Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 18 de março de 2024

Astrid Cabral - Das Coisas

Discorrendo sobre entes efêmeros e duradouros, a falante põe em evidência a distância que nos afasta daquilo que se mantém vocacionado à eternidade – ou quase isso –, coisas que não expressam vida biológica, como a Muralha da China ou as Pirâmides de Gizé, sendo, antes, criações humanas sustentadas por outras combinações da matéria.

 

Mas há também aquelas que, sendo orgânicas, servem-nos como alimentos oferecidos pela natureza, assimiladas na constância de nossos limitados dias sobre este globo. Ademais, em paralela conjunção, tem-se a imensa massa de lixo produzida pelas sociedades industriais, de conteúdo orgânico e inorgânico, a evidenciar o acerbo desperdício de recursos, os quais, num futuro que se presume não tão distante, haverão de nos fazer falta.

 

J.A.R. – H.C.

 

Astrid Cabral

(n. 1936)

 

Das Coisas

 

Algumas são perecíveis.

As comestíveis, por exemplo,

tão assimiláveis e semelhantes

nas urgências e desgastes do corpo

tão irmãs no destino decadente

mergulham conosco na voragem.

 

Outras são descartáveis

e se afastam de nós cada vez mais

rejeitadas por nossos gestos

rebaixadas a lixo e ainda assim

recicláveis com direito pleno

à metamorfose e reencarnação.

 

Grande parte das coisas

é de assombrosa resistência

matéria incólume pelas eras

muralhas e pirâmides de pedra,

pontes, arcos e torres de ferro,

coroas de ouro e diamante.

 

Efêmeros seres em trânsito,

devemos conviver com presenças

tão duradouras que até diríamos

participantes da eternidade.

Destas mantemos distância

devido às incompatíveis esferas.

 

Em: “Voz das Coisas” (1979)

 

Um Arco da Ponte de Westminster

(Samuel Scott: pintor inglês)

 

Referência:

 

CABRAL, Astrid. Das coisas. In: __________. 50 poemas escolhidos pelo autor: Astrid Cabral. Rio de Janeiro, RJ: Edições Galo Branco, 2008. p. 79. (Coleção ’50 poemas escolhidos pelo autor’; v. 28)

domingo, 17 de março de 2024

Robert Desnos - Conto de Fada

A julgar pela inflexão destes versos de Desnos, contrariamente ao que afirmava Vinicius de Moraes, a vida seria a arte do desencontro, embora, eventualmente, possa haver alguns encontros pela vida (rs): é fácil perceber o quanto o poema abeira-se da mesma temática de um outro, intitulado “Quadrilha”, do mineiro Carlos Drummond de Andrade, a indicar uma sucessão de relações interpessoais fracassadas – mesmo a de Lili com seu esposo J. Pinto Fernandes, decerto marcada por um jogo de interesses não exatamente de ordem amorosa, pois Lili “não amava ninguém”.

 

O falante revela-se, em certa medida, cético em relação a um liame amoroso recíproco: talvez ele esteja cingido à ideia de que, se alguém anda à solta, há um indicativo de experimentação da liberdade em primeiro grau – se homem –, e – se mulher – o padecimento por um desprazer cominado pela solidão.

 

Sob essa régua, poder-se-ia especular, v.g., que Lili teria contraído matrimônio com J. Pinto Fernandes para escapar à solidão, deixando assim de se tornar a “titia” do estigmatizante linguajar do povo. Mas olhe-se lá que, hoje em dia, há mulheres que voluntariamente atribuem extremo valor à sua própria liberdade e não entram em qualquer relacionamento somente por medo à solidão!

 

J.A.R. – H.C.

 

Robert Desnos

(1900-1945)

 

Conte de Fée

 

Il était un grand nombre de fois

Un homme qui aimait une femme

Il était un grand nombre de fois

Une femme qui aimait un homme

Il était un grand nombre de fois

Une femme et un homme

Qui n’aimaient pas celui et celle qui les aimaient

 

Il était une fois

Une seule fois peut-être

Une femme et un homme qui s’aimaient

 

Ivan Tsarevich montando um lobo cinzento

(Viktor Vasnetsov: artista russo)

 

Conto de Fada

 

Era não sei quanta vez

Um homem que amava uma mulher

Era não sei quanta vez

Uma mulher que amava um homem

Era não sei quanta vez

Uma mulher e um homem

Que não amavam aquele e aquela que os amavam

 

Era uma vez somente

Somente uma vez quem sabe

Um homem e uma mulher que se amavam

 

Referência:

 

DESNOS, Robert. Conte de fée / Conto de fada. Tradução de Cláudio Veiga. In: VEIGA, Cláudio (Organização e Tradução). Antologia da poesia francesa (do século IX ao século XX). Edição bilíngue: francês x português. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1991. Em francês: p. 382; em português: p. 383.

sábado, 16 de março de 2024

Roberto Piva - abandonar tudo

Este é o sonho de todo aquele que se percebe preso demais a uma dada conjuntura obsediante, seja no trabalho, seja em seus relacionamentos íntimos, seja porque os elementos contingentes da vida que leva não se alinham aos seus sonhos maiores, decerto de liberdade e de busca por outras paragens, terras distantes, de culturas distintas, plenas de belezas naturais ou erigidas pelo homem.

 

O poema, todo grafado em minúsculas, abre uma única exceção ao trecho final de seu derradeiro verso – “Sonhar Alto” –, porque tal é o sentido último do viver humano! Afinal, de que nos vale a existência se ela não possui um norte maior, ali onde se encontra uma estrela que nos faça despertar todas as manhãs para que corramos ao encalço de nossos maiores anelos, transmutando nossas utopias à própria realidade?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Roberto Piva

(1937-2010)

 

abandonar tudo

 

abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.

poesia em cascatas floridas com aranhas

azuladas nas samambaias.

todo trabalhador é escravo. toda autoridade

é cômica. fazer da anarquia um

método & modo de vida. estradas.

bocas perfumadas. cervejas tomadas

nos acampamentos. Sonhar Alto.

 

Férias de Verão

(Guideli: artista francesa)

 

Referência:

 

PIVA, Roberto. abandonar tudo. In: __________. Antologia poética. Porto Alegre, RS: L&PM, 1985. p. 74. (Coleção ‘Olho da Rua’)

sexta-feira, 15 de março de 2024

Charles Bukowski - ar e luz e tempo e espaço

Bukowski deplora o fato de alguns pretendentes a escritor ou a poeta sustentarem que, encontrando o ambiente ou o lugar ideal que os façam sentir-se confortáveis, certamente poderão desenvolver o seu trabalho com desenvoltura e criatividade, num contexto equilibrado e prazeroso.

 

Mas as coisas nem sempre são exatamente assim: há grandes obras literárias produzidas em situações de carência absoluta ou em condições adversas, agônicas ou frustrantes, como que a demonstrar que o mais importante é o que se passa na mente de seus criadores, muito capazes de transformar obstáculos em oportunidades.

 

Não é porque tudo vai mal no entorno do artista que a sua criatividade necessariamente sofrerá um revés: afirma Bukowski que, no sentido inverso, rodeado de conforto, são acentuadas as chances de o artífice da palavra se desviar de seus propósitos originais, trasladando sua atenção a díspares interesses, tendo, então, de encontrar outras “desculpas” para justificar a sua limitada produção.

 

J.A.R. – H.C.

 

Charles Bukowski

(1920-1994)

 

air and light and time and space

 

“– you know, I’ve either had a family, a job, something

has always been in the

way

but now

I’ve sold my house, I’ve found this

place, a large studio, you should see the space and

the light.

for the first time in my life I’m going to have a place and the

time to

create.”

 

no baby, if you’re going to create

you’re going to create whether you work

16 hours a day in a coal mine

or

you’re going to create in a small room with 3 children

while you’re on

welfare,

you’re going to create with part of your mind and your

body blown

away,

you’re going to create blind

crippled

demented,

you’re going to create with a cat crawling up your

back while

the whole city trembles in earthquake, bombardment,

flood and fire.

 

baby, air and light and time and space

have nothing to do with it

and don’t create anything

except maybe a longer life to find

new excuses

for.

 

Tempo e Espaço

(Alayna Borowy: artista norte-americana)

 

ar e luz e tempo e espaço

 

“– sabe, eu tive uma família, um emprego, algo

sempre esteve a

caminho,

mas agora

vendi minha casa, encontrei este

lugar, um amplo estúdio, você deveria ver o espaço e

a luz.

pela primeira vez em minha vida vou ter um lugar e o

tempo para

criar.”

 

não, baby, se você vai criar,

você vai criar quer trabalhe

16h por dia em uma mina de carvão,

quer se encontre num pequeno recinto com 3 crianças,

ao amparo

da assistência social;

você vai criar com parte de sua mente e de seu corpo

se desintegrando pelos

ares,

você vai criar quer esteja cega,

estropiada

ou demente,

você vai criar com um gato a rastejar por suas

costas, enquanto

a cidade inteira estremece sob sismos, bombardeios,

inundações e incêndios.

 

baby, ar e luz e tempo e espaço

não têm nada a ver com isso

e não criam nada,

exceto talvez uma vida mais longa para encontrar

novas desculpas.

 

Referência:

 

BUKOWSKI, Charles. air and light and time and space. In: __________. (1992) The last night of the earth poems. 1st ed. New York, NY: Ecco (An Imprint of Harper Collins Publishers), 2002. p. 58.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Gerhart Hauptmann - Sombras da Violência

Redigido por Hauptmann em meados de 1933, este poema põe em relevo o estado angustioso do poeta durante o período imediatamente anterior à 2GM, vislumbrando no futuro próximo como que uma reprise de cenas já antes testemunhas durante o primeiro conflito mundial, cujos rastros ainda se encontravam então visíveis, sobretudo no continente europeu.

 

A imagística empregada pelo dramaturgo e poeta acercar-se do espectral, do fantasmagórico, a bem caracterizar um pesadelo durante o qual um ser humano morto, quiçá em estado de decomposição, envolto numa paz enganosa, sintetiza o nada a que foram reduzidos milhares que sucumbiram no curso da brutal conflagração precedente.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gerhart Hauptmann

(1862-1946)

 

Schatten der Gewalt

 

Wüsst ich, was der ewige Geist

mir im Traume wies –

er, den Erd und Himmel preist –

als er mich verstiess

in der fremden Wüste Rot

aus dem Meer der Zeit,

preisgegeben aller Not

in der Ewigkeit.

Und ich stand im Glutensand

gestern nicht noch heut

war dem Pulsenden bekannt!

Und von nichts betreut,

stand ich ausgestossen da,

niemand zugetan,

fremd war alles, was ich sah,

alles Schain und Wahn.

Und ein Wessen – war’s ein Mann? –

glutensandverwühlt,

sah mich fremd und schweigend an,

kalt und ungefühlt.

Irgendwie war ich ergötzt,

als ich Garben sah.

wie von Menschenhand gesetzt:

war ich Menschen nah?

Doch mich traf’s wie stummer Schrei;

es war leeres Stroh!

Ach, die Ernte war vorbei

und der Weizen wo?

Sinnend über das Gesicht,

traumhaft, stand ich da,

als ich in dem Glutensand,

Weder Mann noch Weib,

schweigend-nackt, im Totenbann,

stand der stumme Leib.

Hat die phinx dich ausgesandt?

Frat es irgendwo.

Doch da dreht er blöd die Hand,

zuckend lichterloh!

Frage niemand, wer ich bin

und auch nicht wer du.

Fragen ist hier ohne Sinn!

die lebendige Ruh’

scheinet leerer um uns her.

Trau nicht der Gestalt:

denn wir beide sind nur mehr

Schatten der Gewalt.

 

Fora das Sombras

(Deborah Nell: pintora norte-americana)

 

Sombras da Violência

 

Soubesse eu o que em sonho me revelou

O Espírito Eterno

– Ele a quem louvam Terra e Céu –

Quando do mar do tempo

Me lançou a este deserto vermelho,

Abandonado para todo o sempre

A todas as misérias!

Ali fiquei na areia ardente

Sem noção do dia de ontem nem do dia de amanhã!

Desamparado de tudo,

Desapegado de todos,

Tudo o que viam meus olhos

Me era estranho,

Tudo aparência e ilusão.

Uma criatura – seria um homem?

Me encarava na areia abrasada,

Alheado e taciturno,

Frio e insensível.

De certo modo me regozijei

Ao ver ali uns feixes

Que pareciam arrumados por mão humana:

Estaria eu perto dos homens?

Mas reconheci num como grito mudo

Que era palha vazia!

Ah, a colheita acabou,

E onde está o trigo?

Meditando como em sonho

Sobre aquela aparição,

Ali quedei na areia ardente,

Em face do corpo mudo, nem homem nem mulher,

Na sua silenciosa nudez, paralisado pela morte.

“Vens da parte da Esfinge?” perguntaram não sei donde.

Então, erguendo às cegas a mão

E subitamente inflamado, palpitante:

“Não pergunte ninguém quem eu seja

Nem quem sejas”, falou.

“As perguntas aqui não têm sentido!

A paz das coisas parece mais vazia em torno de nós.

Não te fies das aparências:

Pois já não somos ambos

Senão sombras da violência.”

 

Referências:

 

Em Alemão

 

HAUPTMANN, Gerhart. Schatten der gewalt. Disponível neste endereço (p. 61-62). Acesso em: 10 mar. 2024.

 

Em Português

 

HAUPTMANN, Gerhart. Sombras da violência. Tradução de Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Poemas traduzidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. p. 40-41. (Coleção ‘Rubáiyát’)