
esta dita de andar tão infelizes.

Se me dessem para escolher, eu escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que ando por ser impuro.

Se me dessem para escolher, eu escolheria
este amor com o qual odeio,
esta esperança que come pães desesperados.

Acontece, senhores, que aqui
aposto a minha morte.

Referência:

GELMAN, Juan. El juego en que andamos / O jogo que jogamos. Tradução de Eric Nepomuceno. In: __________. Amor que serena termina? Seleção e tradução de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. Em espanhol: p. 36; em português: p. 37.

domingo, 28 de julho de 2019

Carlos Drummond de Andrade - Um boi vê os homens

Um boi põe-se a contemplar os homens: ele é o falante do poema de Drummond e todas as suas observações têm como parâmetro de comparação a hipotética “vivência bovina”, daí porque tudo o que concerne à fragilidade de um “bípede desemplumado” não lhe escapa ao exame, pois temos os olhos inaptos a esconder as emoções que nos assolam a todo instante.

Os humanos somos a expressão do medo, da indecisão e de um frenesi incompreensível, incapazes de “formas calmas, permanentes e necessárias” de organização. E o pior: uma vez entristecidos, podemos chegar à crueldade – muito distintamente dos bois, que, regra geral, são criaturas plácidas, conhecem a sua força e têm o dom de entender a beleza que existe no mundo natural.

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Um boi vê os homens

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam
no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Em: “Claro Enigma” (1951)

Homem com dois bois
(Edward M. Bannister: pintor canadense-americano)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Um boi vê os homens. In: __________. Poesia 1930-62: de Alguma poesia a Lição das cosias. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2012. p. 569.

sábado, 27 de julho de 2019

Howard Nemerov - A Guerra no Ar

É sobre a clara distinção entre uma guerra travada nos céus e outra disputada no solo que Nemerov nos conscientiza: na primeira, nem sempre seremos capazes de encontrar os corpos daqueles alvos que foram atingidos no ar e, por conseguinte, difícil se torna devolvê-los às suas respectivas famílias, para que possam proceder às exéquias.

Num campo de batalha podem-se ver equipamentos de artilharia, o inimigo, os corpos e muito sangue. Em contrapartida, o combate no ar deixa apenas um rasto de fumaça que logo se dissipa até que retorne o vazio do firmamento: os que conseguem retornar de uma missão aérea mal conseguem verbalizar o que se passou, quando os seus companheiros foram lançados em queda livre ou esfacelados pelas explosões.

J.A.R. – H.C.

Howard Nemerov
(1920-1991)

The War in the Air

For a saving grace, we didn’t see our dead,
Who rarely bothered coming home to die
But simply stayed away out there
In the clean war, the war in the air.

Seldom the ghosts come back bearing their tales
Of hitting the earth, the incompressible sea,
But stayed up there in the relative wind,
Shades fading in the mind,

Who had no graves but only epitaphs
Where never so many spoke for never so few:
Per ardua, said the partisans of Mars,
Per aspera, to the stars.

That was the good war, the war we won
As if there was no death, for goodness’s sake.
With the help of the losers we left out there
In the air, in the empty air.

Terra, Mar e Céu
(Charles H. Woodbury: pintor norte-americano)

A Guerra no Ar

Por uma eterna graça, não vimos nossos mortos,
Que raramente cismavam em retornar para morrer em casa,
Mas simplesmente se mantinham distanciados
Na guerra aberta, a guerra no ar.

Raramente os fantasmas regressaram com suas histórias
De colisões contra a terra, o incomprimível mar,
Mas permaneceram lá em cima em meio à brisa familiar;
Na mente a se desbotarem as sombras,

Dos que não tinham sepulturas, senão apenas epitáfios
Por meio dos quais, nunca, tantos falaram por tão poucos:
Per ardua, disseram os partidários de Marte,
Per aspera, até as estrelas. (*)

Essa foi a boa guerra, a guerra que vencemos
Como se não houvesse mortos, pelo amor de Deus.
Com a ajuda dos perdedores que deixamos por aí
No ar, no desnudado ar.

Nota:

(*). A expressão em latim “Per aspera ad astra” (ou “Ad astra per aspera”) significa “Da adversidade às estrelas”, lema empregado por diversas forças aéreas pelo mundo, como a britânica, a canadense e a australiana. No caso, há semelhança no significado em relação aos termos “Per ardua” e “Per aspera”, empregados por Nemerov.

Referência:

NEMEROV, Howard. The war in the air. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 264.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

William Carlos Williams - Quando a estrutura falha, a rima tenta vir em socorro

Não há esquema de rimas terminais neste poema de Williams, muito embora o seu conteúdo represente uma metáfora sobre o estado de certo cansaço do poeta em seguir os padrões estruturais da lírica dita tradicional: os sonhos são mantidos íntegros na mente com o avançar da idade, e se tenta reavivá-los com o recurso às rimas.

É como se Williams estivesse a replicar aqueles famosos versos de Cecília Meireles (ou seria o contrário?!), no poema “Marcha”: “Soltam-se os meus dedos tristes, / dos sonhos claros que invento. / Nem aquilo que imagino já me dá contentamento”. Há momentos em que o encanto se esgarça e o fim de um propósito faz algo no espírito fenecer...

J.A.R. – H.C.


William Carlos Williams
(1883-1963)

When structure fails

rhyme attempts to come to the rescue

 

The old horse dies slow.

By gradual degrees

the fervor of his veins

matches the leaves’

 

stretch, day by day. But

the pace that his

mind keeps is the pace

of his dreams. He

 

does what he can, with

unabated phlegm,

ahem! but the pace that

his flesh keeps –

 

leaning, leaning upon

the bars – beggars

by far all pace and every

refuge of his dreams.

Cavalo Velho no Deserto
(Charles Cottet: pintor francês)

Quando a estrutura falha,

a rima tenta vir em socorro

 

O cavalo velho morre devagar.

Gradativamente

o fervor de suas veias

compara-se ao estiramento

 

das folhas, dia a dia. Mas

o passo que sua

mente mantém, é o passo

dos seus sonhos. Ele

 

faz o que pode, com

inabalável fleugma,

olá! mas o passo que

sua carne mantém –

 

inclinada, inclinada sobre

barras – mendiga

praticamente todo o passo e todos

os refúgios de seus sonhos.

Referência:

WILLIAMS, William Carlos. When structure fails rhyme attempts to come to the rescue / Quando a estrutura falha, a rima tenta vir em socorro. Tradução de Jorge Wanderley. In: WANDERLEY, Jorge (Seleção, tradução e notas). Antologia da nova poesia norte-americana. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1992. Em inglês: p. 112; em português: p. 113.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

José Hilário Retamozo - Caminhos

O professor, ensaísta, poeta e compositor gaúcho reforça a ideia de que um amplo espectro de potencialidades existe na mente do ser humano – os diversos caminhos tomados são a expressão dessa potencialidade, assim como, por igual, as sendas não percorridas resultam dessa manifestação do querer (ou seria do “não querer”?!).

Adota Retamozo uma perspectiva mais ampla do que a perfilhada por Robert Frost no poema “The Road Not Taken” (“O Caminho não Tomado”), haja vista que um matiz conotativo invade as suas palavras: caminhos também são as opções pelo amor ou pelo ódio, pela guerra ou pela paz, pela dor e sofrimento ou pela esperança de um mundo melhor.

J.A.R. – H.C.

José Hilário Retamozo
(1940-2004)

Caminhos

Todos os caminhos estão dentro do homem.
Sulco de amor ou cicatriz de ódio
toda palavra é gume oculto e corta
a ingênua intenção do poeta
de semear a paz.

A paz é pasto, o boi que a rumina
perdeu a fé nos comícios dos rodeios.
Acredita no arado e na ração do dia a dia,
no suave cochilar costeando a cerca
da conformação.

A paz é canga, caminhar a dois
– o mínimo da canga e não da carga.
O sulco do arado está no homem, a esperança
do fruto, a esperança da flor está no homem,
no homem dorme a paz.

Todos os caminhos estão dentro do homem.
A dor, a inquietação, o sofrimento
é que fazem o homem abrir esses caminhos,
andar por cima deles,
sofrer por eles e pensar na paz.

Avenida dos álamos no outono
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

Referência:

RETAMOZO, José Hilário. Caminhos. In: WICKERT, Francisco José (Coord. Editorial). Poetas brasileiros. v. I. Edição bilíngue: Português & Espanhol. Porto Alegre, RS: Sul-Americana Editores, 1992. p. 109. (Coleção ‘Poetas Latino-Americanos’; v. I)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Donald Hall - Afirmação

Mais um poema sobre o envelhecimento, de como ele a tudo atinge – mesmo que, de início, não percebamos o potencial da morte em nossas vidas –, tornando os relacionamentos menos coesos, até que, por fim, se rompem, quer pelo passamento quer pelo simples decurso do tempo. Afinal, seria um despropósito afirmar que o amor também “prescreve”?! (rs).

Mas apesar de todas as perdas, cumpre-nos seguir o curso e não ficar evocando lembranças do tempo da juventude, quando não nos cansávamos tão facilmente: cada fase da vida deve ser usufruída a contento, pois a idade avança e não espera por aqueles que deixaram de cumprir uma vontade no momento oportuno!

J.A.R. – H.C.

Donald Hall
(1928-2018)

Affirmation

To grow old is to lose everything.
Aging, everybody knows it.
Even when we are young,
we glimpse it sometimes, and nod our heads
when a grandfather dies.
Then we row for years on the midsummer
pond, ignorant and content. But a marriage,
that began without harm, scatters
into debris on the shore,
and a friend from school drops
cold on a rocky strand.
If a new love carries us
past middle age, our wife will die
at her strongest and most beautiful.
New women come and go. All go.
The pretty lover who announces
that she is temporary
is temporary. The bold woman,
middle-aged against our old age,
sinks under an anxiety she cannot withstand.
Another friend of decades estranges himself
in words that pollute thirty years.
Let us stifle under mud at the pond’s edge
and affirm that it is fitting
and delicious to lose everything.

Casal de Velhos
James Coates: pintor inglês

Afirmação

Tornar-se velho é tudo perder.
Senectude, todo mundo a conhece.
Mesmo quando somos jovens,
às vezes a vislumbramos, e assentimos com a cabeça
quando nos morre um avô.
Então pomo-nos a vogar em pleno verão
na lagoa, ignorantes e contentes. Mas um matrimônio,
que começou sem maldade, dispersa-se
em escombros na orla,
e um amigo da escola tomba
frio sobre uma praia rochosa.
Se um novo amor nos leva
além da meia idade, nossa esposa morrerá
em seu mais saudável e belo momento.
Novas mulheres chegam e partem. Todas partem.
A bela amante que anuncia
ser temporária
é de fato temporária. A mulher ousada,
de meia idade frente à nossa velhice,
abate-se numa ansiedade que não pode suportar.
Outro amigo de décadas se enreda
em palavras que contaminam trinta anos.
Sufoquemo-nos sob o lodo à beira da lagoa
e afirmemos que é apropriado
e delicioso tudo perder.

Referência:

HALL, Donald. Affirmation. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 224.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Cesar Vallejo - Os Anéis Fatigados

Num combate de amor e de morte, o poeta se encontra no limite de suas forças, a padecer de ânsias que lhe dilaceram o espírito, sendo a felicidade uma impossibilidade, uma vez que a vida se desenrola pelo confronto de opostos irreconciliáveis – em suas palavras, consistentes em momentos em que “há ânsias de viver” e outros tantos em que “há ânsias de morrer”.

E Vallejo atribui a Deus tal impedimento de ventura e o reprova por isso, censurando-o com um “dedo deicida”. Nesse contexto, a sina humana não há de se alterar – morrerá e morrerá vezes sem conta –, de modo a configurar os intitulados “anéis fatigados”, enquanto “Deus, curvado em tempo, repete-se, e passa, passa carregando a espinha dorsal do Universo”.

J.A.R. – H.C.

Cesar Vallejo
(1892-1938)

Los Anillos Fatigados

Hay ganas de volver, de amar, de no ausentarse,
y hay ganas de morir, combatido por dos
aguas encontradas que jamás han de istmarse.

Hay ganas: de un gran beso que amortaje a la Vida,
que acaba en el áfrica de una agonía ardiente,
suicida!

Hay ganas de... no tener ganas. Señor;
a ti yo te señalo. con el dedo deicida:
hay ganas de no haber tenido corazón.

La primavera vuelve, vuelve y se irá. Y Dios,
curvado en tiempo, se repite, y pasa:  pasa:
a cuestas con la espina dorsal del Universo.

Cuando, las sienes tocan su lúgubre tambor...
cuando me duele el sueño grabado en un puñal,
hay ganas de quedarse plantado en este verso!

En: “Los heraldos negros” (1918)

A Dança do Universo
(Sara Wallace: pintora canadense)

Os Anéis Fatigados

Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.

Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na áfrica de uma agonia ardente,
suicida!

Há ânsias de... não ter ânsias, Senhor;
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.

A primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.

Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de fiar plantado neste verso!

Em: “Os mensageiros negros” (1918)

Referências:

Em Espanhol

VALLEJO, Cesar. Los anillos fatigados. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 jun. 2019.

Em Português

VALLEJO, Cesar. Os anéis fatigados. Tradução de José Bento. In: VALLEJO, Cesar. Antologia. Selecção, tradução e prólogo de José Bento. Porto, PT: Limiar, 1981. p. 22. (Coleção ‘Os olhos e a memória’; v. 16)