Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de dezembro de 2023

Charles Bukowski - folhas das palmeiras

Há quem se aterrorize com a noite de Ano-Novo – e não apenas cães e gatos amedrontados com o estourar dos fogos que lhe atingem os tímpanos: Bukowski afirma não entender os humanos (embora afirme ter conseguido sobreviver ao nonsense de suas ações), pois lhe parece que o que se entende sobre o fluxo da vida não condiz com o que significa a sucessão dos anos.

 

Seja por excessivas idealizações, seja por alguma sensação de pesar, seja ainda por sonhos irrealizados ou por sintomas de alheamento – reais ou imaginários –, o fato é que muitos se comportam tal como o poeta, não vendo na virada dos anos algo de mais relevante, haja vista que a sucessão de um dia a outro não costuma fazer o estado das coisas volver em 180 graus.

 

J.A.R. – H.C.

 

Charles Bukowski

(1920-1994)

 

palm leaves

 

at exactly 12:00 midnight

1973-74

Los Angeles

it began to rain on the

palm leaves outside my window

the horns and firecrackers

went off

and it thundered.

 

I’d gone to bed at 9 p.m.

turned out the lights

pulled up the covers –

their gaiety, their happiness,

their screams, their paper hats,

their automobiles, their women,

their amateur drunks…

 

New Year’s Eve always terrifies

me

 

life knows nothing of years.

 

now the horns have stopped and

the firecrackers and the thunder…

it’s all over in five minutes…

all I hear is the rain

on the palm leaves,

and I think,

I will never understand men,

but I have lived

it through.

 

Silhueta de Los Angeles com Palmeiras

(Leonardo D. de Fontanella: artista italiano)

 

folhas das palmeiras

 

exatamente à meia-noite

1973-74

Los Angeles

começou a chover nas

folhas das palmeiras para além de minha janela

as buzinas e os foguetes

se ergueram

e então trovejou.

 

eu tinha ido para cama às 9 da noite

apaguei as luzes

puxei as cobertas –

sua satisfação, sua felicidade,

seus gritos, seus chapéus de papelão,

seus automóveis, suas mulheres,

seus porres de amador...

 

a noite de Ano-Novo sempre me

aterroriza

 

a vida não sabe nada sobre os anos.

 

agora as buzinas pararam e

os foguetes e os trovões...

tudo se acaba em cinco minutos...

tudo o que ouço é a chuva

nas folhas das palmeiras,

e penso,

nunca entenderei os homens,

mas consegui

sobreviver.

 

Referências:

 

Em Inglês

 

BUKOWSKI, Charles. palm leaves. In: __________. Burning in water, drowning in flame. Los Angeles, CA: Black Sparrow Press, 1974. p. 232.

 

Em Português

 

BUKOWSKI, Charles. folhas das palmeiras. Tradução de Pedro Gonzaga. In: __________. Queimando na água, afogando-se na chama. Tradução de Pedro Gonzaga. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016. p. 282. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 1211)

 


sábado, 30 de dezembro de 2023

Jorge Luis Borges - Fim de Ano

Borges nos diz que celebramos os fins de ano como um “milagre”, ante a percepção de que mudamos constantemente – tais quais “as gotas do rio de Heráclito” –, embora haja algo em nós que sempre permaneça, “imóvel”, pois que às voltas com a missão de encontrar aquilo a que se propôs, ao longo desse trânsito que é a vida.

 

O autor argentino sugere que de pouco serve a medição do tempo tal como a realizamos; mesmo os processos astronômicos seriam triviais em cotejo à incômoda sensação de que nossas vidas fluem de modo implacável, vis-à-vis o nomeado pressentimento de que haveria alguma coisa duradoura no momento presente. O que seria?

 

Pode-se levantar a hipótese de que esse elemento mais estável a que se refere o autor argentino seja o que de mais individual há em cada um de nós, a identidade que nos singulariza em relação a quaisquer outras pessoas, identidade essa que, sucumbindo à morte, suscita o maior dos mistérios sob o que representaria esse nosso retorno às origens.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge Luiz Borges

(1899-1986)

 

Final de Año

 

Ni el pormenor simbólico

de reemplazar un tres por un dos

ni esa metáfora baldía

que convoca un lapso que muere y otro que surge

ni el cumplimiento de un proceso astronómico

aturden y socavan

la altiplanicie de esta noche

y nos obligan a esperar

las doce irreparables campanadas.

La causa verdadera

es la sospecha general y borrosa

del enigma del Tiempo;

es el asombro ante el milagro

de que a despecho de infinitos azares,

de que a despecho de que somos

las gotas del río de Heráclito,

perdure algo en nosotros:

inmóvil,

algo que no encontró lo que buscaba.

 

En: “Fervor de Buenos Aires” (1923)

 

A Passagem do Tempo

(Sushe Felix: pintora norte-americana)

 

Fim de Ano

 

Nem o pormenor simbólico

de substituir um dois por um três (*)

nem essa ociosa metáfora

que convoca um lapso que morre e outro que surge

nem o cumprimento de um processo astronômico

atordoam e minam

o altiplano desta noite

e nos obrigam a esperar

as doze irreparáveis badaladas.

A verdadeira causa

é a suspeita geral e indistinta

do enigma do Tempo;

é o assombro ante o milagre

de que a despeito de infinitos acasos,

de que a despeito de que somos

as gotas do rio de Heráclito,

perdure algo em nós:

imóvel,

algo que não encontrou o que buscava.

 

Em: “Fervor de Buenos Aires” (1923)

 

Nota:

 

(*) Borges alude à mudança de ano, de 1922 a 1923, momento em que redigido o poema.

 

Referência:

 

BORGES, Jorge Luis. Final de año. In: __________. Obra poética, 1923-1977. 2. ed. Madrid (ES): Alianza Tres; Buenos Aires (AR): Emecé, 1981. p. 43.

 


sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

David Mourão-Ferreira - Natal, e não Dezembro

Muito mais que dezembro – a trintena de dias que encerra o ano –, temos nesse ínterim o Natal e as festividades do nascimento de Cristo, evocados pelo poeta para amparar o sentido de um festim “talvez universal”, em que todos são convidados, em tais dias friorentos, a juntarem-se de “mãos dadas”, para que o “fogo nasça”.

 

Presumem-se os desígnios de esperança, solidariedade, amor, luz, vida em plenitude, pois que, se há algo a arder, que venha a estrela em auxílio: muito mais que nossos corpos físicos, nossa natureza espiritual – superior, de consciência, juízo e compreensão – necessita de farnéis para lograr romper os humanos limites, atingindo assim a sua vocação de transcendência.

 

J.A.R. – H.C.

 

David Mourão-Ferreira

(1927-1996)

 

Natal, e não Dezembro

 

Entremos, apressados, friorentos,

numa gruta, no bojo de um navio,

num presépio, num prédio, num presídio,

no prédio que amanhã for demolido...

Entremos, inseguros, mas entremos.

Entremos, e depressa, em qualquer sítio,

porque esta noite chama-se Dezembro,

porque sofremos, porque temos frio.

 

Entremos, dois a dois: somos duzentos,

duzentos mil, doze milhões de nada.

Procuremos o rastro de uma casa,

a cave, a gruta, o sulco de uma nave...

Entremos, despojados, mas entremos.

Das mãos dadas talvez o fogo nasça,

talvez seja Natal e não Dezembro,

talvez universal a consoada.

 

(1962)

Em: “Cancioneiro de Natal” (1960-1978)

 

O sonho de José no estábulo em Belém

(Rembrandt van Rijn: pintor holandês)

 

Referência:

 

MOURÃO-FERREIRA, David. Natal, e não dezembro. In: __________. Obra poética: volume II. Amadora, PT: Livraria Bertrand, jan. 1980. p. 77. 

 


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Eugenio Montale - Fim de 68

Ao final do marcante ano de 1968 – durante o qual sucederam as célebres mobilizações estudantis e greves gerais em Paris –, Montale, desde um ponto de vista inusitado – sobre a superfície da lua –, contempla a terra e seus habitantes, ele próprio aí incluso, envoltos numa conjunção de lucidez e de hermetismo, entre condutas exotéricas e esotéricas.

 

Um estranho mundo, de uma realidade ao mesmo tempo inconteste e misteriosa, surge sob a pena irônica do poeta, caracterizando uma sociedade que, em meio a celebrações e divertimentos, pouco se interessa pelo destino do mais comum dos homens, mesmo em seu momento mais trágico, a saber, o da morte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eugenio Montale

(1896-1981)

 

Fine del ’68

 

Ho contemplato dalla luna, o quasi,

il modesto pianeta che contiene

filosofia, teologia, politica,

pornografia, letteratura, scienze

palesi o arcane. Dentro c’è anche l’uomo,

ed io tra questi. E tutto è molto strano.

 

Tra poche ore sarà notte e l’anno

finirà tra esplosioni di spumanti

e di petardi. Forse di bombe o peggio,

ma non qui dove sto. Se uno muore

non importa a nessuno purché sia

sconosciuto e lontano.

 

Um homem e seus pensamentos

(Richard Heiens: pintor norte-americano)

 

Fim de 68

 

Contemplei a partir da lua, ou quase,

o modesto planeta que contém

filosofia, teologia, política,

pornografia, literatura, ciência difundida

ou arcana. Dentro também está o homem,

e eu entre eles. E tudo é muito estranho.

 

Em algumas horas sobrevirá a noite e o ano

terminará em meio a explosões de espumantes

e de petardos. Talvez de bombas ou coisa pior,

mas não aqui onde estou. Se alguém morre,

ninguém se importa, desde que seja

desconhecido e distante.

 

Referência:

 

MONTALE, Eugenio. Fine del ’68. In: __________. Satura. Edición bilingüe: italiano x español. Traducción de María Ángeles Cabré. 1. ed. Barcelona, ES: Icaria, may. 2000. p. 122. (Colección ‘Icaria Poesía’)