Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 14 de março de 2025

Giovanni Pascoli - A passagem

Do distanciamento e da melancolia, da escuridão em meio a um frio inóspito à luminosidade de uma outra aurora, de um recomeço cheio de possibilidades: se o cisne a que se refere Pascoli for o poeta, seu canto representaria a poesia e o clarão verde toda a esperança em que envolto o seu percurso, em busca do sublime através da arte.

 

O harmônico encanto do mundo natural se imbrica com a beleza de uma vida que aspira a um estado mais apurado de magnificência, sendo vã ou não a ideia de imortalidade que a acompanha: eis a passagem transformadora que se impõe à jornada não só do poeta, senão à de todos aqueles que esperam deitar lustros a um novo estado de ser, possibilitando a perpetuação da memória.

 

J.A.R. – H.C.

 

Giovanni Pascoli

(1855-1912)

 

Il transito

 

Il cigno canta. In mezzo delle lame

rombano le sue voci lunghe e chiare,

come percossi cembali di rame.

 

È l’infinita tenebra polare.

Grandi montagne d’un eterno gelo

póntano sopra il lastrico del mare.

 

Il cigno canta; e lentamente il cielo

sfuma nel buio, e si colora in giallo;

spunta una luce verde a stelo a stelo.

 

Come arpe qua e là tocche, il metallo

di quella voce tìntina; già sfiora

la verde luce i picchi di cristallo.

 

E nella notte, che ne trascolora,

un immenso iridato arco sfavilla,

e i portici profondi apre l’aurora.

 

L’arco verde e vermiglio arde, zampilla,

a frecce, a fasci; e poi palpita, frana

tacitamente, e riascende e brilla.

 

Col suono d’un rintocco di campana

che squilli ultimo, il cigno agita l’ale:

l’ale grandi grandi apre, e s’allontana

 

candido, nella luce boreale.

 

Um cisne sozinho ao luar

(Janet Argenta: fotógrafa norte-americana)

 

A passagem

 

O cisne canta. No meio do brejo

seu vozear ressoa longo e claro,

como a percussão de címbalos de cobre.

 

É a infinita escuridão polar.

Grandes montanhas de um gelo eterno

prolongam-se sobre as placas do mar.

 

O cisne canta; e lentamente o céu

abisma-se no escuro e se tinge de amarelo;

gradualmente irrompe um clarão verde.

 

Como harpas tocadas aqui e ali, o timbre

metálico daquela voz retine; já incide

a luz verde no topo dos maciços de cristal.

 

E na noite, que se desvanece,

cintila um imenso arco iridescente,

rompendo a aurora entre profundas arcadas.

 

O arco verde e vermelho arde, jorra,

em setas, em feixes; e então lateja, esboroa-se

em silêncio, reaparece e volta a brilhar.

 

Com o som de um badalar de sino

em seus últimos fragores, o cisne agita as asas:

as grandes e longas asas se abrem, e ele se afasta,

 

branco como a neve, rumo à luz boreal.

 

Referência:

 

PASCOLI, Giovanni. Il transito. In: __________. Tutte le poesie. A cura di Arnaldo Colasanti. Traduzione e cura delle poesie Ialine di Nora Calzolaio. Edizione integrale. Seconda edizione. Roma, IT: Grandi Tascabili Economici Newton, nov. 2001. p. 161. (‘I Mammut’; n. 72)

quinta-feira, 13 de março de 2025

Ramón Mendoza Montes - Como pesam os mortos

O poeta e jornalista mexicano detém-se, neste poema, a comentar sobre o peso dos falecidos na vida dos vivos, explorando a ideia de como os mortos continuam a viver dentro de nós, influenciando o nosso existir, as nossas percepções e experiências quotidianas, ou ainda, de como as imagens de seu legado e memória são-nos suficientemente renitentes, entranhando-se amiúde nas gerações pósteras.

 

A referência aos heliotrópios, plantas que se viram para seguir o sol, sugere que, mesmo perante a escuridão e a morte, há uma tendência, inata e geral, de se voltar à vida e à luz, do que se depreende que a aludida influência dos mortos tem motilidade e viço, isto é, não é estática como se poderia presumir, pois que as nossas identidades individuais diluem-se num “continuum”, a se desdobrar dos antepassados aos seus sucessores.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vinheta do Livro dos Mortos

mostrando o teste da Pesagem do Coração

(Arte egípcia)

 

Cómo pesan los muertos

 

Oh, cómo pesan los muertos

que van viviendo en nosotros,

que pisan con nuestros pasos

y miran con nuestros ojos.

 

¡Cómo me siento cansado

quando veo que no veo solo,

que todos los muertos miran,

conmigo, los heliotropos!

 

Este no ser sino imagen

de seres casi ruinosos

que se cayeron sabiendo

que brotarían em mi rostro.

 

Y este pensar que mañana

he de ver por otros ojos

estando siempre escondido

en las líneas de outro rostro.

 

Ilha dos Mortos: versão “Basileia”

(Arnold Böcklin: artista suíço)

 

Como pesam os mortos

 

Oh, como pesam os mortos

que vão vivendo em nós outros,

que pisam com os nossos passos

e miram com os nossos olhos!

 

Como me sinto cansado

ao ver que não vejo só,

que todos os mortos miram,

comigo, os heliotrópios!

 

Este não ser mais que imagem

de seres quase ruinosos

que se tombaram sabendo

que brotavam no meu rosto.

 

E este pensar que mais tarde

hei de ver por outros olhos,

estando sempre escondido

nas linhas de um outro rosto.

 

Referência:

 

MONTES, Ramón Mendoza. Cómo pesan los muertos / Como pesam os mortos. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (Organização, seleção e tradução). Grandes vozes líricas hispano-americanas. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1990. Em espanhol: p. 348; em português: p. 349. (‘Poesia de Todos os Tempos’)

quarta-feira, 12 de março de 2025

Ana Martins Marques - Espelho

Mais que mera imagem física, um espelho dentro de um armário é a metáfora perfeita para a poetisa, suscitando uma atmosfera sugestiva e enigmática de elementos contrastantes – como a luz e a escuridão ou a presença e a ausência –, ocupar-se de um espaço íntimo e privado, a refletir a sua mirada introspectiva acerca do que parece configurar certa vacuidade no viver, entretecida por nébulas de retraimento e solidão.

 

Ao sair do quarto, deixando a porta do armário aberta ou fechada, configuram-se as mediações graduadas de exposição da falante perante o mundo, ali a arriscar-se pela vulneração de sua intimidade, e aqui a comedir-se pelo resguardo de seus hiatos, de seus intermúndios, por trás de uma pretensa fachada de segurança – o que concorre para a sobredita sensação de reclusão.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ana Martins Marques

(n. 1977)

 

Espelho

 

Dentro do armário

do seu quarto de dormir

deve haver um espelho.

 

Se você sai

e deixa o armário aberto

durante todo o dia

o espelho reflete

um pedaço da sua cama

desfeita.

 

Se você sai

e deixa a porta fechada

durante todo o dia

o espelho reflete o escuro

do seu armário de roupas,

a luz contida dos vidros

de perfume.

 

Do outro lado do poema

não há nada.

 

O quarto do castelo do fantasma do espelho

(Enrico Pelos: artista italiano)

 

Referência:

 

MARQUES, Ana Martins. Espelho. In: JARDIM, Rubens (Pesquisa, seleção e organização). As mulheres poetas na literatura brasileira. v. 3. São Paulo, SP: Edição do Autor, 2018. p. 46.

terça-feira, 11 de março de 2025

Jeremy H. Prynne - Contra a Dor

Num discurso fragmentado, o poeta inglês justapõe imagens aparentemente díspares – dor na cabeça, nuvens, crescimento de árvores, luzes de sódio etc. –, obrigando o leitor a encetar conexões entre elas e a conceber sua própria interpretação para o poema. Nada obstante, penso que se poderia tomá-lo, sem erro, como um tributo ou um gesto de compaixão e de solidariedade por aqueles que sofrem, quer se os concebam como pessoas específicas do círculo de amizades do falante, quer os versos façam referência, mais amplamente, a uma faceta da condição humana.

 

Centrados na experiência da dor – tanto física quanto emocional (“pain” & “hurt”) –, os versos enfatizam a urgência da conexão humana em meio ao sofrimento, para atenuá-lo nestes tempos tão difíceis, numa demonstração de amor incondicional. Noutra mirada, a própria natureza pode nos servir como fonte de consolo, naquilo que externaliza as lancinantes forças subjacentes em suas erupções rumo ao crescimento e à expansão do mundo orgânico, pelo que se pode suscitar um paralelo à ideia de “crescer” por meio dos incidentes que nos causam sofrimento.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jeremy H. Prynne

(n. 1936)

 

Against Hurt

 

Endowed with so much

suffering, they should be / and that

they are so – the pain in the head

which applies to me

and the clouds low over

the horizon: soon it

will be dark.

We love the brief night, for its

quick passing, the relative ease as

we slide into comfort and

the trees grow and

grow. I can hear

every smallest growth

the expanse is grinding with it,

out on the flats beyond, down by

the sodium street lights, in the head:

pain, the hurt to these who are all

companions. Serenity

is their slender means.

There is not much time

left. I love them all, severally and in

the largest honour that there is.

Now and with the least hurt, this

is for you.

 

Dor

(Marie Padden: artista irlandesa)

 

Contra a Dor

 

Dotadas de tanto

sofrimento, deveriam ser / e assim

o são – a dor na cabeça

que a mim se aplica

e as nuvens baixas sobre

o horizonte: daqui a pouco

estará escuro.

Encanta-nos a breve noite, por sua

passagem célere, a relativa facilidade

com que rolamos no conforto, enquanto

as árvores crescem

cada vez mais. Consigo ouvir

as mais pequenas medras,

o rangido da expansão que as acompanha,

o irromper para além dos andares, junto

às luzes de sódio da rua, dentro da cabeça:

o pesar, a dor por esses que são todos

companheiros. A serenidade

é um recurso que se lhes revela escasso.

Já não resta muito

tempo. Amo-os a todos, individualmente e com

a maior honra que possa existir.

Agora e com o mínimo de dor, recebam isto

como um tributo.

 

Referência:

 

PRYNNE, Jeremy H. Agains hurt. In: __________. Poems. 2nd ed. Tarset, EN: Bloodaxe Books; Fremantle, AU: Fremantle Arts Centre Press, 2005. p. 52.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Khalil Gibran - Pedro: sobre o próximo

A partir de um diálogo entre Pedro – o falante da mensagem – e Cristo, este último nos apresenta as suas preleções sobre a compaixão, o amor e a generosidade para com os outros, sentimentos e atitudes que devemos adotar invariavelmente, sem levar em conta a forma como os outros nos tratam, se bem ou mal.

 

Ainda que a caminhar por trás de um muro – notória metáfora para as aparentes diferenças que nos separam das pessoas –, o próximo seria como o nosso “outro eu”, pois que, pertencendo todos à liga humanitária, temos similares experiências, emoções e necessidades.

 

Afinal, somos uma mescla de possibilidades e de contradições, e no outro podemos vê-las em suas fortalezas e fraquezas: se, em nossa individualidade, tememos sempre perder algo ou alguns bens para alguém, não seremos dignos da riqueza de uma “colheita plena” neste campo de provas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Khalil Gibran

(1883-1931)

 

Pedro: sobre o próximo

 

Uma vez em Cafarnaum, meu Senhor e Mestre falou assim: “Vosso próximo é vosso outro eu caminhando atrás de um muro. Com o entendimento, todos os muros caem. Quem sabe esse próximo seja uma manifestação de vosso melhor eu, usando outro corpo? Amai a eles como amais a vós mesmos. Ele também é uma manifestação do Altíssimo, a quem não conheceis. Vosso próximo é um campo onde a primavera da vossa esperança usa um manto verde e onde os invernos de vossos desejos sonham com alturas nevadas. Vosso próximo é um espelho onde ireis contemplar vossas feições embelezadas por uma alegria que vós mesmos não conheceis e por uma tristeza que vós mesmos não compartilhais. Eu gostaria que amásseis vosso próximo como amei a vós”. Então perguntei a Ele: “Como posso amar um vizinho que não me ama e cobiça minha propriedade? Um que roubaria minhas posses?”. E Ele respondeu: “Quando estais arando e vosso servo semeando atrás, pararíeis e espantaríeis um pardal que se alimentasse de umas poucas sementes? Se fizésseis isso, não seríeis dignos das riquezas da colheita”. Quando Jesus disse isso, fiquei envergonhado e permaneci em silêncio. Mas não me preocupei, pois Ele sorria para mim.

 

Cristo entregando as chaves a São Pedro

(Giambattista Pittoni: pintor italiano)

 

Referência:

 

GIBRAN, Khalil. Pedro: sobre o próximo. Tradução de Luiz Fernando Martins. In: __________. Jesus, o filho do homem: suas palavras e seus feitos conforme narrados e registrados por aqueles que o conheceram. Tradução de Luiz Fernando Martins. São Paulo, SP: Martin Claret, 2013. p. 123. (Coleção ‘A obra-prima de cada autor’; v. 198)