Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 30 de junho de 2020

Ruy Belo - O Portugal Futuro

Uma mensagem de esperança para o Portugal do futuro, apostando na nova geração para a construção de uma sociedade mais equilibrada, a superar os traumas do passado, sem descuidar de um sonho que se assente no melhor dos mundos possíveis: um caudal capaz de desvanecer quaisquer vestígios de torpor ou de letargia frente aos episódios da História, idos e vividos.

Essa a utopia de Ruy Belo, uma utopia que não se define no plano da irrealidade, do inatingível, do inexecutável, senão que se esteia no terreno das possibilidades objetivas, na impetuosidade já demonstrada de ir em busca do novo e do desconhecido, num salto ao mesmo tempo destemido e prudente: vai Portugal, em busca do teu fado!

J.A.R. – H.C.

Ruy Belo
(1933-1978)

O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Em: “País Possível” (1973)

Mar, pássaro e formas
(John Wells: artista inglês)

Referência:

BELO, Ruy. O Portugal futuro. In: MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 24.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Paul Muldoon - Conhecendo os Britânicos

O poeta norte-irlandês mostra com um exemplo contumaz o que seriam as práticas britânicas no momento de expansionismo de seu império durante o século XVIII, a alongar-se sobre as terras da América do Norte, mais exatamente sobre a região dos Grandes Lagos, nas imediações onde, hoje, situa-se a capital do Canadá, Ottawa.

Para entender o sentido do poema de Muldoon, julgo importante a leitura da nota postada pelo editor da obra em referência, que mais abaixo transcrevo em nosso idioma: os britânicos passaram a expor mantas infectadas em direção aos indígenas locais, para inocular sobre eles o vírus da varíola e assim dizimá-los e às suas forças, pressionando o seu líder maior, Pontiac, a firmar um termo de paz.

J.A.R. – H.C.

Paul Muldoon
(n. 1951)

Meeting the British

We met the British in the dead of winter.
The sky was lavender

and the snow lavender-blue.
I could hear, far below,

the sound of two streams coming together
(both were frozen over)

and, no less strange,
myself calling out in French

across that forest-
clearing. Neither General Jeffrey Amherst (*)

nor Colonel Henry Bouquet
could stomach our willow-tobacco.

As for the unusual
scent when the Colonel shook out his hand-

kerchief: C’est la lavande,
une fleur mauve comme le ciel.

They gave us six fishhooks
and two blankets embroidered with smallpox.

(1987)

Rubor invernal polvilhado de
estrelas azul lavanda
(Angela Whitehouse: artista inglesa)

Conhecendo os Britânicos

Conhecemos os britânicos no auge do inverno.
Havia um tom de lavanda no céu

e mesmo a neve exibia um azul-lavanda.
Podia ouvir, muito distante,
o som de dois riachos que se uniam
(ambos estavam congelados)

e, não menos estranho,
meu nome sendo chamado em francês

através daquela clareira
na floresta. Nem o General Jeffrey Amherst,

tampouco o Coronel Henry Bouquet puderam
tolerar nosso tabaco de casca de salgueiro.

Bem assim o incomum aroma que se desprendeu
quando o Coronel sacudiu o seu lenço

de mão: É a lavanda,
uma flor púrpura como o céu.

Eles nos deram seis anzóis
e duas ornadas mantas com varíola.

(1987)

Nota do Editor da Obra em Referência:

(*) Comandante em chefe das forças britânicas na Guerra Franco-Indígena (1754-63), ocasião em que lutou contra a França e seus aliados nativos americanos. Durante a Rebelião de Pontiac, liderada pelo chefe Pontiac de Ottawa na região dos Grandes Lagos, Amherst escreveu ao oficial britânico Coronel Bouquet: “Não se poderia cogitar em enviar a varíola em direção àquelas tribos de índios desafetas?” Bouquet replicou: “Tentarei inocular os índios por meio de mantas que possam cair em suas mãos, tomando o cuidado para não contrair a doença”, ao que Amherst redarguiu: “Você fará bem em tentar inocular os índios por meio de cobertores, bem como pelo emprego de todos os outros métodos que possam servir para extirpar essa raça execrável”. Aparentemente, tal foi um dos planos, muito similar a outros tantos, que os oficiais britânicos tentaram frente aos nativos americanos na área, jamais expostos à varíola, sendo, por conseguinte, mortos pela doença entre 1763-64. Em consequência, Pontiac ultimou um tratado de paz com os britânicos em julho de 1766.

Referência:

MULDOON, Paul. Meeting the british. In: GREENBLATT, Stephen (General Editor). The norton anthology of english literature. 8th. Edition. Vol. 2. New York, NY; London, EN: W. W. Norton & Company, 2006. p. 2.869-2.870.

domingo, 28 de junho de 2020

Yves Bonnefoy - Justiça

Como à primeira vista possa parecer, a palavra “Douve”, presente na última estrofe deste poema de Bonnefoy, não é uma presença feminina, tampouco se associa inextrincavelmente à ideia de Justiça, haja vista que se repete prodigamente em grande parte de sua obra “Du mouvement et de l’immobilité de Douve” (“Sobre o movimento e a imobilidade de Douve”), de 1953, a encetar outras tantas conexões que, nem de longe, se associam ao exercício da jurisdição.

O mais provável é que se trate de uma abstração relacionada à própria técnica poética, à natureza de sua inspiração, como num ‘insight’, iluminação, epifania, ou, até mesmo, ao impacto que a morte acarreta em suas emoções, como se uma fênix fosse – tudo isso muito a despeito de a palavra “douve” denotar, enquanto substantivo comum, um fosso preenchido com água à volta de um castelo, segundo o Dicionário Larousse.

O enfoque de Bonnefoy para o tema da Justiça é uma nítida e legítima reivindicação dos valores que sobre ela recaem, para que não se torne refém da falsa retórica, de pretensas quimeras ou de convicções em completa desconexão perante a realidade: diante dessa fabulosa causa, pleiteia-se a catarse necessária capaz de restaurar o equilíbrio nas coisas terrenas.

J.A.R. – H.C.

Yves Bonnefoy
(1923-2016)

Justice

Mais toi, mais le désert! étends plus bas
Tes nappes ténébreuses.
Insinue dans ce coeur pour qu’il ne cesse pas
Ton silence comme une cause làbuleuse.

Viens. Ici s’interrompt une pensée.
Ici n’a plus de route un beau pays.
Avance sur le bord de cette aube glacée
Que te donne en partage un soleil ennemi.

Et chante. C’est pleurer deux Ibis ce que tu pleures
Si tu oses chanter par grand refus.
Souris, et chante. Il a besoin que tu demeures.
Sombre lumière, sur les eaux de ce qu’il lut.

Je prendrai dans mes mains ta face morte.
Je la coucherai dans son froid. Je ferai de mes mains
sur ton corps immobile la toilette inutile des morts.

L’orangerie sera ta résidence.
Sur la table dressée dans une autre lumière
Tu coucheras ton cœur.
Ta lace prendra feu, chassant à travers branches.

Douve sera ton nom au loin parmi les pierres,
Douve profonde et noire.
Eau basse irréductible où l’effort se perdra.

Alegoria da Justiça
(Luca Giordano: pintor italiano)

Justiça

Mas tu, mas o deserto! estende e desce
As toalhas tenebrosas.
Insinua em meu peito para que não cesse
O teu silêncio como causa fabulosa.

Vem. Aqui se interrompe um pensamento.
Aqui um lindo país já não tem trilha.
Bordeja essa alva glacial no firmamento
Que te atribui um sol adverso por partilha.

E canta. É duas vezes chorar isso que choras
Se tu ousas cantar por grandes mágoas.
Sorri e canta. Ele carece agora
Que fiques luz sombria, do que foi, nas águas.

Eu tomarei nas mãos a tua face morta. Vou recliná-la
no seu frio. Farei com minhas mãos em teu imóvel
corpo a toalete inútil dos mortos.

Será o viveiro a tua residência.
Por sobre a mesa posta noutra luz banhada
Porás teu coração.
Tua face arderá, caçando em meio aos ramos.

Douve será teu nome, ao longe em meio às pedras,
Douve profunda e negra.
Água rasa onde o esforço vão se perderá.

Referência:

BONNEFOY, Yves. Justice / Justiça. Tradução de Mário Laranjeira. In: __________. Obra poética. Tradução e apresentação de Mário Laranjeira. Prefácio de Yves Bonnefoy. São Paulo, SP: Iluminuras, 1998. Em francês e em português: p. 92-94.

sábado, 27 de junho de 2020

Hilda Hilst - Presságio

Uma preguiça tomou conta da poetisa que a leva a deplorar o fato de se ter filhos, pelo trabalho que haverão de ocasionar aos pais, sempre à procura de alguma coisa, sempre a perguntar por questões que aos seus olhos pareçam não encerrar nenhum sentido, e sem que, ao fim, se lembrem daqueles por quem tanto buscaram e que já morreram, sem entender-lhes os motivos pelos quais, eventualmente, se mataram.

De qualquer modo, ficarão eles “insatisfeitos”, “incompreendidos”, porque imaginarão que são os “destinados”, a cogitar que estão passando por circunstâncias pelas quais os outros jamais passaram: de sua parte, sobrevirá o silêncio, pois logo haverá de perceber que são “inúteis” as palavras, esse percutir sonoro que, no mais das vezes, não encontra ressonância na mente dos rebentos.

J.A.R. – H.C.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Presságio

Tenho preguiça
pelos filhos que vão nascer.

Teremos que explicar
tanta cousa a tantos deles.
Um dia hão de me perguntar
tudo o que perguntei:
Mãe, por que não posso
ver Augusto quando quero?
Mãe, andei lendo muito esses dias
e estou quase chegando
a encontrar o que eu queria.

Inutilidade das palavras.

Tenho preguiça.
Tanta preguiça
pelos filhos que vão nascer.
Dez, vinte, trinta anos
e estarão procurando alguma cousa.
Nunca se lembrarão
daqueles que já morreram
e procuraram tanto.
Vão custar (ó deuses)
a entender aqueles
que se mataram.
Os filhos que vão nascer,
coitados!
Hão de pensar que são eles
os destinados.
Hão de pensar que você
nunca passou o que eles estão passando.

Os filhos que vão nascer...

Insatisfeitos.
Incompreendidos.

Em: “Presságio” (1950)

Criança geopolítica: observando
o nascimento do homem novo
(Salvador Dalí: pintor espanhol)

Referência:

HILST, Hilda. Presságio. In: __________. Da poesia. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 33-34. 

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Amina Saïd - A Terra

Quase que por um discurso próximo ao do Gênesis, a poetisa tunisiana cinge em dois o trânsito da Terra no tempo: aquele anterior ao surgimento do homem, quando todas as formas de vida, bem assim as inanimadas, eram plenas de luz e de beleza; e a posterior ao seu advento, quando sobreveio a angústia e a morte – essa onipresente experiência que irrompe inopinadamente à sua volta.

Uma observação: Saïd emprega, em determinado verso, a palavra “gangue”, cuja tradução sugerida pelo Larousse é “ganga”, como abaixo evidencio. E dado o sentido que, em nosso idioma, se atribui a tal verbete, presumo que, entre o aventado “clamor” ou “grito” do homem e a substantiva e profunda realidade a que este se dirige, medeia um substrato – conotado como “ganga” – onde se interpõe o “silêncio”, elemento a dificultar a plena interlocução entre os humanos e destes com o universo.

J.A.R. – H.C.

Amina Saïd
(n. 1953)

La Terre

portait le ciel en tête
né d’un désir de lumière
l’oiseau portait son chant

les pierres sacrées
empruntaient leur forme
au soleil à la lune

et toujours la terre
portait le ciel en tête

puis vint l’homme
sa détresse extrême

autour de son cri
la gangue du silence
dans son regard plus qu’ailleurs
la mort

car tout finit
par être ce qu’il contemple

Estudo do céu com pássaros
(Jean-Michel Cels: pintor belga)

A Terra

no princípio carregava o céu
nascido de um desejo de luz
o pássaro carregava o seu canto

as pedras sagradas
modelaram sua forma
ao sol e à lua

e no princípio sempre
a Terra a carregar o céu

logo veio o homem
e sua extrema angústia

ao redor de seu clamor
a ganga do silêncio
em seus olhos mais do que em
quaisquer outros lugares
a morte

porque tudo finda
por ser isto o que ele contempla

Referência:

SAÏD, Amina. La terre. In: CAWS, Mary Ann (Ed.). The Yale anthology of twentieth-century french poetry. Part 6: 1981–2002 – young poetry at the end of the millennium. Bilingual edition: French – English. New Haven, CT: Yale University Press, 2004. p. 602 and 604.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Xavier Villaurrutia - A Décima Morte

Nota-se, na tradução do poema em epígrafe, elaborada pelo escritor, poeta e jornalista Paulo Mendes Campos, a ausência de algumas de suas 10 (dez) décimas, nomeadamente as de números I a II e VII a IX: não saberia informar se ocorreu uma imperfeição na edição da coletânea de poemas próprios e traduzidos do autor mineiro, que ensejou tal ausência, ou se, pelo contrário, houve por parte deste apenas as versões das décimas mais abaixo transcritas. Seja como for, em nota ao final da postagem, apresento uma versão literal das décimas faltantes, para que o internauta possa apreciá-las em nosso idioma, caso não as compreenda em espanhol.

O ente lírico dirige-se à morte, consciente de sua onisciente presença, bem ao lado de sua coirmã, a vida, a qual, como numa ampulheta, esvai-se aos poucos, de sorte que ao se preencher a base oposta dá-se termo a uma e inicia-se a outra. Nesse momento, em que o movimento se converte em inércia, o poeta vê alguma beleza, como se uma pedra preciosa, um diamante, fosse a sua figura agora “opaca, febril e cambiante”.

J.A.R. – H.C.

Xavier Villaurrutia
(1903-1950)

Décima Muerte

A Ricardo de Alcázar

I

¡Qué prueba de la existencia
habrá mayor que la suerte
de estar viviendo sin verte
y muriendo en tu presencia!
Esta lúcida conciencia
de amar a lo nunca visto
y de esperar lo imprevisto;
este caer sin llegar
es la angustia de pensar
que puesto que muero existo.

II

Si en todas partes estás,
en el agua y en la tierra,
en el aire que me encierra
y en el incendio voraz;
y si a todas partes vas
conmigo en el pensamiento,
en el soplo de mi aliento
y en mi sangre confundida,
¿no serás, Muerte, en mi vida,
agua, fuego, polvo y viento?

III

si tienes manos, que sean
de un tacto sutil y blando,
apenas sensible cuando
anestesiado me crean;
y que tus ojos me vean
sin mirarme, de tal suerte
que nada me desconcierte
ni tu vista ni tu roce,
para no sentir un goce
ni un dolor contigo, Muerte.

IV

Por caminos ignorados,
por hendiduras secretas,
por las misteriosas vetas
de troncos recién cortados,
te ven mis ojos cerrados
entrar en mi alcoba oscura
a convertir mi envoltura
opaca, febril, cambiante,
en materia de diamante
luminosa, eterna y pura.

V

No duermo para que al verte
llegar lenta y apagada,
para que al oír pausada
tu voz que silencios vierte,
para que al tocar la nada
que envuelve tu cuerpo yerto,
para que a tu olor desierto
pueda, sin sombra de sueño,
saber que de ti me adueño,
sentir que muero despierto.

VI

La aguja del instantero
recorrerá su cuadrante,
todo cabrá en un instante
del espacio verdadero
que, ancho, profundo y señero,
será elástico a tu paso
de modo que el tiempo cierto
prolongará nuestro abrazo
y será posible, acaso,
vivir después de haber muerto.

VII

En el roce, en el contacto,
en la inefable delicia
de la suprema caricia
que desemboca en el acto,
hay un misterioso pacto
del espasmo delirante
en que un cielo alucinante
y un infierno de agonía
se funden cuando eres mía
y soy tuyo en un instante.

VIII

¡Hasta en la ausencia estás viva!
Porque te encuentro en el hueco
de una forma y en el eco
de una nota fugitiva;
porque en mi propia saliva
fundes tu sabor sombrío,
y a cambio de lo que es mío
me dejas sólo el temor
de hallar hasta en el sabor
la presencia del vacío.

IX

Si te llevo en mí prendida
y te acaricio y escondo,
si te alimento en el fondo
de mi más secreta herida;
si mi muerte te da vida
y goce mi frenesí,
¡qué será, Muerte, de ti
cuando al salir yo del mundo,
deshecho el nudo profundo,
tengas que salir de mí?

X

En vano amenazas, Muerte,
cerrar la boca a mi herida
y poner fin a mi vida
con una palabra inerte.
¡Qué puedo pensar al verte,
si en mi angustia verdadera
tuve que violar la espera;
si en vista de tu tardanza
para llenar mi esperanza
no hay hora en que yo no muera!

Morte e Vida
(Gustav Klimt: pintor austríaco)

A Décima Morte

Se tens mãos, elas me sejam
de um tanto sutil e brando,
apenas sensível quando
anestesiado me creiam;
e que teus olhos me vejam
sem olhar-me, de tal sorte
que nada me desconforte
ao te roçar, ao te ver,
para não sentir prazer,
e nem dor, contigo, Morte.

Por caminhos ignorados,
por secretos entremeios,
por misteriosos veios
de troncos recém-cortados,
te veem meus olhos fechados
penetrar-me a alcova escura
e converter-me a figura
opaca, febril, cambiante,
em matéria de diamante,
luminosa, eterna e pura.

Não durmo, querendo ver-te,
lenta, chegar, apagada,
querendo ouvir-te, pausada,
a voz que silêncios verte;
para que, tocando o nada,
que envolve teu corpo incerto,
e ao teu aroma deserto,
possa, sem sombra de engano,
a ti saber que me irmano,
sentir que morro desperto.

O ponteiro dos segundos
percorrerá seu quadrante;
será tudo em um instante
desse espaço moribundo
que, largo, só e profundo,
será dócil ao teu passo,
de modo que o tempo forte
prolongará nosso abraço
e assim será possível
viver mais depois da morte.

Morte, em vão ameaças
fechar-me a boca à ferida
e pôr fim à minha vida
com uma palavra baça.
Que desejas mais que faça,
se, na dor que me devora,
violei tua demora;
se, por ver tua tardança,
para encher-me a esperança
que não morra não há hora!

Nota:

Versões literais ao português das estrofes faltantes são apresentadas a seguir:

(I) Que prova da existência / haverá maior que a sorte / de viver sem ver-te / e morrer em tua presença! / Esta lúcida consciência / de amar o nunca visto / e de esperar o imprevisto; / este cair sem chegar / é a angústia de pensar / que uma vez que morro, existo.

(II) Se em todas as partes estás, / na água e na terra, / no ar que me encerra / e no incêndio voraz; / e se a todas as partes vais / comigo no pensamento, / no sopro de meu alento / e em meu sangue confundida, / não serás, Morte, em minha vida, / água, fogo, poeira e vento?

(VII) No toque, no contato, / na inefável delícia / da suprema carícia / que desemboca no ato, / há um misterioso pacto / de espasmo delirante / em que um céu alucinante / e um inferno de agonia / se fundem quando és minha / e sou teu em um instante.

(VIII) Até na ausência estás viva! / Porque te encontro no oco / de uma forma e no eco / de uma nota fugitiva; / porque em minha própria saliva / fundes o teu sabor sombrio, / e em troca do que é meu / me deixas só o temor / de sentir até no sabor / a presença do vazio.

(IX) Se te levo em mim retida / e te acaricio e escondo, / se te alimento no fundo / de minha mais secreta ferida; / se minha morte te dá vida / e gozo meu frenesi, / o que será, Morte, de ti / quando eu ao sair do mundo, / desfeito o elo profundo, / tenhas que sair de mim?

Referências:

Em Espanhol

VILLAURRUTIA, Xavier. Décima muerte. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 abr. 2020.

Em Português

VILLAURRUTIA, Xavier. A décima morte. Tradução de Paulo Mendes Campos. In: __________. Os melhores poemas de Paulo Mendes Campos. Poemas Traduzidos de ‘Diário da Tarde’ e ‘Trinca de Copas’. 1.e.d Seleção de Guilhermino Cesar. São Paulo, SP: Global, 1990. p. 187-188. (‘Os Melhores Poemas’; v. 22)