Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Nicole Cecilia Delgado - transformações do deserto

A voz poética, neste poema, submerge numa metamorfose simbiótica com a paisagem árida ao redor, adotando suas características e fundindo sua própria essência com os elementos naturais, para adaptar-se física e espiritualmente às condições extremas, até que, por fim, extrapolando a sede que a embarga, transmuta-se numa espécie de cactácea, para reter dentro de si a água do “mar, do lago e do rio”.

 

Poder-se-ia atribuir um sentido apologético à mensagem transmitida pela poetisa portorriquenha, digo melhor, à capacidade que tem o ser humano de se adaptar e de se transformar diante das adversidades, mostrando resiliência e perseverança inquebrantável para fazer, como se diz, de um limão uma limonada, habilitando-se, desse modo, a dispor as coisas em perspectiva para dar importância ao que de fato é relevante, ao tempo que reforça a autoestima para enfrentar novos desafios.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nicole Cecilia Delgado

(n. 1980)

 

transformaciones del desierto

 

la sequía me descubre

pensándole un corazón tan grande

que sabe sonrojarse de sí mismo

soy fototrópica

me tuesto al sol

el desierto me transforma en espina reptil

arruga la espesura de mi piel

dibuja fractales dérmicos conmigo

bailamos una danza seca

de artesana que construye con arena

sus sórdidos oasis

mi voz blanca arrastra piedritas de cal

sudor de tiza llueve el viento del desierto

el aire marca pasos de aserrín

y sin embargo hay un camino verde

por donde aúlla un río

sus tiernos amoríos con la tierra

el paisaje grita con su árida garganta

soy un insecto

que sobrevuela los charcos que apresuran

vagamente por la cuenca rota

se me enrosca una serpiente milenaria entre los pies

la arena me revela canas dulces

muto

cactácea

llevo al mar al lago al río adentro

estoy llena de agua

y tengo sed

 

Cactos perto do mar

(Tetiana Bondar: artista ucraniana)

 

transformações do deserto

 

a seca me expõe

revelando um coração tão grande

capaz de ruborizar-se de si mesmo

sou fototrópica

me bronzeio ao sol

o deserto me transforma num espinho réptil

enruga a espessura da minha pele

desenha fractais dérmicos sobre mim

dançamos uma seca coreografia

de artesã que constrói com areia

seus sórdidos oásis

minha voz branca arrasta pedrinhas de cal

o vento do deserto faz chover suor de giz

o ar marca passos de serragem

e no entanto há um caminho verde

por onde uiva um rio

seus ternos idílios amorosos com a terra

a paisagem grita com sua árida garganta

sou um inseto

que sobrevoa os charcos que correm

vagamente pela bacia fragmentada

uma serpente milenária enrosca-se em meus pés

a areia me revela doces cãs

em constante mutação

cactácea renascida

levo o mar o lago o rio em meu interior

estou cheia de água     

e tenho sede

 

Referência:

 

DELGADO, Nicole Cecilia. transformaciones del desierto. In: MONTECINOS, Héctor Hernández (Selección y Prólogo). 4M3R1C4: novísima poesía latinoamericana. Santiago (CL): Ventana Abierta, 2010. p. 187.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Octavio Paz - Noite de verão

Envoltos em uma atmosfera onírica e sensual, estes versos de Paz descrevem certa noite de verão como se fosse um corpo vivo e palpável, no qual os elementos naturais – como os rios, estrelas e o vento – se fundem em uma única e vibrante experiência: trata-se, claro está, de uma celebração metafórica da natureza, em sua máxima expressão durante a estação estival.

 

Nesse espaço de uma sempre latente e avassaladora vida, de forças ora contrastantes ou antagônicas ora complementares, tudo respira, se reproduz e flui num eterno ciclo de nascimento e renascimento: a noite se revela, sob a ótica desse cenário algo surrealista, um espaço de transformação e de criação, singularizado pelos efeitos de uma beleza que o universo sabe como expressar, ao interconectar com aprumo todos os seus elementos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Octavio Paz

(1914-1998)

 

Noche de verano

 

Pulsas, palpas el cuerpo de la noche,

verano que te bañas en los ríos,

soplo en el que se ahogan las estrellas,

aliento de una boca,

de unos labios de tierra.

 

Terra de labios, boca

donde un infierno agónico jadea,

labios en donde el cielo llueve

y el agua canta y nacen paraísos.

 

Se incendia el árbol de la noche

y sus astillas son estrellas,

son pupilas, son pájaros.

Fluyen ríos sonámbulos,

lenguas de sal incandescente

contra una playa obscura.

 

Todo respira, vive, fluye:

la luz en su temblor,

el ojo en el espacio,

el corazón en su latido,

la noche en su infinito.

 

Un nacimiento obscuro, sin orillas,

nace en la noche de verano.

Y en tu pupila nace todo el cielo.

 

En: “Asueto” (1939-1944)

 

Noite de verão na praia

(Edvard Munch: pintor norueguês)

 

Noite de verão

 

Pulsas, apalpas o corpo da noite,

verão que te banha nos rios,

sopro no qual se afogam as estrelas,

alento de uma boca,

de uns lábios de terra.

Terra de lábios, boca

de onde um inferno agônico jadeia,

lábios de onde um céu chove

e a água canta e nascem paraísos.

Incendeia-se a árvore da noite

e seus estilhaços são estrelas,

são pupilas, são pássaros.

Fluem rios sonâmbulos,

línguas de sal incandescente

contra uma praia escura.

Tudo respira, vive, flui:

a luz em seu tremor,

o olho no espaço,

o coração em seu pulso,

a noite em seu infinito,

Um nascimento escuro, sem orlas,

nasce na noite de verão.

E em tua pupila nasce todo o céu.

 

Em: “Folga” (1939-1944)

 

Referência:

 

PAZ, Octavio. Noche de verano / Noite de verão. Tradução de Elson Fróes. In: FRÓES, Elson. Poemas traduzidos. Edição eletrônica, copyright © Elson Fróes, 2003. Em espanhol: p. 24; em português: p. 25.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Paulo Leminski - Iceberg

Nestas linhas, Leminski mergulha num domínio ártico e minimalista, com uma atmosfera fria e despojada, onde a vida parece deter-se, ansiando por uma poesia pura e cristalina como o gelo, enquanto expressão essencial e refinada por meio da qual, liminar e paradoxalmente, busca o silêncio e a ausência de palavras, sem dilatadas estruturas frasais, pois que em facundos enunciados – segundo lhe parece – há elevadas chances de se criar mal-entendidos e interpretações ambivalentes.

 

Em suma: longe do enquadramento a modelos pré-existentes, tem-se aqui a propositura de versos simples, sucintos, austeros, quase “ausentes”, despojados de ornamentos, superfluidades e excessos, ou por outra, caracterizados pela concisão e uso preciso da linguagem, sem significados ocultos ou simbolismos complexos – ainda que venham a se espraiar para mais além do convencionalismo vocabular, com o objetivo de escapar, de algum modo, às limitações da lógica e da razão.

 

Eis aí o que me parece ser um traço característico da poesia de vanguarda praticada pelo poeta paranaense, metaforizado por uma “lira nula”, a saber, desinteressada por regras de musicalidade ou ritmo, quiçá de métrica, mas capaz de, num relance fugaz e instantâneo, num breve flash de luz de autenticidade e de originalidade, iluminar a mente e o coração de seus leitores.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paulo Leminski

(1944-1989)

 

Iceberg

 

Uma poesia ártica,

claro, é isso que desejo.

Uma prática pálida,

três versos de gelo.

Uma frase-superfície

onde vida-frase alguma

não seja mais possível.

Frase, não. Nenhuma.

Uma lira nula,

reduzida ao puro mínimo,

um piscar do espírito,

a única coisa única.

Mas falo. E, ao falar, provoco

nuvens de equívocos

(ou enxame de monólogos?).

Sim, inverno, estamos vivos.

 

Em: “Distraídos venceremos” (1987)

 

Sonho Ártico

(David McEown: artista canadense)

 

Referência:

 

LEMINSKI, Paulo. Iceberg. In: __________. Toda poesia. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2013. p. 181.

domingo, 6 de julho de 2025

Gerard Manley Hopkins - A lanterna lá fora

Tendo sido Hopkins, além de poeta, um sacerdote pertencente à Companhia de Jesus, grande parte de seus poemas explora temas existenciais e espirituais, a exemplo do soneto que ora se transcreve, no qual expressa uma profunda esperança cristã na convivência e na redenção divinas, para além da transitoriedade terrena do existir humano, de suas relações, de seus clarões sempre fugazes.

 

Distintamente da luz passageira que há em cada ser humano – sua beleza ou mente excepcional –, Cristo seria como um facho orientador nos mares turbulentos da existência, um farol perene a sinalizar a possibilidade de resgate, enquanto confiável amigo que se dispõe a oferecer devotamento incondicional, bondade, cuidado e eterna companhia para aqueles que o seguem.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gerard Manley Hopkins

(1844-1889)

 

The lantern out of doors

 

Sometimes a lantern moves along the night,

That interests our eyes. And who goes there?

I think; where from and bound, I wonder, where,

With, all down darkness wide, his wading light?

 

Men go by me whom either beauty bright

In mould or mind or what not else makes rare:

They rain against our much-thick and marsh air

Rich beams, till death or distance buys them quite.

 

Death or distance soon consumes them: wind

What most I may eye after, be in at the end

I cannot, and out of sight is out of mind.

 

Christ minds: Christ’s interest, what to avow or amend

There, éyes them, heart wánts, care haúnts, foot fóllows kínd,

Their ránsom, théir rescue, ánd first, fást, last friénd.

 

(N. Wales, May 1877)

 

Luz na escuridão

(Daniel Hodac: fotógrafo norte-americano)

 

A lanterna lá fora

 

Às vezes, no meio da noite move-se uma lanterna

Que atrai nosso olhar. Quem vai lá? quem a conduz?

Fico pensando, meditando de onde e para quê e aonde,

De quem, escuridão adentro, a tateante luz?

 

Por mim passam os homens, cujo brilho e beleza

De índole ou de mente, ou do que seja, torna-os raros;

E, até que a morte ou a distância os trague, esparzem

Em nosso denso ar palustre ricos raios.

 

Distância ou morte cedo os consome. E se perdem,

No fim, de todo o revolver de minha vista a persegui-los

Em vão – e, longe dos olhos, longe do coração.

 

Perto do coração de Cristo, cujos passos os seguem –

Seu olhar e cuidado amoroso em confirmá-los, corrigi-los –

Fiel primeiro e último amigo, resgate, salvação.

 

(N. Wales, Maio de 1877)

 

Referência:

 

HOPKINS, Gerard Manley. The lantern out of doors / A lanterna lá fora. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. In: __________. Poemas. Seleção, tradução, introdução e notas de Aíla de Oliveira Gomes. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1989. Em inglês: p. 94; em português: p. 95.