Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Mauro Mota - Cacto ‎

Mesmo no espaço inóspito do cerrado nordestino a poesia é capaz de brotar. E se não for regada pela chuva natural, por ali tão rarefeita, é fecundada pela tinta do poeta, capaz de extrair daquele espaço geográfico – no qual sobressaem os cactos em meio à caatinga – a beleza abstrata e o intrincado das formas, inscrevendo-os numa moldura oferecida ao leitor, que a completará conforme suas próprias idiossincrasias.

Como a flor do mandacaru, a poesia, dessa maneira, salta aos olhos, transformando uma realidade que, no primeiro plano, pode parecer inclemente, em outra despojada do desencanto que fustiga o coração humano, fertilizando-o com os mistérios e enigmas deste mundo, à espera de nossa decifração.

J.A.R. – H.C.

Mauro Mota
(1911-1984)

Cacto

Insólito, agressivo,
de pudor botânico:
cacto.

Espantalho
da chuva,
bandido xerófilo,
multiapunhalante.

Mãos ásperas
lixam o tempo.

A língua
dura e espinhenta
lambe e fere
o ígneo vento.

Cacto de aço
verde árido.
Mas
com o pranto nas raízes
e o impacto cromático
da flor cactácea
que se
abre neste mormaço.

Em: “O Galo e o Cata-vento” (1962)

Cactos no semiárido
do nordeste brasileiro

Referência:

MOTA, Mauro. Cacto. In: __________. Antologia poética. Rio de Janeiro, GB: Leitura, fev. 1968. p. 79.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Menka Shivdasani - Epitáfio ‎

Shivdasani, poetisa indiana, fala com denodo e honestidade, do que representa ser mulher em seu país, expondo suas próprias ansiedades e desconsolos: ecos insinuantes de sujeição e autoquestionamentos são ouvidos em meio à metapoética do poema, brotando da dor que, cativa na alma, jorra livre em seus versos.

 

Há bastante vermelho no dia do casamento de uma mulher no dharma hindu, desde o pó que se coloca na divisão principal do cabelo, até a marca na testa e o sári que é empregado na cerimônia: presumivelmente Shivdasani esteja a tomá-lo como uma metáfora alusiva à manutenção das mulheres sob o domínio das tradicionais estruturas conjugais indianas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Menka Shivdasani

(n. 1961)

 

Epitaph

 

The thing to do

is feel the texture of the page

still white before the lines form,

touch the smoothness of the skin,

refined unlike the bark

once peeled away.

 

The trouble is,

we do not wear white

on the wedding day.

My religion calls for blood,

redness draped across the eyes,

wrapped tight around the skin.

But lines form anyway,

alphabets rounded like shoulders

or flat as hair upon the arm.

The story begins like a wrinkle on the face

and does not end

when the wrinkles freeze.

 

But that is when the surface

turns to white and I hold my pain

in its plastic tube,

let the fluid fall.

 

That’s when the poem writes itself

like an epitaph.

 

Mulher sentada com

relógio de pulso

(Picasso: pintor espanhol)

 

Epitáfio

 

A coisa a fazer

é sentir a textura da página

ainda branca antes da forma das linhas,

tocar a suavidade delicada

da pele, distintamente da tez

uma vez descamada.

 

O problema é que

não usamos branco

no dia do casamento.

Minha religião exige sangue,

drapejado carmesim entre os olhos,

bem aplicado à volta da pele.

Contudo as linhas se formam de qualquer modo,

alfabetos arredondados como ombros

ou planos como o cabelo sobre o braço.

A história começa como uma ruga no rosto

e não termina

no momento em que elas estancam.

 

Mas é quando a superfície

torna-se branca e confino minha dor

em seu tubo de plástico,

que deixo o fluido escorrer.

 

Nesse instante o poema se autocompõe

como um epitáfio.

 

Referência:

 

SHIVDASANI, Menka. Epitaph. In: THAYIL, Jeet (Ed.). 60 indian poets. New Delhi, IN: Penguin Books India, 2008. p. 267.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Jules Laforgue - Caso Redibitório (Matrimônio) ‎

Eis um poema capaz de deixar o leitor aturdido frente ao vocabulário empregado pelo autor, que vai desde as referências a obras-primas, até micróbios, campo de manobras, sufrágio universal, reprodução de rostos em cópias – seriam, no caso, os rebentos?!... – afora o título inusitado, a sugerir que houve algum defeito ou vício oculto não ostentado no período pré-matrimonial e que, agora, resolveu aflorar.

 

É o recurso imediato às formas iconoclastas do poder criativo, em fuga dos modelos convencionais de exteriorização das emoções, e se algo do ambiente interno merece alguma atenção, é de lá que surge a lava de substâncias inconscientes, como num quadro surrealista, ou, ainda, o galope vertiginoso de micro-organismos que ameaçam a integridade física do poeta.  

 

J.A.R. – H.C.

 

Jules Laforgue

(1860-1887)

 

Cas Rédhibitoire (Mariage)

 

Ah! mon ame a sept facultés!

Plus autant qui’il de chefs-d’oeuvre,

Plus mille microbes ratés

Qui m’ont pris pour champ de manoeuvre.

 

Oh ! le suffrage universel

Qui se bouscule et se chicane,

À chaque instant, au moindre appel,

Dans mes mille occultes organes!...

 

J’aurais voulu vivre à grands traits,

Le long d’un classique programme

Et m’associant en un congrès

Avec quelque classique femme.

 

Mais peut-il être question

D’aller tirer des exemplaires

De son individu si on

N’en a pas une idée plus claire?...

 

O Casamento

(Eric Bowman: pintor norte-americano)

 

Caso Redibitório (Matrimônio)

 

Minh’alma tem sete dons raros!

E tantos quantos ou mais que as obras-

primas. Micróbios vis – milhares! –

tornam-me um campo de manobras.

 

Ora, o sufrágio universal!

Lança, chicaneando, insultos,

cada instante, ao menor sinal,

entre meus mil órgãos ocultos!...

 

Quisera viver com sucesso,

segundo um clássico programa

e associar-me, num congresso,

a alguma clássica madama.

 

Podemos pôr, contudo, em pauta

reproduzirmos nossa cara

em várias cópias, se nos falta

ainda uma noção mais clara?...

 

Referência:

 

LAFORGUE, Jules. Cas Rédhibitoire (Mariage) / Caso Redibitório (Matrimônio). Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. Em inglês: p. 204; em português: p. 205. (Coleção “Lazuli”)

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Olga Savary - Insônia

Provavelmente assediada pela insônia, a poetisa pervaga pelos domínios onde a poesia paira, procurando transcrevê-la ao papel, de modo a inquietar “as marés do silêncio da palavra ainda não escrita nem pronunciada”, tal que toda inquietação que lhe vai no espírito se atenue e vingue o indesejado estado de vigília.

 

Ao dar continuidade ao ensaio das palavras, Savary espera atravessar a noite fazendo revolver em fogo mental – no cadinho alquímico do poema –, as suas próprias incertezas, interrogantes, tribulações e adversidades, perseguindo assim, talvez num esforço de Sísifo, o sentido último da verdade que somente as estrelas conhecem.

 

J.A.R. – H.C.

 

Olga Savary

(n. 1933)

 

Insônia

 

A José Carlos Audíface Brito

 

Quero escrever um poema irritado.

Quero vingar meu sono dividido

(busco palavras que interroguem essa alquimia

do poema, que vire a noite em fogo vário

e a lua em pegada escondida atrás do muro

– vagaroso desmoronar de extinto voo).

Quero um poema ainda não pensado,

que inquiete as marés de silêncio da palavra

ainda não escrita nem pronunciada,

que vergue o ferruginoso canto do oceano

e reviva a ruína que são as poças d’água.

Quero um poema para vingar minha insônia.

 

Rio de Janeiro, março 1950

 

Em: “Espelho Provisório: 1947-1970”

I – Pássaros da Memória

 

Voo da Musa

(Paul Bond: pintor mexicano)

 

Referência:

 

SAVARY, Olga. Insônia. Repertório selvagem. Obra reunida: 12 livros de poesia (1947-1998). Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca Nacional; MultiMais; Universidade de Mogi das Cruzes, 1998. p. 26.

domingo, 27 de maio de 2018

Louis Simpson - Rumo ao Ocidente ‎

A voz lírica se identifica com os conquistadores que domaram as terras da América, descobertas que foram por Colombo naquela histórica viagem por um oceano desconhecido, cujo destino originário era Cathay, no noroeste da China, mas que, de fato foi dar na Baía do México, onde os tesouros que se buscavam jamais foram encontrados.

 

O poema tece paralelos entre as viagens dos primeiros imigrantes rumo à América devoluta e a aventura primeira de Colombo, em 1492, que, partindo da região portuária de Palos, na Espanha, a serviço do reino de Castela, com apenas três caravelas – Santa Maria, Pinta e Nina –, chegou às ilhas das Bahamas, dando início ao progressivo reconhecimento de todo o continente americano.

 

J.A.R. – H.C.

 

Louis Simpson

(1923-2012)

 

To the Western World

 

A siren sang, and Europe turned away

From the high castle and the shepherd’s crook.

Three caravels went sailing to Cathay

On the strange ocean, and the captains shook

Their banners out across the Mexique Bay.

 

And in our early days we did the same.

Remembering our fathers in their wreck

We crossed the sea from Palos where they came

And saw, enormous to the little deck,

A shore in silence waiting for a name.

 

The treasures of Cathay were never found.

In this America, this wilderness

Where the axe echoes with a lonely sound,

The generations labor to possess

And grave by grave we civilize the ground.

 

Despenhadeiro do Colorado

(Thomas Moran: pintor norte-americano)

 

Rumo ao Ocidente

 

Ao canto da sereia, a Europa se afastou

Do altivo castelo e do báculo do pastor.

Três caravelas singraram rumo a Cathay

Em ignoto oceano, e os capitães içaram

Suas bandeiras sobre a Baía do México.

 

Agimos assim em nossos primeiros dias.

Evocando nossos pais em seu soçobro,

Desde a mesma Palos, cruzamos o mar

E vimos, vasta para o modesto convés,

Uma costa silente à espera de um nome.

 

Não demos com os tesouros de Cathay.

Aqui na América, neste lugar selvagem,

Onde o som do machado ecoa solitário,

As gerações trabalham por suas posses,

E tumba após tumba, civilizamos a terra.

 

Referência:

 

SIMPSON, Louis. To the western world. In: HALL, Donald (Ed.). Contemporary american poetry. Revised and enlarged edition. Selected and introduced by Donald Hall. 2nd. ed. Kingsport, TN: Penguin Books, 1974. p. 117.

sábado, 26 de maio de 2018

Lucian Blaga - Biografia ‎

Em pensar o mundo como um cantar viveu Blaga – a dizer palavras que não lhe pertenciam e a amar coisas que não lhe respondiam –, isto segundo a própria autobiografia lírica, não exatamente uma autêntica biografia, mas um relato que nos diz muito sobre suas crenças artísticas, os significados da poesia e a missão do poeta enquanto espírito criador.

O poema é todo lirismo e languidez ao acercar-se dessa dor oriunda do estado de consciência sobre o próprio drama: o poeta vive e se sente diferente, em contínua experimentação, o que significa que não detém graça, tampouco a companhia das musas, senão apenas a revelação de um mistério: o de que o mundo é uma música harmoniosa com significado a se perscrutar.

J.A.R. – H.C.

Lucian Blaga
(1895-1961)

Biografie

Unde şi când m-am ivit în lumină nu ştiu,
din umbră mă ispitesc singur să cred
că lumea e o cântare.
Străin zâmbind, vrăjit suind,
în mijlocul ei mă-mplinesc cu mirare.
Câteodată spun vorbe cari nu mă cuprind,
câteodată iubesc lucruri cari nu-mi răspund.
De vânturi şi isprăvi visate îmi sunt
ochii plini,
de umblat umblu ca fiecare:
când vinovat pe coperişele iadului,
când fără păcat pe muntele cu crini.

Închis în cercul aceleiaşi vetre
fac schimb de taine cu strămoşii,
norodul spălat de ape subt pietre.
Seara se-ntâmplă mulcom s-ascult
în mine cum se tot revarsă
poveştile sângelui uitat de mult.
Binecuvânt pânea şi luna.
Ziua trăiesc împrăştiat cu furtuna.

Cu cuvinte stinse în gură
am cântat şi mai cânt marea trecere,
somnul lumii, îngerii de ceară.
De pe-un umăr pe altul
tăcând îmi trec steaua ca o povară.

(1929)

Perto do Lago
(Pierre-Auguste Renoir: pintor francês)

Biografia

Onde e quando eu vim à luz não sei.
Da sombra, só, eu me esforço por crer
ser o mundo um cantar.
Estranho sorrio entre enleios que me suspendem:
as coisas me vêm completar e espantar.
Por vezes falo palavras que não me compreendem,
Por vezes amo coisas que não me correspondem.
De ventos e façanhas sonhadas meus olhos vão cheios.
Ando como um qualquer, quanto a andar:
quando culpado sobre os telhados de geena,
se sem pecado por sobre montanhas de açucenas.

Fechado no círculo das mesmas lareiras
troco mistérios com os antigos,
o povo lavado pelas águas de sob as pedreiras.
A noite se passa suave por que escute mudo
como em mim trasborda tudo
das lendas do sangue esquecido de há muito.
Abençoo a lua e o pão.
Os dias vivo espalhado pelo trovão.

Com palavras presas na garganta
cantei a grande travessia, e ainda canto,
o sono do mundo, os anjos de cera.
De um ombro para o outro, calado,
eu troco minha estrela como um fardo.

Referência:

BLAGA, Lucian. Biografie / Biografia. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. In: __________. A grande travessia. Seleção, tradução e introdução de Caetano Waldrigues Galindo. Brasília, DF: Editora da UnB, 2005. Em romeno: p. 36 e 38; em português: p. 37 e 39. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)