Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Bertolt Brecht - O Barco

Envoltas em linguagem metafórica e simbólica, com motivos marinhos e atmosfera sombria, estas estâncias de Brecht exploram temas universais como a jornada da vida, a deterioração física e o indefectível aniquilamento do que quer que esteja sob o domínio do tempo, servindo como uma parábola para a condição humana, um misto de vãs esperanças e de incertezas em relação ao futuro.

 

Nessa viagem por incógnitos mares não há quem não se sinta por vezes perdido: somos como esse navio-fantasma que se desintegra aos poucos, conscientes de nossa transitoriedade, e, quanto mais vazios, mais rendidos interiormente a criaturas extraportas, enquanto deslizamos “onustos e silenciosos em direção a pálidos céus”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bertolt Brecht

(1898-1956)

 

Das Schiff

 

Durch die klaren Wasser schwimmend vieler Meere

Löst ich schaukelnd mich von Ziel und schwere

Mit den Haien ziehend unter rotem Mond.

Seit mein Holz fault und die Segel schlissen

Seit die Seile modern, die am Strand mich rissen

Ist entfernter mir und bleicher auch mein Horizont.

 

Und seit jener hinblich und mich diesen

Wassern die entfernten Himmel ließen

Fühl ich tief, daß ich vergehen soll.

Seit ich wußte, ohne mich zu wehren

Daß ich untergehen soll in diesen Meeren

Ließ ich mich den Wassern ohne Groll.

 

Und die Wasser kamen, und sie schwemmten

Viele Tiere in mich, und in fremden

Wänden freundeten sich Tier und Tier.

Einst fiel Himmel durch die morsche Decke

Und sie kannten sich in jeder Ecke

Und die Haie blieben gut in mir.

 

Und in vierten Monde schwammen Algen

In mein Holz und grünten in den Balken:

Mein Gesicht ward anders noch einmal.

Grün und wehrend in den Eingeweiden

Fuhr ich langsam, ohne viel zu leiden

Schwer mit Mind und Pflanze, Hai und Wal.

 

Möw’ und Algen war ich Ruhestätte

Schuldlos immer, daß ich sie nicht rette.

Wenn ich sinke, bin ich schwer und voll.

Jetzt, im achten Monde, rinnen Wasser

Häufiger in mich. mein Gesicht wird blasser.

Und ich bitte, daß es enden soll.

 

Fremde Fischer sagten aus: Sie sahen

Etwas nahen, das verschwamm beim Nahen.

Eine Insel? Ein verkommnes Floß?

Etwas fuhr, schimmernd von Möwenkoten

Voll von Alge, Wasser, Mond und Totem

Stumm und dick auf den erbleichten Himmel los.

 

Duas figuras em um pequeno barco

(Andrew Wyeth: pintor norte-americano)

 

O Barco

 

Flutuando em águas claras de muitos mares

desprendi-me balouçando de meta e peso,

ao seguir com os tubarões sob a lua vermelha.

Desde que meu lenho apodrece e as velas puem,

desde que o mofo rompe as amarras que à praia me prendiam,

mais distante e esmaecido me parece o horizonte.

 

E desde que aquele esmaeceu e me abandonaram

e estas águas, os céus distantes,

senti no fundo que devia acabar.

E desde que sabia sem me revoltar

que havia de afundar-me nestes mares,

entreguei-me às águas sem ressentimento.

 

E as águas vieram e logo trouxeram

muitos animais para o meu bojo

que entre as paredes se aproximavam.

O céu já varara o convés podre,

a amizade nascia em cada canto;

até mesmo os tubarões tornaram-se bons em mim.

 

E na quarta lua as algas flutuavam

na minha madeira e verdejavam nos vaus;

meu aspecto mudou-se mais uma vez.

Oscilante e verde em minhas entranhas

seguia devagar sem muito padecer,

pesado de lua, tubarão e baleia.

 

Asilo, fui para gaivotas e algas,

sem culpa porém por não salvá-las

quando afundar-me pesado e cheio.

Agora, na oitava lua, as águas

penetram mais amiúde em mim,

minha face empalidece e rogo que tudo termine.

 

Pescadores de outras águas atestaram: viram

algo indefinível boiar no alto mar.

Uma ilha? Uma balsa abandonada? Algo

fosforescente de excremento de gaivotas,

repleto de lua, algas e morte,

dirigia-se calado ao pálido céu.

 

Folhetim, 24.03.85

 

Referências:

 

Em Alemão

 

BRECHT, Bertolt. Das Schiff. In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (Einger.). Das museum der modernen poesie. 1. aufl. Frankfurt am Main, DE: Suhrkamp Verlag, 2002. s. 225-226.

 

Em Português

 

BRECHT, Bertolt. O barco. Tradução de Roswitha Kempf e Margarida Finkel. In: SUZUKI JR., Matinas; ASCHER, Nelson (Orgs.). Folhetim: poemas traduzidos. São Paulo, SP: Folha de São Paulo, 1987. p. 13-14.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Paulo Leminski - Asas e Azares

Com aquela sua escrita sempre concisa e, ao mesmo tempo, tendente a múltiplos sentidos, em que os significantes, por igual, exercem papel de relevo, pois que, com frequência, selecionados em razão de paronímia ou homonímia, Leminski percute nestes versos a lira da resiliência, da coragem para superar desafios e do uso eficaz da liberdade de escolha, em linha – claro está – com os parâmetros que cada qual vislumbra para os seus próprios “voos”.

 

Com efeito, a assunção de um estado emancipatório em relação à vida que se leva, bem assim o sobrepujamento dos contratempos e reveses que vez por outra nos alcançam, compensam quaisquer sofrimentos decorrentes de uma “asa ferida”. Afinal, “a dor de voar não existe” , além de que, tal como se diz entre os operadores do mercado financeiro, para maiores ganhos maiores riscos!

 

J.A.R. – H.C.

 

Paulo Leminski

(1944-1989)

 

Asas e Azares

 

Voar com asa ferida?

Abram alas quando eu falo.

Que mais foi que fiz na vida?

Fiz, pequeno, quando o tempo

estava todo do meu lado

e o que se chama passado,

passatempo, pesadelo,

só existia nos livros.

Fiz, depois, dono de mim,

quando tive que escolher

entre um abismo, o começo,

e essa história sem fim.

Asa ferida, asa

ferida,

meu espaço, meu herói.

A asa arde. Voar, isso não dói.

 

Vento sob minhas asas

(Christine Alfery: artista norte-americana)

 

Referência:

 

LEMINSKI, Paulo. Asas e azares. In: SAVARY, Olga (Organização, seleção, notas e apresentação). Antologia da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Rio / Hipocampo, 1992. p. 240.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Don Paterson - Poesia

Sob a forma de um soneto, o escritor e músico escocês lança um olhar introspectivo sobre a práxis poética e sua íntima e consolidada relação com a flama de um amor que a ignifica, ou de outro modo, a poesia sempre a comportar algo de etéreo e intangível, a capturar o lado mais imanente, diria até mais magnificente e sublime, do manancial de onde emerge para o mundo.

 

A tônica da poesia resultaria, segundo o poeta, concentrada e incólume à passagem do tempo, efundida no leito da impessoalidade, quando não carregada de referências específicas ou de hiperbólicos egos, suscitadores de emoções que, em última instância, sobrecarregariam o discurso poético: o que o falante tem em mira, parece-me, é o assentar de uma escrita cujos sentidos transcendam a individualidade pura e simples, conectando-se a algo maior e mais profundo, em laço tenaz com a fértil energia do amor.

 

J.A.R. – H.C.

 

Don Paterson

(n. 1963)

 

Poetry

 

In the same way that the mindless diamond keeps

one spark of the planet’s early fires

trapped forever in its net of ice,

it’s not love’s later heat that poetry holds,

but the atom of the love that drew it forth

from the silence: so if the bright coal of his love

begins to smoulder, the poet hears his voice

suddenly forced, like a bar-room singer’s – boastful

with his own huge feeling, or drowned by violins;

but if it yields a steadier light, he knows

the pure verse, when it finally comes, will sound

like a mountain spring, anonymous and serene.

 

Beneath the blue oblivious sky, the water

sings of nothing, not your name, not mine.

 

Amor Eterno

(David Renshaw: artista inglês)

 

Poesia

 

Do mesmo modo que o diamante bruto mantém

uma centelha das primeiras labaredas do planeta

aprisionada para sempre em sua rede de cristais,

não é o calor tardio do amor que a poesia guarda,

senão o átomo de amor que a fez irromper

do silêncio: assim, se o luzente carvão de seu amor

começa a arder, o poeta escuta a própria voz de repente

forçada, como a de um cantor de bar – jactanciosa

com o seu íntimo e vasto sentir, ou abafada por violinos;

mas caso produza uma luz mais estável, sabe ele

que o verso puro, quando finalmente chegar, soará

como um manancial serrano, anônimo e sereno.

 

Sob o firmamento azul do oblívio, a água

nada canta, nem o teu nome, tampouco o meu.

 

Referência:

 

PATERSON, Don. Poetry. In: COLLINS, Billy (Sel. & Int.). Poetry 180: a turn back to poetry. An anthology of contemporary poems. New York, NY: Random House, 2003. p. 87.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Elizabeth Bishop - Anáfora

Numa sucessão de momentos preciosos e efêmeros transcorre a vida, dia após dia, num ciclo interminável, cada dia um reinício, uma nova oportunidade para experiências e lucubrações, como se uma “anáfora” fosse – essa homônima figura de linguagem a consistir numa repetição de palavras ou de expressões no início de versos ou de estrofes, para enfatizar o termo que se repete.

 

E o que se repete vem a modo de um ritual, com certo sentido devocional, numa sequência de eventos radiante, especular, sublime, e, ao mesmo tempo, tão terrena quanto a lida humana, as tramas da vida em que enleado o homem, nefastamente afadigado, além de que atormentado pelo peso de suas memórias e sujeito aos caprichos do tempo e das circunstâncias.

 

J.A.R. – H.C.

 

Elizabeth Bishop

(1911-1979)

 

Anaphora

 

in memory of Marjorie Carr Stevens

 

Each day with so much ceremony

begins, with birds, with bells,

with whistles from a factory;

such white-gold skies our eyes

first open on, such brilliant walls

that for a moment we wonder

“Where is the music coming from, the energy?

The day was meant for what ineffable creature

we must have missed?” Oh promptly he

appears and takes his earthly nature

instantly, instantly falls

victim of long intrigue,

assuming memory and mortal

mortal fatigue.

 

More slowly falling into sight

and showering into stippled faces,

darkening, condensing all his light;

in spite of all the dreaming

squandered upon him with that look,

suffers our uses and abuses,

sinks through the drift of bodies,

sinks through the drift of classes

to evening to the beggar in the park

who, weary, without lamp or book

prepares stupendous studies:

the fiery event

of every day in endless

endless assent.

 

In: “North & South” (1946)

 

O amanhecer a leste

(Caspar David Friedrich: artista alemão)

 

Anáfora

 

in memoriam de Marjorie Carr Stevens

 

Cada dia, cerimonioso,

começa com pássaros, e fábricas

a apitar, estrepitosas;

diante de céus aurialvos

tão claros nossos olhos se abrem,

e por um instante perguntamos:

“De onde esta força, esta melodia?

Para qual inefável criatura

que não vimos, foi feito este dia?”

Logo, logo ela surge, e assume

sua natureza terrena

e cai vítima da intriga,

sob o ônus da memória,

da mortal, mortal fadiga.

 

Mais lentamente, aparecem

os rostos sarapintados,

condensam sua luz, e a escurecem;

apesar de tantos sonhos

gastos nela em tal olhar,

atura nosso uso e abuso,

mergulha no fluxo de corpos,

mergulha no fluxo de classes

até chegar ao mendigo exausto

sem livro, sem luz, no lusco-fusco,

imerso em estupendos estudos:

este incandescente evento

de cada dia em constante

constante consentimento.

 

Em: “Norte & Sul” (1946)

 

Referência:

 

BISHOP, Elizabeth. Anaphora / Anáfora. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 1. ed., 2. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 160; em português: p. 161.