Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Paulo Henriques Britto - Pessoana

Redigido ao estilo do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), estes versos do escritor, tradutor e também poeta carioca buscam apreender o que de enigmático e heteronômico há no sujeito lírico, esse labirinto de imaginárias essências, réplicas de si mesmas, autêntico signo caleidoscópico a partir do qual se projetam irrepetíveis efígies do ser.

 

Ser que se revela por identidade à profusão de sentimentos que lhe vão na alma, daí porque ilimitado, a vagar numa nuvem contingente do espaço-tempo, a decantar-se numa profusão de escritos que, por isso mesmo, não se prestam a desvendar-lhe exatamente o centro, haja vista que pêndulo a perscrutar aleatoriamente os inúmeros polos desse ente sibilino.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paulo Henriques Britto

(n. 1951)

 

Pessoana

 

Quando não sei o que sinto

sei que o que sinto é o que sou.

Só o que não meço não minto.

 

Mas tão logo identifico

o não-lugar onde estou

decido que ali não fico,

 

pois onde me delimito

já não sou mais o que sou

mas tão somente me imito.

 

De ponto a ponto rabisco

o mapa de onde não vou,

ligando de risco em risco

 

meus equívocos favoritos,

até que tudo que sou

é um acúmulo de escritos,

 

penetrável labirinto

em cujo centro não estou

mas apenas me pressinto

 

mero signo, simples mito.

 

Quem sou eu?

(Alexander Moldavanov: artista russo)

 

Referência:

 

BRITTO, Paulo Henriques. Pessoana. In: SAVARY, Olga (Organização, seleção, notas e apresentação). Antologia da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Rio / Hipocampo, 1992. p. 238.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Jaime Quezada - Solitário

É o cotidiano de um solteirão que se vem a conhecer com estes versos: mal alimentado, tendo alucinações, põe-se a redigir uma carta a um amigo que há muito faleceu. Chega mesmo a reconhecer que precisa de uma companheira, mas logo se entretém com um filme na televisão e, desse modo, a vida segue... e a carta fica à espera.

 

Rotina desregrada, sem qualquer sentido de precedência em relação aos seus afazeres – ou isto ou aquilo, tanto faz. Em determinado ponto, o falante hesita entre se masturbar ou rezar, e, nesse ponto, ou bem faz rir os impudentes da hora ou bem infunde uma carranca de censura no semblante dos mais puritanos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jaime Quezada

(n. 1942)

 

Solitario

 

Alguien toca los vidrios de la ventana

Yo estoy desnudo escribiendo una carta

A un amigo muerto hace un montón de años

Me asomo a la ventana y no hay nadie

Sólo un gato camina por el muro vecino

Debe ser el viento digo

Vuelvo a sentarme a la máquina

Alguien ha borrado lo que yo había escrito

Se nota claramente que lo han borrado

Quién diablos ha hecho esto

Abro el closet

Busco debajo de la cama

Muevo la mesa

Debo estar viendo visiones

Hace tres días que no como

Empiezo de nuevo a escribir la carta

Le cuento lo difícil que está la vida

Que sería bueno pensar en un viaje

Ahora mueven la puerta

Alguien da golpes con la aldaba

Pregunto que quién es

Nadie responde

Mi cuerpo se pone carne de gallina

Disimulo tener valor y abro la puerta

Adelante digo bondadosamente

No entra nadie

Debo estar loco

Estoy perdiendo el juicio

Me hace falta una mujer

Haré pedazos esta carta

Retiro el papel de la máquina

Apago la luz

Dudo si masturbarme o rezar

En ese momento me acuerdo de una película en la T.V.

Enciendo el televisor

Mañana escribiré la carta.

 

Homem visto de costas

(Tithi Luadthong: artista tailandesa)

 

Solitário

 

Alguém toca as vidraças da janela

Estou nu escrevendo uma carta

A um amigo que morreu há muitos anos

Olho pela janela e não há ninguém

Apenas um gato caminha pelo muro vizinho

‘Deve ser o vento’ digo

Volto a sentar-me diante da máquina

Alguém apagou o que eu havia escrito

Nota-se claramente que o deletaram

Quem diabos fez isto

Abro o closet

Procuro embaixo da cama

Arredo a mesa

Devo estar tendo visões

Faz três dias que não como

Começo de novo a escrever a carta

Conto-lhe como a vida está difícil

Que seria bom pensar em uma viagem

Agora movem a porta

Alguém bate com a aldraba

Pergunto ‘quem é’

Ninguém responde

Meu corpo fica arrepiado

Finjo ter coragem e abro a porta

‘Adiante’ digo gentilmente

Não entra ninguém

Devo estar louco

Estou perdendo o juízo

Faz-me falta uma mulher

Rasgarei esta carta em pedaços

Retiro o papel da máquina

Apago a luz

Hesito entre masturbar-me ou rezar

Nesse instante lembro-me de um filme na TV

Ligo o televisor

Amanhã escreverei a carta.

 

Referência:

 

QUEZADA, Jaime. Solitario. In: COCO, Emilio (Comp.). Il fiore della poesia latinoamericana d’oggi. Secondo volume – America meridionale – I. Edizione trilingue: spagnolo/portoghese x italiano. Rimini, IT: Raffaelli Editore, ottobre 2016. p. 116 e 118. (‘Poesia Presente’; v. 6)

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Bertolt Brecht - Perguntas de um Operário que Lê

Em livros de História, o operário lê os nomes de grandes homens que erigiram monumentos, praças, prédios, palácios e até cidades, mas em nenhum deles são mencionados os obreiros ou se prestam tributos aos trabalhadores que, de fato, construíram tudo quanto se vê de mais concreto na realidade.

 

A elocução marxista do poema de Brecht quase se assemelha à do poema “O Operário em Construção”, de Vinicius de Moraes: nota-se o propósito de conscientização política do trabalhador, a postulação de uma mirada crítica em relação às “verdades” históricas, visando a uma guinada nos princípios de ação, para que, desse modo, se possa ascender a algo mais próximo da justiça social.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bertolt Brecht

(1898-1956)

 

Fragen Eines Lesenden Arbeiters

 

Wer baute das siebentorige Theben?

In den Büchern stehen die Namen von Königen.

Haben die Könige die Felsbrocken herbeigeschleppt?

Und das mehrmals zerstörte Babylon –

Wer baute es so viele Male auf? In welchen Häusern

Des goldstrahlenden Lima wohnten die Bauleute?

Wohin gingen an dem Abend, wo die ChinesischeMauer

fertig war

Die Maurer? Das große Rom

Ist voll von Triumphbögen. Wer errichtete sie? Über wen

Triumphierten die Cäsaren? Hatte das vielbesungene Byzanz

Nur Paläste für seine Bewohner? Selbst in dem sagenhaften

Atlantis

Brüllten in der Nacht, wo das Meer es verschlang

Die Ersaufenden nach ihren Sklaven.

Der junge Alexander eroberte Indien.

Er allein?

Cäsar schlug die Gallier.

Hatte er nicht wenigstens einen Koch bei sich?

Philipp von Spanien weinte, als seine Flotte

Untergegangen war. Weinte sonst niemand?

Friedrich der Zweite siegte im Siebenjährigen Krieg. Wer

Siegte außer ihm?

Jede Seite ein Sieg.

Wer kochte den Siegesschmaus?

Alle zehn Jahre ein großer Mann.

Wer bezahlte die Spesen?

So viele Berichte.

So viele Fragen.

 

Um trabalhador lendo

(Pablo O’Higgins: artista méxico-americano)

 

Perguntas de um Operário que Lê

 

Quem construiu Tebas, a de sete portas?

Nos livros, ficam os nomes dos reis.

Os reis arrastaram os blocos de pedra?

Babilônia, muitas vezes destruída,

Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas

De Lima auri-radiosa moravam os obreiros?

Para onde foram, na noite em que ficou pronta a muralha

da China,

Os pedreiros? A grande Roma

Está cheia de arcos de triunfo. Quem os erigiu? Sobre quem

Triunfaram os Césares? Bizâncio multicelebrada

Tinha apenas palácios para seus habitantes? Mesmo na

legendária Atlantis,

Na noite em que o mar a sorveu,

Os que se afogavam gritavam por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Ele sozinho?

César bateu os gauleses.

Não levava pelo menos um cozinheiro consigo?

Felipe de Espanha chorou, quando sua armada

Foi a pique. Ninguém mais teria chorado?

Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem

Venceu junto?

Por todo canto uma vitória.

Quem cozinhou o banquete da vitória?

Cada dez anos um grande homem.

Quem pagou as despesas?

Histórias de mais.

Perguntas de menos.

 

Referência:

 

BRECHT, Bertolt. Fragen eines lesenden arbeiters / Perguntas de um operário que lê. Tradução de Haroldo de Campos. CAMPOS, Haroldo de. Breve antologia de Bertolt Brecht. Fragmentos – Revista de Língua e Literatura Estrangeira, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis (SC), v. 5 n. 1, p. 143-155, jan. 1995. Em alemão: p. 146; em português: p. 147. Disponível neste endereço. Acesso em: 23 set. 2022.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Maria Rita Kehl - Materialismo Vulgar

Com um título aludindo à corrente filosófica surgida na Alemanha, em meados do século XIX, a defender a ideia da indissociabilidade entre força e matéria – ou, na vulgata, a noção de que o cérebro segrega o pensamento, da mesma maneira que o fígado segrega a bílis –, Maria Rita sonha em dar volta à tirania suscitada por nossa completa imersão no mundo do trabalho, em detrimento de uma agenda mais lúdica ou inventiva.

 

Com efeito, o propósito maior da poetisa campineira é desvelar o quanto o ‘modus vivendi’ em que estamos imersos, materialista até a medula, cerceia a livre manifestação da poesia, pois que nos rouba o tempo da mansuetude e da contemplação, necessárias para que ela se esparja pela senda do que de mais sublime o ser humano é capaz de manifestar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Maria Rita Kehl

(n. 1951)

 

Materialismo Vulgar

 

Não é democrática a poesia.

Ela se esconde

(digamos)

se dificulta, fica

quase inacessível

para os que têm que acordar

pelas sete da manhã

(a menos que pinte

no banho

na pia

na pressa

no prato

na janta – mas aí

não passa de soluço

inacabado

entre a barriga e a garganta).

E o poeta sonha envergonhado

secreta ideia

que nada entende

de economia:

devolvam aos homens seu tempo

seu corpo

pois a poesia

devassa os sentidos

quando despertada

penetra a vontade

ou brota aos pedaços

em horas pouco indicadas.

Devolvam aos homens

seu tempo

seu corpo

e a poesia

será liberada.

 

Mix de flores numa cornucópia

(Thomas Robins: pintor inglês)

 

Referência:

 

KEHL, Maria Rita. Materialismo vulgar. In: SAVARY, Olga (Organização, seleção, notas e apresentação). Antologia da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Rio / Hipocampo, 1992. p. 206.