Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de janeiro de 2016

Mário da Silva Brito - Retrato

Mário Brito faz uma resenha de si mesmo, quando articula os quatorze versos do soneto para arregimentar ideias atinentes à linguagem poética, à linguística, ao léxico em geral, tais quais: poema, verbo, sílaba, retórica, gramática, vocábulo, verso, drama, antologia, pronome etc.

São termos com os quais qualquer poeta como Brito se vê enredado e, por eles, exatamente por articular as palavras para criar encanto e beleza, julga o vate que, ao final, encontrará a redenção pela absolvição de eventuais heresias.

J.A.R. – H.C.

Mário da Silva Brito
(n. 1916)

Retrato

Das palavras nascem o poema e a solidão.
O verbo é punhal traiçoeiro e rosa sangrenta.
Uma sílaba contém o amor e a outra o exílio.
Boca, por que hás de falar e sempre em vão?

Calcinada flor, desfaz-se em pó a retórica.
Que olhos abismados soletram a gramática?
Dançam os vocábulos o baile dos equívocos
em torno do home atônito, filho da treva.

Um destino se esconde no verso e a vida é drama.
Rito de ódio e canto de embalar irrompem das antologias.
O pecado e o crime foram gerados diante do pronome.

Rei e servo, santo e demônio, o lábio escolhe o tempo.
Alguém me absolverá quando todos me condenarem.
Estou marcado de culpas e sou um homem.

Terra - Pintura Abstrata
(Amytea: artista francesa)

Referência:

BRITO, Mário da Silva. Retrato. In: __________. PoeMário da Silva Brito. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1966. p. 64. (Coleção ‘Poesia Hoje’; Direção de Moacyr Félix; Série ‘Poetas Brasileiros’; v. 7)

sábado, 30 de janeiro de 2016

João Cabral de Melo Neto - Poema Deserto

Há neste poema de João Cabral muito de sinistro, mesmo que a pergunta que nele desponta seja atribuída a um terceiro, que não o detentor da própria voz poética: “Por que não um tiro de revólver ou a sala subitamente às escuras?”.

No fundo, o poeta se encontra imerso num processo de transformação catártico e, o que é pior, julga não haver meios de agir diretamente sobre os incômodos que o afligem, pois estes ocorrem sem o seu consentimento.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Poema Deserto

Todas as transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu consentimento.

Todos os atentados
eram longe de minha rua.
Nem mesmo pelo telefone
me jogavam uma bomba.

Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de meu quarto
onde nenhuma evidência era provável.

Havia também alguém que perguntava:
Por que não um tiro de revólver
ou a sala subitamente às escuras?

Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.

Desespero
(Frank Holl: pintor inglês)

Referência:

MELO NETO, João Cabral. Poema deserto. In: KOPKE, Carlos Burlamarqui. Antologia da poesia brasileira moderna: 1922-1947. São Paulo, SP: Clube de Poesia de São Paulo, 1953. p. 211.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Lee Evans - Resto

Da seção “Environment” (“Meio Ambiente”) do livro de referência, extraímos este poema, meio desencantado meio compassivo, de autoria do poeta norte-americano Lee Evans, que vive em Bath, Maine, EUA, onde trabalha para a YMCA local (McALISTER; McALISTER, 2011, p. 117).

As imagens por ele suscitadas relembram as vicissitudes de quem, entrando em contato íntimo com a Ciência, e nela depositando todas as suas esperanças, acaba experimentando alguns sentimentos de frustração, pois, afinal, trata-se de um empreendimento bastante humano, passível, portanto, de desvios em sua rota.

J.A.R. – H.C.

Experiência com um Pássaro
numa Bomba de Ar
(Joseph Wright: pintor inglês)

Remainder

I dreamed that Science would relieve my pain;
And through the weary night I tossed and turned,
Tormented by utopian concerns
To satisfy all cravings in my brain −
Surmount the bounds of space and time and strain
With brave new breakthroughs of Technology:
When suddenly, all Nature turned on me
The elements I thought that I had tamed!
Consumed with fire, choked in a watery grave,
By earth’s upheavals torn, I gasped for breath;
As every atom of which these were made
Split open, to reveal the jaws of death −
But in the twisted ruins of my toys,
Compassion stood, of all things undestroyed.

Caverna à Tarde
(Joseph Wright)

Resto

Sonhei que a Ciência amenizaria a minha dor;
E durante a exaustiva noite me debatia e revirava,
Atormentado por inquietações utópicas
Para satisfazer todos os desejos em meu cérebro –
Superar os limites do espaço e do tempo, transpondo-os
Com novos e corajosos avanços da Tecnologia:
Quando, de repente, a Natureza inteira restituiu-me
Os elementos que pensei haver domado!
Consumido pelo fogo, sufocado numa tumba aquífera,
Lacerado pelas convulsões da Terra, eu arfava por alento;
Enquanto cada átomo dos quais tais elementos foram feitos
Despedaçou-se, para revelar as garras da morte –
Porém nas ruínas retorcidas de meus brinquedos,
Subsistiu a compaixão de todas as coisas não destruídas.

Referência:

Evans, Lee. Remainder. In: McALISTER, Neil Harding; McALISTER, Zara (Eds.). Science poetry. Illustrated by Lynn Hocker. Port Perry, Ontario, Canada: Published by Neil Harding McAlister, jun.2011. p. 70.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Marcos Konder Reis - Mapa

Da lavra do epigrafado poeta catarinense, este poema demarca todas as instâncias possíveis, quaisquer que sejam as latitudes ou longitudes, a partir das quais se torna possível alcançar o “condado do amor”.

Trata-se de um “mapa azul de infância”, quer seja dia quer noite, por onde a imaginação resgata indeléveis esperanças de trilhar a estrada que leva à epifania da mais profunda emoção humana.

J.A.R. – H.C.

Marcos Konder Reis
(1922-2001)

Mapa

Ao norte, a torre clara, a praça, o eterno encontro,
A confidência muda com teu rosto por jamais.
A leste, o mar, o verde, a onda, a espuma,
Esse fantasma longe, barco e bruma,
O cais para a partida mais definitiva
A uma distância percorrida em sonho:
Perfume da lonjura, a cidade santa.

O oeste, a casa grande, o corredor, a cama:
Esse carinho intenso de silêncio e banho.
A terra a oeste, essa ternura de pianos e janelas abertas
A rua em que passavas, o abano das sacadas: o morro e o
cemitério e as glicínias.
Ao sul, o amor, toda a esperança, o circo, o papagaio, a
nuvem: esse varal de vento,
No sul iluminado o pensamento no sonho em que te sonho
Ao sul, a praia, o alento, essa atalaia ao teu país

Mapa azul da infância:
O jardim de rosas e mistério: o espelho.
O nunca além do muro, além do sonho o nunca
E as avenidas que percorro aclamado e feliz.

Antes o sol no seu mais novo raio,
O acordar cotidiano para o ensaio do céu,
Preto e branco e girando: andorinha e terral.
Depois a noite de cristal e fria,
A noite das estrelas e das súbitas sanfonas afastadas,
Tontura de esperanças: essa mistura de beijos e de danças
pela estrada
Numa eterna chegada ao condado do Amor.

(Em: “Armadura do Amor”)

Luz do Amor
(Leonid Afremov: pintor israelense)

Referência:

REIS, Marcos Konder. Mapa. In: BISHOP, Elizabeth; BRASIL, Emanuel (Eds.).
An anthology of twentieth-century brazilian poetry. Bilingual edition. Hanover, NH: Wesleyan University Press, 1972. p. 166.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Jesús Munárriz - Diz-me, bicho, quem és tu?

Loas a um felino indefinido, conformado em provável escultura de estanho: dessa forma vislumbramos o ser que o poeta espanhol descreve no poema abaixo. Um ser que, em suas linhas gerais, parece emergir dos sonhos mais bizarros de um escultor surrealista.

Não há pelo nessa criatura. Mas ainda assim Munárriz nela enxerga um tigre camuflado, ou mesmo o delírio onírico do também espanhol Francisco de Quevedo. Seja como for, conclui, um sem-vergonha feliz e enamorado dimana de suas arestas de aço.

J.A.R. – H.C.

Jesús Munárriz
(n. 1940)

Dime, bicho, ¿tú quién eres?

¿Un león revestido de hojalata
o el sueño de Francisco de Quevedo?
¿Feliz metamorfosis de un torpedo
o gato astral maullándole a su gata?
Aunque tu indumentaria te delata
con su brillo de acero de Toledo,
no eres sólo un robot, sólo un remedo;
tu ambigüedad es demasiado grata.
Extraño ser, simpático ensamblaje,
careces por completo de pelaje
pero en tu porte hay algo de felino,
de tigre camuflado y clandestino,
y no dejas de ser, aunque inventado,
un golferas feliz y enamorado.

(Del libro inédito “Dibujos animados”)

Ortostatismo
(DALeast: artista chinês)

Diz-me, bicho, quem és tu?

– Um leão revestido de estanho
ou o sonho de Francisco de Quevedo?
Feliz metamorfose de um torpedo
ou gato astral miando para a sua gata?
Ainda que tua indumentária te delate
com seu brilho de aço de Toledo,
não és somente um robô, somente um arremedo;
tua ambiguidade é muito agradável.
Estranho ser, simpática montagem,
careces por completo de pelo
porém em teu porte há algo de felino,
de tigre camuflado e clandestino,
e não deixas de ser, mesmo que inventado,
um sem-vergonha feliz e enamorado.

Referência:

Munárriz, Jesús. Dime, bicho, ¿tú quién eres?. In: __________. Poética y poesia: Jesús Munárriz. Madrid, ES: Fundación Juan March, 2007. p. 77.
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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Manuel Bandeira - Antologia

Às vezes as palavras são verbalizadas por um sentimento evasivo ou de tédio com a vida. Desencanto com tudo, de modo que a morte seja um ponto de confluência de todos os desejos da alma.

Estar assim tão mortificado pode ser perigoso. Ainda mais para um poeta por demais sensível quanto o pernambucano em questão, que passou a vida a sofrer males não só da alma, quanto – e principalmente – do corpo.

J.A.R. – H.C.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Antologia

A vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Vou-me embora p’ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.
Quero esquecer tudo:
– A dor de ser homem...
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

Quando a Indesejada das gentes chegar
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(Em: “Estrela da Tarde”, Rio, 1965)

Evasão Marítima
(Eric Munsch: artista francês)

Referência:

BANDEIRA, Manuel. Antologia. In: __________. Manuel Bandeira de bolso: uma antologia poética. Organização e apresentação de Mara Jardim. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013. p. 144-145. (L&PM Pocket; v. 675)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Zbigniew Herbert - Pedra

Zbigniew Herbert, poeta, dramaturgo e ensaísta polonês, confronta os atributos humanos aos de uma simples pedra: as pedras são autossuficientes, mas, contrariamente às gentes, não destoam de sua própria essência, pois seus limites não vão além da divisa de sua “pele”.

Herbert parece querer denunciar as insinceras verdades dos seres humanos, os quais, quando domados, tornam-se incapazes de revelar a sua face mais autêntica, irradiando, por isso mesmo, “um falso calor”, que rouba e exila a transparência de seus olhos. 

J.A.R. – H.C.

Zbigniew Herbert
(1924-1998)

Kamyk

Kamyk jest stworzeniem
doskonałym

równy samemu sobie
pilnujący swych granic

wypełniony dokładnie
kamiennym sensem

o zapachu który niczego nie przypomina
niczego nie płoszy nie budzi pożądania

jego zapał i chód
są słuszne i pełne godności

czuję ciężki wyrzut
kiedy go trzymam w dłoni
i ciało jego szlachetne
przenika fałszywe ciepło

- Kamyki nie dają się oswoić
do końca będą na nas patrzeć
okiem spokojnym bardzo jasnym

(Original em polonês extraído deste endereço) 


The Pebble

The pebble
is a perfect creature

equal to itself
mindful of its limits

filled exactly
with a pebbly meaning

with a scent that does not remind one of anything
does not frighten anything away does not arouse desire

its ardour and coldness
are just and full of dignity

I feel a heavy remorse
when I hold it in my hand
and its noble body
is permeated by false warmth

− Pebbles cannot be tamed
to the end they will look at us
with a calm and very clear eye

(Translated by Peter Dale Scott and Czeslaw Milosz)
  

Pedra

A pedra
é uma criatura perfeita

igual a si mesma
percebe seus limites

é perfeitamente preenchida
por seu sentido de pedra

seu cheiro não lembra nada
não assusta não excita

seu ardor e frieza
são justos e dignos

sinto um grande remorso
quando a pego na mão
e seu corpo nobre
é envolvido pelo meu falso calor

– Pedras não podem ser domadas
até o fim nos olharão
com olhos calmos e transparentes


Referência:

HERBERT, Zbigniew. The pebble. In: PINSKY, Robert; DIETZ, Maggie (Eds.). American’s favorite poems: the favorite poem project anthology. New York, NY: W. W. Norton, 2000. p. 118.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Jane Kenyon - De outro modo

A poetisa norte-americana Jane Kenyon retrata o que há de mais contingente no seu quotidiano, ao reconhecer que não há experiências necessárias, mas experiências alternativas, que, se não forem de um modo, serão de outro.

Aliás, a vida de um ser humano, neste plano, dificilmente trilha o eito do que fora planejado desde o seu início. Há tantos fatos que nos alcançam de forma inopinada, que seria capaz de afirmar que eles configuram a parcela maior da experiência, em detrimento daquilo que um dia postulamos seguir de modo preconcebido.

J.A.R. – H.C.

Jane Kenyon
(1947-1995)

Otherwise

I got out of bed
on two strong legs.
It might have been
otherwise. I ate
cereal, sweet
milk, ripe, flawless
peach. It might
have been otherwise.
I took the dog uphill
to the birch wood.
All morning I did
the work I love.

At noon I lay down
with my mate. It might
have been otherwise.
We ate dinner together
at a table with silver
candlesticks. It might
have been otherwise.
I slept in a bed
in a room with paintings
on the walls, and
planned another day
just like this day.
But one day, I know,
it will be otherwise.

Descanso do Trabalho
(Van Gogh: pintor holandês)

De outro modo

Usei a força das minhas duas pernas
para me levantar da cama.
Poderia ter sido
de outro modo. Comi
cereais – com leite
e doce – e um pêssego
perfeito e maduro. Poderia
ter sido de outro modo.
Subi a encosta com o cão
até ao bosque dos vidoeiros.
Durante toda a manhã
fiz o trabalho que adoro.

Ao meio-dia deitei-me
com o meu companheiro. Poderia
ter sido de outro modo.
Jantámos juntos
numa mesa com castiçais
de prata. Poderia
ter sido de outro modo.
Dormi numa cama
num quarto com quadros
nas paredes, e
planeei um novo dia
igual ao de hoje.
Mas um dia, eu sei,
será de outro modo.

(Tradução de Luís Filipe Parrado em
seu blog “Do trapézio, sem rede”)

Referência:

KENYON, Jane. Otherwise. In: PINSKY, Robert; DIETZ, Maggie (Coords.). American’s favorite poems: the favorite poem project anthology. New York, NY: W. W. Norton, 2000. p. 153.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Cacaso - Jogos Florais

Um poema, como muitos há na literatura contemporânea brasileira, a parodiar a já clássica “Canção do Exílio”, do poeta maranhense Gonçalves Dias: tal é a postagem do dia.

O pastiche é engraçado e, claro, tem a perícia das melhores criações modernistas. Pena que o poeta haja vivido pouco, para que pudesse ver a Terra Brasilis cada vez mais desvestida de sua flora natural. Ou seja, sabiás e tico-ticos têm que penar um bocado para agora pousar em palmeiras (rs)...

J.A.R. – H.C.

Cacaso – pseudônimo de Antonio Carlos de Brito (1944, Uberaba, MG – 1987, Rio de Janeiro, RJ). Poeta e ensaísta. Quarto momento do Modernismo. Obra poética: A palavra cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Na corda bamba (1978), Beijo na boca e outros poemas (1985), Lero-lero (2012) etc. (BRAGA, 2015, p. 186).

Cacaso
(1944-1987)

Jogos Florais

I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avanço da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com esses 2 esses
que se escreve paçarinho?)

Floresta Tropical
(Alberto da Veiga Guignard: pintor brasileiro)

Referência:

BRAGA, Rubem (1913-1990). A poesia é necessária. Organização de André Seffrin. 1. Ed. São Paulo, 2015. p. 162.