Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Belém do Pará – A Sujeira em Cada Canto!



A cada vez que visito a minha cidade natal fico mais desencantado: quanta sujeira nas ruas – e não há que se contestar a pesquisa mais ou menos recente veiculada em “O Fantástico”, da Rede Globo, de a capital paraense estar entre as três mais sujas do país, atrás somente de Salvador e de Fortaleza.

Vejam que no vídeo, abaixo indicado, ainda aparece uma figura política tentando jogar toda a culpa em cima da população, que, a seu ver, vandaliza as lixeiras que estão instaladas pela cidade!


Mas o fato é que as causas são múltiplas, respeitada a seguinte ordem lexicográfica de importância:

(i) a prefeitura de Belém que, efetivamente, não instala há décadas quaisquer receptores qualificados de lixo pela cidade, porquanto o que se vê, ainda, são lixeiras instaladas pelo então prefeito/governador Hélio Gueiros, combinações inadequadas de madeira e de ferro, para coleta num meio ambiente superúmido e chuvoso como o da capital;

(ii) a própria população, mal-educada, que joga qualquer coisa em qualquer lugar, sendo mesmo o caso de se perguntar se faria de modo similar quando no lar; e

(iii) eventual depredação das lixeiras instaladas, por vândalos.

Parece que Belém ficou à margem de qualquer processo civilizatório que faça referência, por exemplo, a coletas seletivas, pois isso é quase um luxo em seu espaço urbano!

E a pichação em prédios públicos e privados?... Nem se fale!

Que pena, pois essas coisas apenas deploram o nome da cidade, afugentando mais e mais os potenciais turistas!

Acorda, Belém, para o futuro!

H. C. / J. A. R.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Condição de Ser Judeu - Parte III

Foram as medidas ferozes e hipócritas do cristianismo que reduziram à usura os judeus medievais e renascentistas. E que fizeram um tipo da figura de Shylock. Mas há um elemento suplementar. A intimidade dos judeus com o dinheiro é, em certo sentido, visceral. Remonta aos múltiplos motivos e prescrições fiscais com que deparamos no livro de Moisés. Como talvez em nenhuma outra mitologia, o dinheiro desempenha um papel canônico nas narrativas da boa sorte e da traição. O vendedor ambulante habilidoso é identificado muitas vezes com o judeu errante. Acedendo a uma categoria superior, aquele tornar-se-á negociante avisado, mercador que atravessa as fronteiras, banqueiro e corretor do capitalismo. Independentemente das bases que possa ter no protestantismo, a evolução do capitalismo moderno e a crítica que inspirou encontram um quadro natural e adaptativo no interior das comunidades de judeus. Os Rothschild substituem Shylock. Dos finais do século XIX em diante, a assiduidade e o engenho dos judeus nos mercados financeiros, nos bancos de investimento, nos capitais de risco e nas bolsas foram praticamente dominadores. A aristocracia judaica, a dos Bleichröder, dos Rothschild, dos Warburg e Lazard foi uma aristocracia da alta finança. Companhias como a Goldman Sachs ou a Lehman Brothers, alquimistas individuais como George Soros, foram atores decisivos nos mecanismos fiscais do Ocidente. A economia das multinacionais mobilizou em seu proveito os instintos itinerantes e cosmopolitas dos judeus. E “naturaliza” a sua condição. É assim que, hoje, uma percentagem significativa da finança global se encontra sob a gestão de judeus. Os talentos analíticos e matemáticos revelados pelos lógicos e cientistas judeus afirmaram-se brilhantemente nos domínios, ao mesmo tempo hiper-racionais e demoníacos, do dinheiro. Daqui a consonância entre a Diáspora e os impulsos econômicos exuberantes que movem a vida americana. Mas igualmente na Rússia pós-comunista, muitos dos barões-salteadores, dos empresários multimilionários, parecem ter surgido como cogumelos do interior de uma minoria durante muito tempo desprezada e perseguida.
O reverso dialético da medalha é igualmente impressionante. Foi do interior do judaísmo, de Amos a Marcuse, que provieram as denúncias mais radicais e exaltadas da busca e da idolatria da riqueza. O mais intenso ódio frente ao Bezerro de Ouro. Todas as variedades de socialismo e de comunismo foram penetradas, tanto em termos de doutrina como de história, pelos valores e participação dos judeus. A retórica profética e acusatória de Karl Marx, a inspiração e a iconografia bíblicas das suas páginas são entranhadamente judaicas. Os judeus pululavam nas organizações mencheviques e bolcheviques. Considerando a figura tradicional de Mamona, os judeus radicais, socialistas, marxistas, de temperamento pragmático ou utópico, levantam-se contra os detentores da riqueza. O movimento de esquerda que implantou o kibbutz visava abolir por completo o regime governado pelo dinheiro e o seu sistema de remuneração e incentivos pecuniários. Em termos fulgurantes, Amos advoga a marcha dos habitantes do deserto ascéticos e sem dinheiro sobre as cidades corruptas e afogadas em riqueza. (Teria Mao lido estas páginas?) O Messias não trará uma moeda consigo.
No entanto, a partir do interior do próprio capitalismo, os judeus deram provas de criatividade, explorando, por assim dizer, o seu sucesso financeiro. Contribuíram muito mais do que qualquer outro grupo étnico para obras de assistência, para fundações de ensino e educação, para instituições culturais, para centros de investigação e de prestação de serviços médicos. Nos Estados Unidos, os melhores estabelecimentos de ensino superior, hospitais, museus e orquestras sinfônicas são significativamente financiados pela liberalidade dos judeus. À falta das generosas contribuições dos judeus, muitas vezes de origem imigrante, a situação financeira das artes e da investigação no Reino Unido seria ainda mais inquietante do que já é. Também a este nível, os ideais e critérios mobilizadores são de raiz bíblica. As escrituras hebraicas abundam em exortações à caridade, ao socorro dos desfavorecidos e dos estrangeiros. O excedente deve ser redistribuído, ainda que pelos ceifeiros moabitas. “Nesse ano de júbilo, a cada um de vós será restituída a sua propriedade” (Levítico 25, 13).
Forçados por uma pressão hostil, mas também por uma capacidade profundamente enraizada, ao exercício dos seus dons financeiros e comerciais exuberantes, os judeus alimentaram sempre o sentimento premente da existência de critérios e laços sociais anteriores ao dinheiro e que este não podia contaminar. Desfaziam-se, pois, do dinheiro como se este sujasse os dedos a que se prendia. Que haverá de mais judaico do que a invocação por Marx, nos Manuscritos de 1844, de uma sociedade na qual o amor fosse trocado pelo amor, a confiança pela confiança, em vez de o dinheiro por dinheiro? Há uma velha máxima judaica que diz que morrer rico é ao mesmo tempo uma derrota e uma loucura.
Poderiam também existir outros traços distintivos resultantes da ação simultânea do meio e de uma forma de hereditariedade ainda não descodificada. O humor judaico é um capítulo volumoso. Tem um sal próprio, uma espécie de desespero revigorante. A sua auto-ironia documenta uma resistência sortílega frente ao sofrimento e frente à exclusão. Não é por acaso que os dois únicos escritos filosóficos de primeira grandeza sobre os ditos de espírito se devem a Freud e a Bergson. Todos os povos acarinham os seus filhos. No judaísmo, a atenção de que são objeto mostra-se muitas vezes incomparável. Deste ponto de vista, Jesus de Nazaré é judeu num grau supremo. No clima ansioso dos dias que correm, os criminologistas referem que os casos de pedofilia e abuso de crianças são singularmente raros entre os judeus. As regras alimentares, originalmente higiênicas e terapêuticas, legaram aos judeus, onde quer que hoje os encontremos, certas aversões características. Estas conferiram aos judeus o seu lugar à parte, no que se refere às distinções antropologicamente fundamentais estabelecidas entre o puro e o impuro. A circuncisão é hoje largamente praticada. Terá este uso, a par de outros tabus, conferido um teor peculiar à sexualidade dos judeus? As questões não param de multiplicar-se.
Entre elas, a mais premente e intratável é a da constância do antissemitismo.
Será possível desenredar as suas causas subjacentes? Deverá durar para sempre?
As tentativas visando explicar este cancro são muitas. Os historiadores citam traços de ódio ao judeu na Antiguidade Mediterrânica. Detectam na Roma Imperial certas atitudes destinadas a persistir. A singularidade dos judeus alimentava suspeitas, e coisas ainda mais graves. A recusa por parte dos judeus de observarem as formalidades razoavelmente benignas estipuladas para as cerimônias cívicas e imperiais exasperava os governantes e os vizinhos. Parecia haver uma presunção teocrática irritante na base da sua recusa da assimilação. Numa atmosfera de ecumenismo sincrético, o Deus de Israel desprezava a companhia das outras divindades, e os conquistadores romanos de Jerusalém recuaram perante o vazio sem rosto do Santo dos Santos no templo saqueado. A abstração do que se supunha serem as crenças judaicas (de fato, o monoteísmo irrompera noutros lugares) e a ausência de imagens públicas engendravam inquietações malevolentes. Eis uma minoria intratável, um elemento de ruptura entre as nações, cm contacto com esferas ocultas e fontes secretas de poder.
No conjunto, todavia, a hostilidade frente à Judeia, ainda quando tomava uma forma violenta, era de ordem política e territorial, mais do que ideológica. É esse reflexo que encontramos documentado em Tácito.
Tudo mudou com o advento e o triunfo do cristianismo pauliniano, a mais ativa e carregada de consequências das formas de ódio de si da história do judaísmo. Seguiu-se a canonização das passagens incriminadoras dos judeus nos Evangelhos Sinópticos. O cristianismo não podia perdoar, nunca esqueceu a recusa por parte dos judeus de entrarem por sua livre vontade na ecclesia. Sob certos aspectos, essa recusa, que segundo a teologia pauliniana mantém na condição de refém a humanidade inteira, continua a ser de fato um enigma quando pensamos nas esperanças messiânicas e em certas predições apocalípticas do Antigo Testamento (talvez, segundo uma observação sarcástica de Scholem, os judeus tenham esperado uns quinze dias a partir da suposta ressurreição de Jesus, antes de concluírem que absolutamente nada mudara). A fúria dos Padres da Igreja e do clero nascente perante os que não queriam reconhecer em Cristo o prometido, o Messias ressuscitado, desencadeou milênios de ódio e de perseguições. O antissemitismo persistiu no seu avanço venenoso até uma “solução final”. As continuidades talvez sejam tortuosas e nalguns casos subterrâneas, mas são também inegáveis.
Não há documentos que possam prestar justiça a este prolongado horror. São famosos certos episódios, certos períodos de particular perseguição. Aí se incluem os massacres no tempo das Cruzadas, os pogroms na Europa Central e Oriental que da Idade Média se estendem até aos tempos modernos, a expulsão de Espanha e os seus atrozes efeitos inquisitoriais subsequentes, os inumeráveis casos de chacina desencadeados pelos pretensos “crimes rituais” (cuja bestialidade é ainda honrosamente comemorada nos meios rurais austríacos do século xxi). Mas não são estas explosões de terror a substância essencial da história: é a condição quotidiana do judeu num mundo cristão. Para além do calculável, como a “matéria negra” da cosmologia, há o ostracismo social, as extorsões, a discriminação judicial, a humilhação a que as judias e os judeus estavam expostos até mesmo no interior de comunidades relativamente liberalizadas e formalmente tolerantes. Não é possível listar as ocasiões em que as crianças se viram perseguidas nas ruas (desporto que conheço em primeira mão), cobertas de escarros ou maltratadas quando iam a caminho da escola; as situações, públicas e profissionais, em que os seus pais eram tratados com condescendência, injuriados ou postos na rua. Os judeus carregam consigo, desde a infância, o suor do medo. Talvez só os ciganos tenham suportado uma crônica de rejeição comparável. A loucura da Shoah, muito para além do inteligível ou narrável, teve a sua lógica – como é muitas vezes o caso da loucura. Só a aniquilação total podia pôr termo ao “problema judeu”. O assassínio tinha de ser ontológico. O que significa que tinha de eliminar o fato de existirem judeus. Não se podia permitir que o feto judeu viesse ao mundo. Devia ser abatido juntamente com a sua mãe grávida. No matadouro nazi, o pecado original do judeu, a lepra com que ameaçava o gentio de contágio, era a simples existência. As discussões sobre a possível unicidade Shoah são superficiais e degradantes. Estaline levou à morte muito mais seres humanos do que Hitler. Milhões de entre os chamados cúlaques e as suas famílias foram deliberadamente mortos de fome pelo crime de serem cúlaques. Os armênios, os indonésios e as populações da Somália foram massacrados em massa. De que relatos fiáveis dispomos no que se refere à eliminação dos aborígenes australianos, ao genocídio no Congo Belga (os historiadores situam o número das vítimas algures entre os cinco e os dez milhões). O Homo sapiens é uma criatura propensa ao homicídio, equipada para o sadismo. Estatisticamente, o Holocausto, quase sem margem para dúvidas, não terá sido o pior capítulo. A nossa Terra está semeada de campos de morte. E, contudo, há uma diferença. Que bem poderá ser decisiva. Nenhuma ideologia além do hitlerismo definiu e proclamou a existência e a sobrevivência como criminosas. Nenhuma outra ideologia e nenhum outro programa político proclamou abertamente que os seus fins não poderiam ser alcançados enquanto um judeu, apesar de não passar de um verme, pusesse em perigo, nos termos desta ou daquela patologia, a existência do não-judeu. Porque a persistência desse destroço longamente abominado poderia infectar o sangue e a alma dos seus companheiros de humanidade. Assim, dos massacres da Renânia e das piras da Inquisição às câmaras de gás, foi percorrida uma via sinuosa. Mas que podemos cartografar. Os amenos sentimentos de penitência de algumas declarações recentes do Vaticano são em grande medida cosméticos. A imagem do judeu como pária tem raízes profundas: “Erravam como cegos pelas ruas, manchados de sangue, ninguém podia tocar as suas vestes [...] espiavam os nossos passos, e proibiam-nos as nossas ruas” (Lamentações 4, 14-18).
Haverá uma explicação convincente? Para o fato de os japoneses, que quase nunca terão visto um judeu, serem tenazes editores e difusores desse livro inteiramente fraudulento, mas assassino, que é Protocolos dos Sábios de Sião? Para o incansável ódio aos judeus que, se mantém na Polônia, na Áustria, hoje mesmo, quando não subsistem praticamente judeus nesses países? Para o ressurgimento de um antissemitismo acerbo na Rússia pós-comunista e, de fato, em diferentes núcleos dispersos pela Europa Ocidental? Passar-se-á uma noite sem que um cemitério judeu seja vandalizado, até mesmo na tolerante Grã-Bretanha? “O tumulto dos teus inimigos cresce a cada momento” (Salmos 74, 23).
Por quê?
As teorias históricas, sociológicas e econômicas abundam. Devida tanto a fatores internos como à imposição do exterior, a singularidade do judeu, o seu isolamento, a sua recusa, na longa duração, de se fundir na humanidade comum, irritou e enfureceu o gentio. Foi uma espinha atravessada na sua garganta. O exclusor sentia-se excluído – combinação de papéis explosiva. A abstenção de proselitismo característica dos judeus, os obstáculos que levanta aos que possam querer participar no seu pacto – impulso excêntrico, mas não desconhecido –, agravaram o sentimento de ostracismo recíproco aqui em causa. Só a eliminação, ainda que por meio de um epitáfio pavoroso, poderia resolver esta intuição persistente de uma espécie de arrogância transcendental no judeu. No plano econômico, os judeus emprestavam dinheiro, embora desempenhassem com probidade e forçados esse papel. Matemo-lo, incendiemos a sua casa e os seus livros de contas, e as nossas dívidas serão anuladas. Este factor teve, sem dúvida, a sua importância nos pogroms, no entusiasmo posto na expulsão dos judeus da região. Com a fortuna próspera que os judeus conheceram, como já lembrei, no capitalismo avançado, a inveja do que pareciam capacidades ocultas de manipulação e previsão tendeu a intensificar-se. O antissemitismo conseguiu a proeza de caracterizar os judeus ao mesmo tempo como bolcheviques e plutocratas. Esta dupla figura ocupa um vasto lugar nos mitos nazis.
O ódio de si, esse emaranhado compósito, contribuiu com o seu vírus particular para agravar a situação do judeu. Encontramo-lo entre os mais dotados – em Marx, em Weininger, em certas passagens de Wittgenstein e, num grau feroz, em Simone Weil. Se judeus tão destacados podiam ironizar sobre a sua herança e repudiá-la, porque não faria o mesmo o gentio? A tudo isto devem acrescentar-se hoje os dilemas introduzidos pelo sionismo, pela instauração de um Estado militante em Israel. O judeu da Diáspora atual é inevitavelmente assombrado pelo conflito potenciai de duas lealdades. É membro da comunidade gentia em que vive, mas, voluntária e conscientemente ou não, está também ligado a Israel. Que pátria interior será, em última instância, a sua? Para sobreviver, Israel teve de se tornar uma sociedade nacionalista, e por vezes agressiva e repressiva. Fez-se chauvinista movida pela necessidade de enfrentar obstáculos tremendos. Voltarei a este aspecto . Mas o que se torna hoje patente é a utilização do antissionismo – opção defensável em si própria – para absorver e mascarar todos os matizes de antissemitismo. Torna-se cada vez mais difícil separar uma posição da outra. Em que medida a condenação de Israel pela (velha e nova) esquerda acabará por traduzir o que é fundamentalmente um ódio do judeu e um ódio de si (vejam-se as denúncias destemperadas que Noam Chomsky proclama do “fascismo israelita”)? Que ironia mórbida faz com que Israel receba os apoios da direita fanática, dos protonazis franceses ou das congregações fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos? Numa perspectiva mais generalizada, que fundamento atribuir à convicção, popular ou cultivada, de que o nosso mundo geopolítico não terá tranquilidade, não chegará a um entendimento com o islão, enquanto o destino de Israel desestabilizar não só o Médio Oriente, mas elementos importantes da Diáspora, como na ex-União Soviética? Que “besta feroz”, segundo a intuição de Yeats, “avança sobre Belém”?
Todos estes fatores e as suas conjunções são importantes. No seu todo, teceram uma teia sufocante. O nó torna--se duplo, e depois triplo, à medida que as reações dos judeus à sua interminável condição de párias reforçam precisamente os principais traços que desencadeiam o antissemitismo. Trata-se de uma espiral de inferno. Mas, ainda que combinados e analisados racionalmente, estes aspectos, materiais e psíquicos, do quadro das circunstâncias permitem um diagnóstico adequado? Poderão, repito a pergunta, explicar o antissemitismo em países onde não houve judeus ou dos quais os judeus foram completamente varridos?
Penso que não. Daí que recorra agora a conceitos vulneravelmente metafóricos e de raiz teológica.
Um antissemitismo teológico, cristológico, foi decisivo no início do cristianismo. A “cegueira” recairá sobre Israel devido à sua rejeição do Cristo crucificado. Não poderá haver Segunda Vinda, salvação última, enquanto os judeus se não tiverem convertido, lapso de tempo que Andrew Marvell, numa equação célebre, fazia corresponder à eternidade. Embora atenuada pelo agnosticismo contemporâneo, a polêmica mortal prossegue. Aparentemente impotente, disperso, desprezado, incapacitado, talvez duradouramente pela Shoah, o judaísmo mantém a sua grande heresia e assim mantém cativo o cristianismo, seu herdeiro. A Epístola aos Romanos 11 não deixa margem para dúvidas: só quando um Deus cristão “enxertar de novo os judeus”, a humanidade ferida acederá à paz universal. E, contudo, que sinais há desta integração abençoada? Entre todos os apóstolos, pelo nome e pelo aspecto físico, pela sua associação ao dinheiro, é Judas o arquijudeu. Dois mil anos de pregação e propaganda cristãs, de iconografia cristã, tornaram esse ponto definitivo. É ele o traidor imperdoável, com os seus cabelos ruivos, o seu nariz adunco e as suas moedas de prata.
Tentei levar esta ordem de ideias um pouco mais longe.
Em e por si própria, a acusação de deicídio que, ao longo dos séculos, o cristianismo infligiu ao judaísmo, é uma acusação demente. Como podem os homens matar Deus (embora talvez haja, na Eucaristia, uma prática repugnante para a sensibilidade judaica, vestígios de ritos do canibalismo)? Mas, apesar de insensata, a acusação segundo a qual os judeus “mataram Deus” na pessoa do seu filho nazareno, atravessou as eras. Proclamada pelo uivo das turbas cheias de ódio, glosada por teólogos entre os quais se incluiu Lutero, esta obscenidade ajudou a precipitar milhares de judeus, homens, mulheres e crianças, nas mortes mais atrozes. Num livro anterior, sugeri que esta denúncia dos judeus dissimulava de fato a verdadeira acusação. Graças a uma inversão que a mitologia e a psicanálise nos tornaram familiar, a acusação de deicídio representa exatamente o seu contrário. O judeu é odiado não porque matou Deus, mas porque O inventou e criou.
O monoteísmo, nos termos em que se desenvolveu a partir de Abraão e da revelação do Monte do Sinai, impôs ao homem um fardo moral e psicológico insuportável. O judaísmo primitivo insurgiu-se com frequência contra esse peso intolerável. O politeísmo, tanto nas suas formas pagãs como na sua versão de compromisso trinitária, gratifica necessidades e exigências imaginárias fundamentais da humanidade. Daí o encanto imperecível da mitologia clássica. A ideia de um Deus inimaginável, inatingível, inominável, vazio como o ar do deserto, declarando como injúria qualquer representação sensorial ou sequer alegórica, como que repugna, ao mesmo tempo que a repele, à sensibilidade humana comum. E, no sentido literal, “indizível”. E, todavia, dessa realidade infinita e sem rosto emanam mandamentos éticos, imperativos rígidos de conduta, exigências de justiça nas esferas privada e social que vão muito para além do que alcança a vasta maioria da humanidade. Omnipresente, omnipotente, implacável, o Deus do Sinai e do sopro do vento é uma crítica sem resposta do homem natural. O golpe de gênio sedutor do cristianismo pauliniano foi convidar os seres humanos a entrarem numa casa de Deus disposta ao perdão, cheia de amor, ricamente colorida, através da mediação sacrificial de Cristo. Reconhecer no homem “a criatura nua e bifurcada” que ele é, santificando ao mesmo tempo a sua enfermidade. O culto de Maria, o populoso panteão dos santos intercessores, as mediações da arte e da música, tudo coisas vedadas ao judaísmo iconoclasta, tornaram as relações com uma divindade trina como que familiares. Nada disto tem seja o que for em comum com as abstrações humildes, controversas, interminavelmente exigentes do monoteísmo judaico. Duas vezes mais, o judaísmo ou os seus derivados imediatos confrontaram os homens com a chantagem do absoluto, com ideais morais e sociais estranhos à natureza e às capacidades humanas. O Sermão da Montanha é em larga medida a transposição de uma citação do livro dos Profetas. Quando Jesus intima os seus seguidores a não pensarem nas suas vidas, a perdoarem os seus inimigos, a não julgarem para não serem julgados, a amarem os seus próximos como a si mesmos, está a reformular os ensinamentos de Isaías, as admoestações de Jeremias. O altruísmo e o desprendimento do mundo que implicam as exigências que Jesus impõe aos judeus são uma condenação sublime da existência terrena, do egocentrismo que move o nosso comportamento natural. A frase que remata o Sermão reza: “Sede pois perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu”. Nada menos. Esta prescrição não anda longe, para o dizermos moderadamente, de ser monstruosa. Um punhado de santos, de ascetas encerrados na sua solidão fanática, ter-se-ão esforçado por cumprir tal mandamento.
A mulher e o homem normais fingem aceitá-lo: não vivem, não podem viver os seus trabalhos e os seus dias a esta luz ofuscante. Mas essa incapacidade alimenta um ressentimento psicológico feroz.
O terceiro caso de exigência ética judaica é o do socialismo utópico, nomeadamente sob a versão messiânica do marxismo. Uma vez mais, é pedido,  ou, melhor, ordenado à humanidade que seja melhor do que é, que liquide a sua cupidez e os seus prazeres mesquinhos em nome de uma partilha sem distinções com outrem, fundindo-se o egoísmo de cada um dos seus membros no destino de uma coletividade disciplinada. O comunismo honrou os homens com uma esperança imensa. Expressando-se nalguns gestos revolucionários sacrificiais, nalgumas comunidades radicais, impôs uma diminuição espartana do eu, um empenhamento visionário que negava as nossas fraquezas. Mas era ao mesmo tempo sentido como um ideal, lançando as bases da justiça numa terra explorada e em vias de autodestruição.
Nada alimenta um rancor mais profundo do que as exigências que não somos capazes de cumprir, mas nas quais reconhecemos, ainda que intermitente ou subconscientemente, uma verdade irrefutável. É este rancor, este ressentimento, segundo creio, que subjaz ao ódio pelo judeu e o perpetua. Hitler dizia que a consciência era uma invenção dos judeus. Eu diria antes: “a má consciência”.
Continuo a acreditar na pertinência substancial desta explicação e etiologia do antissemitismo em termos morais e psicológicos. Mas hoje dou por mim a interrogar-me sobre a provocação que lança ao mundo dos gentios o simples fato (esse “escândalo”) da sobrevivência dos judeus. No que respeita aos chineses, o seu número esmagador proporciona uma justificação que leva a admitir a sua permanência. A insignificância demográfica das coletividades dos judeus e o modo como estas escaparam repetidamente à aniquilação são uma “estranheza” e uma “enormidade” aos seus próprios olhos. Sobre o não-judeu, produzem o efeito de uma irritação subcutânea. Há uma impertinência selvagem na sobrevivência judaica. É difícil definir a configuração social e psíquica das suas condições. E, contudo, descubro-me a perguntar de novo, movido por um caráter de urgência crescente, o que poderá tornar plausível, o que poderá justificar o fato decididamente fantástico que suscitou a interrogação inicial deste capítulo: Porque continuam a existir judeus?
O Estado de Israel fornece uma resposta triunfante, e por vezes triunfalista. Uma fênix renasce das suas cinzas, mas com garras de aço. O seu nascimento, a sua sobrevivência perante um cerco de inimigos mortais são um milagre. Do mesmo modo que o desbravamento da terra, pedra a pedra, a fundação de uma comunidade moderna, democrática e com padrões de instrução elevados, a sua capacidade de integrar hostes sucessivas de imigrantes. Cada judeu tem hoje na terra um lugar de refúgio assegurado. Tudo isto são prodígios sem paralelo efetivo em toda a história. Israel assinala um milagre ao mesmo tempo antigo e sem precedentes no destino dos judeus, e nas suas possibilidades de sobrevivência. Mas, para existir, Israel teve de regenerar capacidades e valores adormecidos desde o livro de Josué. Teve de cultivar e de glorificar os talentos militares e a sua feição implacável. Os custos internos foram consideráveis. A sociedade israelita é por necessidade militante e muitas vezes chauvinista. Nem sempre dispõe – como poderia fazê-lo? – do tempo, do espaço ou dos meios econômicos requeridos pelas atividades culturais, científicas e estéticas que enfeitam a Diáspora. Não é em Israel que os prêmios Nobel ou a criação filosófica medram com pujança. Mas ainda é cedo, e também não é este o problema de fundo.
Essencialmente sem poder durante cerca de dois mil anos, os judeus no exílio, nos ghettos, rodeados pela tolerância equívoca das sociedades gentias, não estavam em posição de perseguir outros seres humanos. Não podiam, fosse por que justa causa fosse, torturar, humilhar ou deportar outros homens e mulheres. Tal foi a nobreza singular dos judeus, uma nobreza que me parece muito maior do que qualquer outra. Para mim é uma verdade axiomática que seja quem for que torture outro ser humano, ainda que sob a pressão da necessidade militar e política, seja quem for que sistematicamente humilhe ou deixe sem o seu lar outro homem, mulher ou criança, degrada o núcleo essencial da sua própria humanidade. O imperativo da sobrevivência, as ambiguidades éticas da instalação no que era a Palestina (por meio de que sofística um israelita não-crente e não-praticante se autoriza a invocar a promessa de Deus a Abraão?) forçaram Israel a torturar, a humilhar, a expropriar – ainda que muitas vezes em menor medida do que os seus inimigos árabes e islâmicos. O Estado vive a coberto das suas muralhas. Armado até aos dentes. Conhece o racismo. Em resumo: transformou os judeus em homens comuns. A verdade é que a demografia ameaça esta normalidade contaminada. Em breve haverá mais árabes do que judeus no interior de Israel. Só uma catástrofe no mundo exterior poderia desencadear uma nova vaga de imigrantes. Parece mais do que verossímil que o colapso de Israel poderia produzir uma crise psicológica e espiritual irreparável na Diáspora. Mas não é certo. E muito possível que o judaísmo seja maior do que Israel, que nenhum revés histórico possa extinguir o mistério da sua persistência. O cristianismo talvez fosse mais forte nas catacumbas. Pura e simplesmente, são coisas que não sabemos. Entretanto, todavia, Israel está a reduzir o judeu à condição comum do homem nacionalista. Enfraqueceu essa singularidade moral e essa aristocracia da não-violência frente aos outros que foram a sua glória trágica.
Sei o preço inumano que esta impotência omnipotente implica. Sei como é fácil, como é gratuito criticar Israel quando se não quer compartilhar os seus fardos e perigos constantes. Mas foi sentir o enfraquecimento em causa que me impediu de ser sionista, de fazer a minha vida e a dos meus filhos em Israel. Os sionistas de salão são uma variedade tão desprezível como os companheiros de jornada que entoavam loas à União Soviética, mas tinham o cuidado de nunca pôr os pés dentro das suas fronteiras.
A própria Diáspora vive ameaçada. Referi-me às perdas constantes causadas pela assimilação e pelos casamentos mistos. Mas creio intensamente que para o judeu fora de Israel, para uma certa proporção de judeus fora de Israel, a sobrevivência se apresenta como uma missão. Em vários pontos fundamentais da lei mosaica e da exegese talmúdica, o judeu é ensinado a dar as boas-vindas ao estrangeiro. Nunca deverá esquecer que ele próprio foi um estrangeiro, um estranho na terra do Egito. Que também ele foi um sem eira nem beira e um refugiado numa terra que o recebia sem hospitalidade. A minha convicção é que o judeu da Diáspora deve sobreviver a fim de ser um hóspede entre os homens. Todos nós somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje estamos a tomar sombriamente consciência de que somos hóspedes de um planeta vandalizado. A menos que aprendamos a ser hóspedes uns dos outros, a humanidade sucumbirá na destruição mútua e no ódio sem tréguas. Um hóspede aceita as leis e usos do seu anfitrião, mas pode esforçar-se por reformá-las. Aprende as línguas dos que o acolhem, mas pode tentar falá-las melhor. Acima de tudo, se partir, livremente ou compelido a fazê-lo, procura deixar a morada do seu anfitrião mais limpa e mais bela do que a encontrou. Esforçar-se-á (é o conatus de Espinosa) a acrescentar alguma coisa de valor, de ordem intelectual, ideológica ou material, ao que encontrou quando bateu à porta.
A arte de ser hóspede é muitas vezes quase impossível de praticar. O preconceito, a inveja, os atavismos territoriais do anfitrião instauram uma ameaça constante. Por mais calorosas que tenham sido as boas-vindas, o judeu deve manter discretamente as malas feitas. Se for forçado a retomar a sua errância, não considerará essa experiência como uma punição lamentável. Ela é também uma oportunidade. Não há língua que não valha a pena aprender. Nem nação ou sociedade que não valha a pena conhecer. Não há cidade que não valha a pena deixar, se sucumbir à injustiça. Somos cúmplices do que nos deixa indiferentes. A senha do judaísmo é Exodus, impelindo a novos começos, apontando a estrela da manhã. Hitler falava sarcasticamente de Luftmenschen, dos judeus como “criaturas do ar”. Mas o ar pode ser um reino de liberdade e de luz. “Tornai-vos uma força de fertilidade entre os homens”, insistia um dos fundadores de Israel, “porque confinados num só país podeis converter-vos em estrume”. O nacionalismo, do qual Israel se tornou necessariamente figura emblemática, o apelo tribal, parece-me não só estranho ao gênio interior do judaísmo e ao enigma da sua sobrevivência: viola também o imperativo o Baal Shem Tov, mestre do hassidismo: “A verdade está sempre no exílio”. Esta máxima é a minha oração da manhã.
Compreendo inteiramente que uma condição de peregrino não convém a todos. Que os riscos que acarreta são extremos. A Shoah talvez tenha tornado ridícula a minha convicção. Mas repito: sobrevivamos, se sobrevivermos, como hóspedes entre os homens, como hóspedes da própria existência. A sua mesa dos dias de festa, a família do judeu deixa sempre um lugar vazio para o estrangeiro que poderá bater à porta. Talvez seja um mendigo, talvez um mensageiro velado de Deus. A entrada nunca lhe deverá ser recusada. Ser anfitrião é também ser hóspede. Tal é o sentido que define a Diáspora, a sua justificação.
Tinha pensado desenvolver estas teses numa obra de corpo inteiro. Faltou-me a visão clara necessária.
E o hebraico.
(FIM)

H.C./J.A.R.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A Condição de Ser Judeu - Parte II

Aqui entro num terreno extremamente delicado. Qualquer argumento que se possa considerar será por força não mais do que intuitivo e aproximativo. Será inevitavelmente pessoal e composto de um mosaico de fragmentos narrativos e de impressões. Haverá uma “judeidade” que não seja uma contingência relativa às circunstâncias históricas e ao meio social, resultando de reflexos de comportamento ou do registro de tradições em grande parte mitológicas? Haverá qualquer coisa de mais profundo? Esta pergunta, que é também a do antissemita, não se limita a suscitar um certo mal-estar no debate. É possível que, em última análise, seja irrespondível.
Tanto quanto é possível demonstrar, só uma outra grande comunidade, a dos chineses, continua, a despeito das transformações e contribuições da história, a falar a língua das suas origens conhecidas. Uma língua-nascente. O hebraico constitui o eixo e o tecido vital do judaísmo ao longo de milênios. Sentimo-nos tentados a equacionar a sobrevivência do judeu com a do hebraico, sobrevivência reiterada pelo renascimento da língua em Israel. O gênio da língua alimenta e encarna as relações do judeu consigo próprio, com os judeus seus companheiros, mas fundamentalmente com Deus. A definição grega clássica dos seres humanos como “animais de linguagem” (zoon phonanta) é a antítese do judaísmo. Separa Atenas de Jerusalém. É a palavra que, na concepção judaica, torna as mulheres e os homens ontologicamente únicos, que os distingue do reino animal. É o dom insondável da linguagem feito a Adão que torna possíveis, que torna forçosas a consciência e a resposta diante de Deus. É o diálogo com uma divindade presente ou ausente, e sem que o “diálogo” garanta a resposta, que determina a história, a identidade herdada do judeu. “Ouve-me, Deus”. “Escuta-me, Israel”. O caso decisivo é o vocativo. Mas muito mais do que num sentido gramatical. O hebraico é um chamamento de Deus, uma injunção de Deus, uma interpelação dirigida a Deus. O mandamento e a prece são inseparáveis de um imperativo da comunicação. Por vezes, o hebraico quase cede sob a pressão de um chamamento incessante: “Esgoto-me a gritar: a minha garganta está seca” (Salmos 69, 3). Mas, inextinguivelmente, a voz irrompe, incendeia-se de novo: “Ouve a minha voz, ó Deus” (Salmos 64, 1). De gratidão, de júbilo, de temor. Mas também de lamentação, de desconcerto, de recriminação. Que outro povo se encolerizou assim com o seu deus? “É bem feito que te zangues?”, pergunta Deus a Jonas no que interpretamos como uma inflexão de ironia branda. O “apelo”, no sentido em que é usado em Job num duelo com Deus, é um caso sem paralelo na literatura mundial. O mesmo se diga da titânica falta de a-propósito da réplica de Deus. Que é tudo menos uma resposta: “Será pela tua sabedoria que o falcão levanta voo e bate as asas para Sul?” (Job 39, 26). Como se Deus revelasse na Sua própria retórica incomparável, o Seu virtuosismo da metáfora. (Quer ser humano mortal terá composto estes capítulos, tendo ido a seguir almoçar?) Se o hebraico fosse alvo de extinção, como aconteceu com milhares de outras línguas não menos dotadas de recursos nem menos eloquentes, se o silêncio se tivesse interposto entre Deus e os judeus, o próprio judaísmo teria acabado. A Shoah feriu o judaísmo até às fronteiras de cinzas do silêncio. Mas a língua manteve-se. Numa inversão de abismo, era agora o judeu quem rezava não a Deus, mas por ele. É o que nos diz Paul Celan no seu Salmo:
Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir entgegen.
(Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direção a ti*).
* Cf. Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde – Antologia Poética, seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2.a edição, 1996 (N. do T.).
Também num registro mais ligeiro, o judaísmo continua a ser uma conversa com Deus. “Porque se deu o Todo-Poderoso ao trabalho de criar os homens?”, pergunta o hassid: “Para que eles possam contar-Lhe histórias”.
Até mesmo os judeus que não conhecem o hebraico – condição que está, segundo suspeito, na origem de uma dúvida recorrente acerca de si próprios – dão provas de uma imersão particular na linguagem e nas línguas. É algo mais do que o exílio e do que a necessidade de aquisição da língua dos estrangeiros, aquilo que está em causa nos dotes linguísticos do judeu. Na sua capacidade de transformarem a tribulação de Babel em colheita. Há até mesmo entre os judeus agnósticos e secularizados, entre os porta-vozes judeus da modernidade, uma intuição de que a identidade é discurso, um discurso cuja sanção última é a da voz articulada que sai da Sarça Ardente e do sopro do vento. O ator judeu, o empresário judeu da comunicação de massa e dos media, o linguista judeu – de Roman Jakobson e Walter Benjamin a Noam Chomsky e à negação à maneira de Derrida – está ligado, como que pelos raios de uma grande roda, à centralidade da palavra. Testemunha o papel axial do ato de linguagem, e um pacto entre o ser e o sentido. Apesar do seu gênio escriturário, apesar da sua soberania generativa sobre outros gêneros, poéticos, narrativos, visionários, legislativos – soberania nunca superada e sem a qual é difícil concebermos a existência das literaturas ocidentais –, a Bíblia hebraica é o registro, sem dúvida redutor, de uma forma de vida oral. Codifica, com maiores ou menores economia e generalidade, um registro, uma recolha de discurso direto. A agonia e a prece, a celebração e a lamentação, o mandamento e a revolta são falados. Ouvimos, precisamente porque o hebraico encarna o prodígio e o fardo do ouvido, essas letras de fogo ditadas a Moisés no Monte do Sinai, essas palavras de retaliação que ardem nas paredes do palácio de Nabucodonosor. E o sionismo, por seu turno, está gravado na sintaxe do verbo hebraico. Gramatical e metafisicamente, o hebraico não dissocia passado, presente e futuro. A flexão do futuro pertence ao presente. É esta a verdadeira literalidade e o verdadeiro paradoxo do messiânico. Dispersa, quase arrancada pelas raízes, a língua hebraica nunca deixou de proclamar um regresso ferozmente inverossímil ao seu chão natal. Tornou manifestos os meios formais e existenciais de um renascer. Hoje, os romancistas e poetas de Israel são os contemporâneos e os herdeiros transformadores do salmista e do profeta. “Para o próximo ano em Jerusalém” é agora. De que outras línguas, de que outras nações podemos dizê-lo?
O fato surpreendente é o seguinte: chamados ao ser pela voz, sustentados por um ininterrupto comércio de palavras com o seu Deus, os judeus tornaram-se “o povo do Livro”. Este estereótipo é extraordinariamente significativo. Define uma autenticidade duradoura. A dependência da textualidade caracterizou e continua a caracterizar a prática e a sensibilidade do judeu. A tabuinha, o rolo, o manuscrito e a página impressa tornaram-se a terra natal e a festa móvel do judaísmo. Arrancado ao solo natal da sua oralidade, ao santuário da interpelação direta, o judeu fez da palavra escrita o seu passaporte ao longo de séculos de deslocações e de exílio. Ela serviu-lhe de refúgio e de morada indestrutível. Daí a sentença formulada por alguns rabis e segundo a qual a leitura diária da Torah é mais importante do que o amor de Deus, uma vez que engloba esse amor. Além disso, é nela que se inscreve, termo eloquente, a sobrevivência efetiva dos judeus. Clandestinamente, o ensino da Torah prolongou-se até ao limiar imediato da extinção nos campos de morte. Necessariamente, esta imersão no escrito engendra um comentário interminável e o comentário do comentário, como se as margens e o fundo da página fossem o mundo. Os padres da Igreja, os Escolásticos, imitarão esta linha de montagem da elucidação secundária. Mas nem o cristianismo nem o islão podem competir com a densidade, as torções e os engenhosos trabalhos de filigrana da exegese do Talmude e da hermenêutica no terceiro grau que ele engendra. Como diz o Qohelet, no judaísmo não tem fim o fazer de livros e de livros sobre os livros. Ou como esse político ilustrado que é Richard Crossman me disse no final de um debate: “um judeu é aquele que lê agarrado a um lápis porque tenciona escrever um livro melhor”. Mais ainda do que o “sofrimento”, foram a textualidade e o livro que compuseram “a insígnia da tribo”.
A saturação produzida pelo comentário, por textos que parasitam formulações anteriores, pode, indiscutivelmente, ser um factor que inibe a criação autônoma. Nada é mais judeu do que o projeto de Walter Benjamin de um livro composto exclusivamente de citações. O judeu é um analista, expõe, poderá ser quando muito um crítico, mas não é um criador, decidiu Wittgenstein num impulso irritado de autodepreciação. Houve entre os judeus e os  escritores de origem judaica poetas inspirados. Yehudah Samuel Ben Halevi é só um nome entre a constelação de poetas judeus da Espanha medieval. E podemos pensar, depois, em Heine, em Mandelstam, em Pasternak, ou Paul Celan. Os mestres judeus da arte narrativa estiveram perto de dominar a ficção americana dos finais do século xx. Há judeus dramaturgos como Arthur Miller e Harold Pinter. Israel produz hoje poesia e prosa de primeira ordem. Não deixa de ser interessante notar que entre os clássicos se incluem alguns semijudeus: Montaigne, Proust. Haverá escritor maior do que Franz Kafka?
No entanto, em termos gerais, a questão tem razão de ser. Talvez não seja necessário procurar uma explicação muito longe. A prodigalidade da realização, o fôlego inventivo da Bíblia Hebraica são de tal ordem, que a narrativa ou as formas dramática e poética posteriores parecem relevar da quase impertinência ou, no melhor dos casos, do ato gratuito. Que autor deste mundo está em condições de rivalizar – para já não falarmos de superar – com a construção do Gênesis, com a inspiração épica de Samuel e dos Reis, com a eloquência de Jeremias, com a musicalidade erótica do Cântico de Salomão ou com o pathos altivo dos Salmos? O que é que em qualquer literatura, incluindo o Gilgamesh e Homero, vai mais longe do que a lamentação de David por Jônatas ou a predição alucinatória da destruição de Jerusalém no livro dos Profetas? Que texto sobre a morte, como se tem muitas vezes perguntado, não empalidece, não é superado nos termos do ideal que se propôs ser, quando comparado com o Salmo 23 ou com a litania das estações do ano no Eclesiastes? Mas a questão decisiva talvez seja mais profunda. Lidos como sendo de inspiração divina, como ecoando, embora de modos para nós ocultos, a voz real de Deus, estes textos enunciam verdades que tornam fictícia toda a escrita literária, que a reduzem à condição de belles lettres. O que introduz em todos os restantes contos, poemas, romances uma espécie de falsidade orgânica e de oportunismo contingente. São o seu confronto implacável com esta possibilidade e a sua capacidade de a transformar em parábolas, que se aproximam da polissemia inesgotável dos seus antecedentes escriturários e talmúdicos, que tornam Kafka incomparável. A “Parábola da Lei” no Processo talvez seja a única verdadeira adenda da literatura secular à Torah (e foi lida como tal nalgumas sinagogas liberais). Em contrapartida, a propensão do judaísmo para o texto produziu obras magistrais de prosa histórica, filosófica, sociológica e científica. Que argumentos filosóficos não parecem presunçosos e um tanto desordenados quando comparados com Espinosa ou, na realidade, com Wittgenstein? Freud e Gershom Scholem situam-se a par dos mais destacados artífices da língua alemã. O caso do marxismo e do socialismo marxista é ainda mais impressionante. Não houve doutrina e programa político-sociais mais presos ao livro, mais talmúdicos, ao nível das estratégias de argumentação. O marxismo cita incessantemente. Os seus debates, muitas vezes literalmente homicidas, sobre a interpretação correta de Hegel, dos pais fundadores, de Lenine, mimam rigorosamente o odium filológico, o rancor ad hominem das controvérsias rabínicas. Trotski foi um publicista brilhante; o próprio Estaline se sentiu obrigado a produzir uma monografia erudita (de modo nenhum desinteressante). A psicologia, o pensamento social, a antropologia social atuais – consideremos a estatura literária de Claude Lévi-Strauss – têm uma dívida de todos os momentos para com as feições imediatamente textuais da tradição judaica, para com o seu apetite instintivo de clareza normativa. Como um político austríaco que odiava os judeus chegou a dizer: “A erudição é simplesmente aquilo que um judeu copia de outro”. Quando se queimam livros, é uma fibra vital do judaísmo que se consome. Assim, entra em jogo na desconstrução, cujos acrobatas são tão frequentemente judeus, uma lógica da revolta. A desconstrução é uma tentativa (que a psicanálise dirá edipiana) de derrubar o peso canônico do texto, de emancipar o sentido da auctoritas patriarcal. “Aqui nós não citamos”, disparou um agitador derridasiano durante uma lição minha, em 1968. Ou como um palhaço (bem dotado) afirmou: “A própria linguagem é fascista”. Para o judeu, a textualidade foi ao mesmo tempo sobrevivência e servidão, libertação e constrangimento. A ambiguidade comparece desde o início. Que sentença poderia ser mais obsediante e presciente do que a do Qohelet 11, 4: “Quem observa o vento, não semeia”?
Este modo de habitar a palavra escrita estará associado à considerável, e alguns dirão excepcional, contribuição que os judeus fizeram para a vida do espírito, tanto nos domínios das humanidades como nos das ciências? Explicará a opinião muito difundida – que se exprime quer em termos de sarcasmo e inveja, quer de admiração – segundo a qual os judeus são “mais perspicazes”, “mais cerebrais”, “mais inteligentes” do que os gentios seus vizinhos? Se há alguma matéria verificável que confira substância a estas ideias, continua a ser difícil de avaliar. judeus estúpidos. Há judeus subinstruídos, embora poucos. Há judias e judeus inocentes de qualquer paixão intelectual ou aspiração cultural. Todavia, é verossímil que as energias intelectuais dos judeus sejam maiores do que o asseguraria uma distribuição estocástica ou a probabilidade estatística. A proporção de judeus laureados com o Nobel nas áreas da medicina e das ciências naturais, bem como nas da economia, é muito superior à que seria normal. Os judeus quase dominaram certos ramos das matemáticas e da lógica matemática. A par de um punhado de exceções notáveis, têm o monopólio dos níveis superiores do xadrez. Estão por toda a parte presentes e em lugares destacados na interpretação musical. Darwin é o grande “elemento estranho” no pequeno grupo dos pensadores que moldaram a modernidade e que, como Marx, Freud e Einstein definiram o “clima” da consciência europeia (a expressão é de Auden). Numa ordem subalterna, o papei dos judeus nos media, no mundo da diversão, em todos os sectores das finanças internacionais, foi prodigioso. Na realidade, a metrópole do dinamismo cultural e financeiro, a polis sortílega que é Nova Iorque, com Woody Allen por seu bardo, é também a capital do judaísmo. Estes resultados e estas posições destacadas desafiaram a opressão política, a discriminação social e o massacre direto. Apesar de gerações de ódio aos judeus e de relegação, do Império Russo à União Soviética, os judeus continuaram obstinadamente a produzir obras de primeira grandeza na ciência, na música e na literatura russas. Intervém aqui a operação de uma força primordial.
Qualquer tentativa de diagnóstico desemboca imediata e inevitavelmente na discussão sobre os papéis causais respectivamente desempenhados pelo equipamento genético, o legado cultural e o meio social e histórico. Sendo-lhes vedadas outras ambições mais comuns, políticas, militares ou, durante um longo período, também universitárias (só depois da Segunda Guerra Mundial desapareceram as quotas estritas que doseavam nos Estados Unidos o acesso de judeus ao ensino superior e às escolas médicas), os judeus eram impelidos refugiar-se num mundo interior próprio. A memorização, a disciplina das técnicas de análise, a cultura de uma dialética abstrata e simbólica, tornaram-se instrumentos privilegiados de comunicação da experiência no âmbito do bairro judeu e das suas casas de oração.  Concentrava-se assim uma atividade cerebral implosiva em espaços sociais confinados e pragmáticos. O café da Europa Central é o herdeiro secular da Schul. Com o advento da emancipação, sempre relutante e condicionada, a força contida dos recursos intelectuais assim exercitados irrompeu no exterior. A veneração endereçada ao mestre talmúdico, ao erudito do shtetel, a continuidade ininterrupta do ensino, litúrgico e secular, no seio da família – que outro credo abençoa formalmente a família que conta com um sábio entre os seus filhos? –, passaram a investir os meios da intelligentsia. E a alimentar as instituições acadêmicas, os centros de ensino livre e gratuito, os laboratórios das sociedades abertas. Uma impaciência prolongadamente refreada dava agora os seus frutos. De paramos em Heine com um testemunho incisivo deste movimento.
Tal é a hipótese razoável, “politicamente correta”. Mas será inteiramente satisfatória?
No momento atual, a discussão do problema pende claramente para o lado genético. A análise identificou a recorrência de traços e competências altamente específicas entre gerações temporalmente distantes. A medicina, a biologia social, a etnografia põem a descoberto um número crescente de situações em que os genes parecem sobrepor-se ao meio ambiente. Como já assinalei, a simples ideia de uma herança genética mantida ao longo do tempo e apesar das miscigenações é fortemente especulativa, e até mesmo suspeita. Todavia, estamos diante de uma comunidade que viveu em condições de apartheid bastante caracterizadas, ao mesmo tempo que se esforçava por excluir a exogamia. Pode, por conseguinte, ser arbitrário negar inteiramente a possibilidade de um certo grau de hereditariedade genética, não conceber que possa existir nalgumas linhagens da excelência judaica, mas também em certos traços de mediocridade e abstenção dos judeus, uma componente biogenética. No final da sua vida, Freud foi um lamarckiano convicto, embora o dissimulasse de certo modo. Hoje, o paradigma de Lamarck tornou-se claramente inaceitável. Não pode invocar-se em seu favor qualquer mecanismo genético. Mas continua a ser muito, aquilo que não sabemos. A sugestão da existência de caracteres adquiridos continua a rondar, como um fantasma irônico, no limiar da respeitabilidade científica e do bom senso liberal. Não poderemos temperar a nossa arrogância ai imitindo que sabemos pouco acerca das interações generativas entre o inato e o adquirido e que talvez venhamos a ser confrontados, nesse domínio, com surpresas “iliberais”? Alta noite, durante os anos adversos, saí discretamente do meu hotel de Kiev para a rua. Um homem aproximou-se de mim e perguntou-me num ídiche deficiente: “Você é judeu, não é verdade?” Perguntei-lhe como o sabia ele. “Mas vê-se logo, é evidente. Pela sua maneira de andar”. Como alguém, penso eu, com dois mil anos de perseguições atrás de si.

[Continua aqui: http://blogdocastorp.blogspot.com.br/2012/05/condicao-de-ser-judeu-parte-iii.html]

H.C./ J.A.R.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A Condição de Ser Judeu – Parte I

George Steiner – francês de origem judaica ou judeu de origem francesa? –, um dos maiores críticos literários do século XX, discorre, no ensaio a seguir transcrito em três partes, sobre o que ele interpreta ser a condição do judeu.
Da leitura atenta do texto sobressai a impressão de que se trata da aposição de loas aos judeus de todo mundo – salvo algumas inflexões menos encomiásticas aqui e acolá – que, indiscutivelmente, têm-se sobressaído do mar de mesmice em que paira a “pós-modernidade”. Ocorrem exageros é claro – “Haverá escritor maior do que Franz Kafka?” –, embora muito do que ele retrate demarca o que se pode perceber até num plano empírico bem terra-a-terra: “Mais do que nunca, não há justificação sustentável para seja que definição for dos judeus como raça”.
Boa leitura!
H. C. / J. A. R.

Referência: STEINER, George. Sião. In: Os livros que não escrevi. Tradução de Serras Pereira. 1. ed. Lisboa: Gradiva, 2008. p. 135-178.

SIÃO
QUE MULHER ou HOMEM pensante não procura, nalgum momento da sua vida, chegar a uma imagem clara, a uma ideia verificável da sua própria identidade? A pergunta “Quem sou eu?” é um reflexo primeiro da consciência humana. “Posso definir-me a mim próprio para mim próprio” e, ou imediata ou indiretamente, definir-me a mim próprio para os outros? Estes dois modos de autodefinição coincidem ou há entre eles um fosso intransponível? Que “eu”, que “ego” está conceptual e existencialmente implícito na asserção, filosófica ou trivial, interior ou declarada, de que “eu sou”, ou, mais precisamente, de que “eu sou eu” – descoberta sempre vulnerável aos desafios da esquizofrenia, do autismo ou da demência? O ergo sum cartesiano esquiva uma incerteza intrínseca. É uma expressão de orgulho mais do que uma verdade evidente por si própria.
A minha impressão é que, para os judeus, homens e mulheres, e sendo o simples termo “judeu” de molde a suscitar complicações persistentes, tanto este auto-questionamento como a questão geral que é o seu ponto de partida, assumem uma acutilância particular. Só ao Deus de Moisés é dado afirmar para além de toda a dúvida “Eu sou o que sou” (a tradução vacila). As relações de um judeu ou de uma judia com a sua identidade podem ser tão opacas, tão atribuladas e tão cheias de ambiguidades históricas, sociais e psicológicas, que sejam elas a definir – se a definição puder comportar a indecidibilidade – a própria condição judaica. A nomeação, como garantia da substância real e da presença real, é um dos dons iniciais de Deus a Adão: “E o que Adão chamava a cada criatura viva, tal era o seu nome”. Um poder fantástico de impor uma função de verdade. A queda do homem no lamaçal e na licença do indefinido, no fosso que é por vezes abismo, entre a palavra e o objeto, entre o nome e a essência: eis o primeiro exílio. Numa medida maior ou menor, todos os seres humanos compartilham este ostracismo, e são numerosas as mitologias que o refletem. O pecado original inscreve-se na gramática. Na experiência do judeu, todavia, este exílio assume um papel determinante. Para um judeu, a consciência de si, um ato de equilíbrio difícil de realizar ou de manter, comporta c banimento, ou antes um esforço, muitas vezes desesperado, de levar a cabo uma certa maneira de regresso ao lar. Adorno insistia numa máxima profundamente judaica segundo a qual nenhum homem ou mulher que se sinta em seu lar está no seu lar. A qual – num movimento pendular incessante – Samuel 2, 14 responde: “Deus não respeitou pessoa alguma, contudo estabelece meio de o Seu banido não ser Dele expulso”. O Seu banido, a inflexão é altiva. A distinção rigorosa entre “banimento” e “expulsão” caracteriza o espaço onde transcorre a história dos judeus. Se o Deus de Israel está, segundo uma exultante definição, em toda a parte, não pode haver expulsão ontológica da Sua presença. Mas, no interior desta ubiquidade, pode haver banimento. De si e em si próprio, em primeiro lugar e fundamentalmente. Mais, talvez, do que qualquer outro tipo étnico, social ou até mesmo mitológico, o judeu pode ser um estrangeiro para si próprio. A sua errância célebre é a representação alegórico-empírica de uma busca, de uma incessante peregrinação interior. O judeu é estranho a si próprio, antes de ser estranho aos outros. Estes, pelo seu lado, evitam o sem eira nem beira, que carrega consigo uma aura estranha e perturbante. Conscientemente ou não, o judeu é, no seu modo de ser mais fundo, alguém que não sossega. Em que outro credo, em que outro cânone, poderíamos encontrar esta injunção: “O amor não dorme” (Provérbios 20, 13)? Uma exortação cujo alcance imenso, cuja singularidade não devemos considerar ligeiramente. Freud despojá-la-á do que lhe restava de inocência. Também ele, como antes dele os profetas judeus, foi um “vigilante na noite”. Qualquer ser humano que se olhe como “judeu” – e “olhar-se” pode incluir aqui um sem-número de cambiantes de orgulho ou de vergonha, de prestação de testemunho ou de dissimulação, de autenticidade ou de artifício, de risco ou de oportunismo – terá de pôr uma questão inicial e fundamental: porque foi que a autodesignação e a designação pelo exterior de certas comunidades e indivíduos como “judeus”, por mais controversas que possam ser, perduraram no tempo? Que significações associar à sobrevivência desta identificação ao longo de mais de três milênios? Outras constelações étnicas e outras sociedades, outras coletividades não menos distintivamente marcadas, não menos dotadas, acabaram por perecer. Porque continua presente “Jerusalém” quando a Tebas egípcia, a Atenas de Péricles e a Roma Imperial se tornaram arqueológicas? Como podem existir ainda judeus (aqui o termo grego e teológico apropriado é o de “escândalo”)?
Para o leitor crente da Torah, para os literalistas que incluem os cristãos com fé das Escrituras, a resposta é manifesta. A sua fórmula desmedida encontra-se no Gênesis 22, 18: “Farei a tua descendência tão múltipla como estrelas do céu, como a areia das praias do mar [...]. E na tua descendência todas as nações da Terra serão abençoadas”. É uma promessa de cortar a respiração, cujo efeito excede o alcance das palavras. Para o crente, trata-se de uma garantia e de uma garantia renovada da própria vida. Que homem ouviu ou escreveu semelhantes palavras? Se Deus falou verdade a Abraão – e como poderia Ele não ter falado verdade? –, não há massacres, nem Shoah, nem deportações, nem dispersão nos ventos negros e mortíferos, que possam extinguir os judeus. Eles renascerão das suas cinzas para de novo se multiplicarem e de novo reivindicarem Sião. A sua herança é um pacto como nenhum outro alguma vez celebrado com outro povo. Em breve, existirão no planeta tantos judeus como os que nele viviam antes da Shoah. Sob certos aspectos, trata-se de um fato chocante e estarrecedor; sob outros, trata-se simplesmente do legado inelutável prometido por Deus ao patriarca. Outras crenças, outras nações sucumbem ao tempo e à destruição. Não é o caso do judaísmo. Dessa pequena pedra contundente no sapato da humanidade. “Nesses dias, porei de pé o tabernáculo caído de David, e repararei as suas brechas; e levantarei as suas ruínas, e edificá-lo-ei como nos dias de outrora” (Amos 9, 11). Eis, uma vez mais, a promessa devastadora que Deus faz ao seu pobre servo ferido Israel. Tão absurdamente improvável e “contrafactual” tanto junto às águas de Babilônia como aos campos de extermínio nazis. Uma promessa, contra todas as aparências e toda a razão. Mas cumprida.
Tal é o enigma que se põe ao não-crente, ao racionalista e ao agnóstico, aos que leem a Bíblia hebraica como o acervo dos mitos de um povo, de rituais arcaicos, de propaganda tribal, de minuciosas prescrições alimentares absurdas e de imagens morais e metafóricas inspiradas. Que, na esteira de Espinosa, têm a impressão de se confrontar com uma produção inteiramente humana, atravessada de contradições e de maneira nenhuma inocente de selvajaria (consulte-se o livro de Josué). E, contudo, não há ceticismo argumentativo nem crítica textual que possam negar, refutar ou anular o pacto de sobrevivência estabelecido no livro de Moisés, celebrado nos livros dos Salmos e dos Profetas. Os recursos da refutação racional, ainda que reformados pelos contributos da antropologia e da desconstrução da composição do texto, não podem refutar o que os crentes, que não são necessariamente fundamentalistas, consideram ser a palavra de Deus, ainda que limitada pela linguagem e pelo entendimento finito dos seres humanos. Para pensadores como Leo Strauss, este enigma da irrefutabilidade é ao mesmo tempo ofuscante e insolúvel. A revelação não é vulnerável perante a razão. Até hoje, e apesar ou toda a espécie de múltiplos obstáculos, a história tem corroborado a mensagem bíblica. Depois de Auschwitz, Sião está a ser reconstruída. Há judeus.
Mas o que os faz ser assim? A questão mostra-se extraordinariamente difícil e controversa. A resposta de Sartre segundo a qual é o antissemita que define o judeu é uma hábil meia verdade, perfeitamente em consonância com a declaração de um dos presidentes da municipalidade de Viena, hostil aos judeus: “Sou eu que decido quem é e quem não é judeu”. Para os ortodoxos, a solução do problema é óbvia, um judeu, um verdadeiro judeu, é alguém que observa as várias centenas de instruções, prescrições, proibições rituais, normas dietéticas e de indumentária que regulam cada hora, todas as circunstâncias e exigências concebíveis da vida quotidiana entre um e outro sabat. É alguém, e fundamentalmente um homem, que “disporá na devida ordem as lâmpadas no candelabro puro e as manterá permanentemente diante do Senhor” (Levítico 24, 4); que não comerá “o mocho, a coruja, o íbis” (Deuterônimo 14, 16); que sabe que nenhum utensílio de ferro deverá ser utilizado para erigir um altar de pedra a Deus (Deuterônimo 27, 5); e que compreende porque é que, no seio do matrimônio, a esposa deve cuidar constantemente de não “afligir a alma do seu marido”, para que este não anule o casamento de ambos (Números 30, 13). A esta prodigalidade das prescrições mosaicas e levíticas, as interpretações talmúdicas e a tradição halachica (normativa e jurídica) acrescentaram um sem-número de outras práticas e fórmulas consagradas. Essencialmente de certo modo, a observância pesa mais do que a crença, uma vez que estabelece o judeu ortodoxo à parte, incontaminado pelo mundo dos gentios. Para o judeu “liberal”, moderno, para já não falarmos do que se coloca à margem do judaísmo, muitas destas injunções e tabus raiam o absurdo. E o mesmo se aplica às mímicas e gestos quase histéricos de adoração, de recitação interminável e monótona na escola ortodoxa e na casa de oração. Que tem ele em comum com a matilha fanatizada vestida de negro que lhe atira pedras para o expulsar do santuário que é o ghetto?
Indiscutivelmente, todavia, é o judeu ortodoxo, na sua fortaleza de Jerusalém ou de Williamsburg, que se sente mais à vontade na sua identidade, que se sente mais seguro da promessa endereçada a Abraão, que espera paciente, mas confiante, a vinda do Messias. São ele, a sua mulher e o seu rancho de filhos que saem dos banhos rituais ao pôr do Sol de sexta-feira, com as roupas a ressumar de renovação, e os seus rostos iluminados como são os dos judeus que não aceitam compromissos. É o ortodoxo que corre menos riscos de assimilação. E uma observância rigorosa e estrita, e não uma aquiescência especulativa, o que garante a eleição e a sobrevivência do povo judeu. Não é, paradoxo assustador, a fé em Deus, mas a leitura diária da Torah, ou a recusa de quebrar o jejum quando a alternativa é morrer de fome. Ele, que conhece, sem o interrogar, o preceito segundo o qual nenhum homem com “o pé partido ou a mão partida” pode aproximar-se do tabernáculo para ofertar o seu pão a Deus (Levítico 21, 19), nunca será apóstata, por maiores que sejam as seduções da tolerância ou do senso comum. Este literalismo pragmático é profundamente clarividente. A identidade, familiar e comunitária, compõe-se de movimentos e reiterações partilhados, e não de abstrações filosóficas ou de intimidade. Uma fé segura é um estilo de vida.
Os custos, apesar disso, podem ser enormes. Como os outros fundamentalistas, os ortodoxos cultivam o desprezo e até a abominação dos elementos exteriores. Consideram os judeus reformados abjetos. Os que vivem em Israel condenam o seu Estado por este não ter sido validado pelo Messias. Uma turba ortodoxa, que procura anular pela intimidação ou pela violência qualquer sinal de liberdade secular, é uma paródia dos valores ético-filosóficos dos judeus, ainda que ao mesmo tempo garanta o prodígio da sobrevivência. Para o ortodoxo que gesticula diante do muro (mítico) do Templo ou assedia o turista com apelos estridentes ao arrependimento, um Espinosa ou um Freud são tão estranhos e tão insuportáveis (ou, na realidade, mais ainda) como os seus perseguidores de origem cristã ou islâmica. Os fundamentalistas judeus ortodoxos e os muçulmanos são primos carnais. Mas foram os rabis ortodoxos e os seus acólitos que entoaram salmos ao mesmo tempo de luto e de júbilo à beira das valas comuns.
Para os “reformados”, os “liberais”, para os que são judeus a título ocasional e respeitem, talvez, uma vez por ano, as festividades santificadas por piedade filial – para o judeu ignorante do hebraico ou ateu, o problema da identidade é uma questão conturbada. Cada vez mais judeus, em particular no clima de aceitação da indiferença dos Estados Unidos, tendem a abandonar por completo a questão. Os casamentos mistos abrem o caminho à amnésia. Só quando o veneno antissemita irrompe num novo surto, ameaçando, por exemplo, os seus filhos que andam na escola, este judeu secular e não-observante desperta para a sua condição. Encontramos aqui o grão de verdade da tese de Sartre. Dadas as múltiplas combinações, sempre instáveis, que ocorrem entre a não-ortodoxia e a automarginalização, que fator comum, vinculativo, podemos apontar no judaísmo atual?
Desde a Antiguidade, a ideia de “raça” esteve fatalmente (fatutn) associada ao destino do judeu. Em boa parte, esta fixação tem origem no interior do próprio judaísmo. A proclamação de que os judeus são um “povo eleito”, um núcleo étnico à parte na sua singularidade, é veiculada pelo Pentateuco e retomada em diversas passagens capitais das escrituras hebraicas. Esta proclamação enfureceu outros povos e nações. Houve sábios e moralistas judeus que se esforçaram por combater esse ressentimento, caracterizando a “eleição” a uma luz trágica e quase masoquista. Deus singularizou o judeu não para que este se vangloriasse ou para que os outros o invejassem, mas para sua perpétua aflição. O judeu foi escolhido por Deus como para-raios, foi o bode expiatório que a exasperação divina designou perante uma humanidade renitente e pecadora. Mas nem esta leitura um pouco forçada atenua o ressentimento perante a condição isolada autoproclamada pelos judeus, perante o orgulho que os judeus, muitas vezes ostensivamente, extraem do seu sofrimento. O judeu não se insere no lugar-comum – e devemos ter bem presente este termo. Terá este “racismo” psíquico e emblemático uma qualquer concebível base biológica no plano dos fatos? Haverá, quer em termos de autodefinição, quer em termos de definição por outros, alguma coisa que se pareça com uma “raça” do judeu?
O recurso demente e homicida a uma classificação racial sob o nazismo e ao longo de toda a monstruosa história dos pogroms e expulsões tornou praticamente impossível e indefensável qualquer discussão independente do problema. O “racismo”, ainda que metafórico, é um motivo repugnante e inadmissível. Além disso, como insistem a biologia e a genética atuais, a simples ideia de impureza ou pureza racial não é senão um contra-senso perigoso. Podem existir algumas pequenas bolsas étnicas, insulares e em condições de isolamento prolongado, cuja herança genética talvez exiba um certo grau de hereditariedade invariante. Mas nem isso, em todo o caso, é certo. A rejeição pelas outras comunidades, uma forte tendência para o casamento endogâmico, a concentração no interior de espaços ou castas circunscritos, podem preservar e transmitir uma herança genética identificável. Mas semelhante identificação é altamente duvidosa. Só a susceptibilidade relativa a certas enfermidades específicas parece proporcionar algum elemento de prova consistente. Até mesmo um ghetto está exposto a receber contributos genéticos híbridos. Ao longo de milênios, e através da simbiose ativa da migração, os judeus, como os outros povos, “miscigenaram-se”. As medidas políticas e legislativas que visam impedir esta miscigenação, determinar proporções exatas de “sangue” e laços de parentesco judeus, refletem a loucura, o tribalismo invertido e as neuroses do inquisidor espanhol ou do esbirro fascista. O mesmo se diga das descrições, que uma vez mais remontam à Antiguidade Clássica, que pretendem estabelecer traços físicos distintivos para os judeus (o  “nariz judeu”  é conhecido entre todos). Há judeus louros e de olhos azuis, do mesmo modo que os há de pele escura e hirsutos. Que ligação genética direta e controlável existe entre o judeu que vem de Marrocos e o judeu da Lituânia? Que há em comum entre Maimônides e os bandidos de Odessa, entre o pugilista peso-pesado Max Baer e a figura espectral de Kafka? Os casamentos mistos do Ocidente agnóstico contemporâneo aceleram a hibridização. Quase sem esforço, os jovens judeus americanos podem desligar-se do seu legado histórico e familiar. Ao cabo de uma ou duas gerações, o seu judaísmo ancestral é uma memória esbatida, um rasto folclórico. Mais do que nunca, não há justificação sustentável para seja que definição for dos judeus como raça. Assim seja.
E contudo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

De Cérebros, Advogados, Vitórias e Verdades

Abaixo, um excerto do livro The moral animal, do neurobiólogo americano Robert Wright. A associação do cérebro com as atividades de um advogado não é sem intenção: subrepticiamente coloca-se em dúvida a honestidade dos rábulas (rs)!

“The proposition here is that the human brain is, in large part, a machine for winning arguments, a machine for convincing others that its owner is in the right – and thus a machine for convincing its owner of the same thing. The brain is like a good lawyer: given any set of interests to defend, it sets about convincing the world of their moral and logical worth, regardless of whether they in fact have any of either. Like a lawyer, the human brain wants victory, not truth; and, like a lawyer, it is sometimes more admirable for skill than for virtue” (WRIGHT, 1994, p. 280).

“[...] O cérebro humano é, em grande parte, uma máquina para vencer discussões, uma máquina para convencer os outros de que o seu dono está correto - e, portanto, uma máquina para convencer o próprio dono de semelhante pretensão. O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto qualquer de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, ainda que, de fato, nenhuma das duas possam estar presentes. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele às vezes é mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude” (WRIGHT, 1994, p. 280).

WRIGHT, Robert. The moral animal: why we are the way we are. New York, NY: Vintage, 1994.

H.C. - J.A.R.