Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Garrison Keillor - Prece

Um soneto a conter certa prece iconoclasta para que Deus, de fato, exista, e não seja mais um engano perpetrado pela mente humana: Keillor instila um humor nestes versos, que, a outras pessoas – sobretudo se adeptas fiéis de alguma doutrina religiosa –, poderia suscitar controvérsias ou levar a dissentimentos sem remate.

 

O poeta roga ao Senhor um sussurro que seja no ar, para demonstrar a sua divina existência, quase revelando a mesma velada suspeição do baiano Castro Alves, na estância introdutória de “Vozes d’África”: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito... / Onde estás, Senhor Deus?...”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Garrison Keillor

(n. 1942)

 

Prayer

 

Here I am O Lord and here is my prayer:

Please be there.

Don’t want to ask too much, miracles and such –

Just whisper in the air: please be there.

When I die like other folks,

Don’t want to find out You’re a hoax.

So I’m not on my knees asking for world peace

Or that the polar icecap freeze

And save the polar bear

Or even that the poor be fed

Or angels hover o’er my bed

But I will sure be pissed

If I should have been an atheist.

O Lord, please exist.

 

Prece noturna 2

(Angu Walters: artista camaronês)

 

Prece

 

Aqui estou, ó Senhor, e eis aqui minha prece:

Por favor, esteja aí.

Não quero pedir demais, milagres, isto e aquilo –

Basta que sussurre no ar: por favor, esteja aí.

Quando morrer como as outras pessoas,

Não quero descobrir que você é um ludíbrio.

Por isso, não estou ajoelhado a pedir a paz mundial

Ou que a calota polar congele

E salve o urso polar

Ou mesmo que os pobres sejam alimentados

Ou anjos pairem sobre meu leito

Mas, com certeza, ficarei chateado

Se vier a atinar que deveria ter sido ateu.

Ó Senhor, por favor, exista.

 

Referência:

 

KEILLOR, Garrison. Prayer. In: __________. 77 love sonnets. St. Paul (MN): Common Good Books, 2009. p. 1.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Ingeborg Bachmann - Paris

Bachmann aqui se reporta a dois elementos integrantes da inconfundível topografia da capital francesa, quais sejam, de um lado, as galerias subterrâneas de seu “trovejante” metrô, e de outro, o cintilante cenário modelado pelo Sena e suas pontes – que a fazem ser conhecida em todo o mundo como a “Cidade-Luz”.

 

No avançar das linhas, as flexões verbais passam a denotar a presença de alguém a quem a voz lírica se dirige, seu provável parceiro, no caso, para dar conta de um ânimo desencantado no momento mesmo em que transposta “a prova da beleza” para ambos, doravante erradios nas luminosas “alamedas dos génios”, muito embora ainda lhes subsista o especulado intento de “capturar” o lado mais emblemático da noite.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ingeborg Bachmann

(1926-1973)

 

Paris

 

Aufs Rad der Nacht geflochten

schlafen die Verlorenen

in den donnernden Gängen unten,

doch wo wir sind, ist Licht.

 

Wir haben die Arme voll Blumen,

Mimosen aus vielen Jahren;

Goldnes fällt von Brücke zu Brücke

atemlos in den Fluß.

 

Kalt ist das Licht,

noch kälter der Stein vor dem Tor,

und die Schalen der Brunnen

sind schon zur Hälfte geleert.

 

Was wird sein, wenn wir, vom Heimweh

benommen bis ans fliehende Haar,

hier bleiben und fragen: was wird sein,

wenn wir die Schönheit bestehen?

 

Auf den Wagen des Lichts gehoben,

wachend auch, sind wir verloren,

auf den Straßen der Genien oben,

doch wo wir nicht sind, ist Nacht.

 

Paris é bela

(Frédéric Thiery: artista francês)

 

Paris

 

Entretecidos na roda da noite

os vagabundos dormem

lá em baixo nas galerias trovejantes;

mas onde nós estamos é a luz.

 

Temos os braços carregados de flores,

mimosas de muitos anos;

ouros caem de ponte em ponte

ofegantes no rio.

 

Fria é a luz,

mais fria ainda a pedra frente ao portão,

e as taças das fontes

já estão meio vazias.

 

Que será quando, perturbados

de saudade até ao esvoaçar dos cabelos,

aqui ficarmos e perguntarmos: Que será

quando passarmos a prova da beleza?

 

No alto do carro da luz,

vigilantes também, estamos perdidos

nas alamedas dos génios, lá em cima,

mas onde nós não estamos é a noite.

 

Referência:

 

BACHMANN, Ingeborg. Paris / Paris. Tradução de João Barrento e Judite Berkemeier. In: __________. O tempo aprazado: poemas (1953-1967). Edição bilíngue: Alemão x Português. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Judite Berkemeier. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 1992. Em alemão: p. 30; em português: p. 31. (Edição nº 341; nov. 1992)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Glauco Mattoso - Ao Pé da Letra

O que há de melhor neste soneto de Mattoso é o parecer que declina sobre as vicissitudes das traduções, sobretudo em matéria de poesia: “se são fiéis, não são belas; se belas, infiéis”. Afinal, só quem se pôs diante da tarefa de traduzir poemas metrificados e rimados em outros idiomas é capaz de avaliar o quão árduo é o mister do tradutor para trazer ao vernáculo pátrio a ideia, o ritmo, a métrica e o esquema de rimas do original!

 

No mais, é a contumaz glosa do poeta paulistano, sempre a denotar algum sentido erótico: se cisma na definição do que sejam as mulheres, deixo a elas que teçam os seus pertinentes comentários! Afinal, fidelidade não seria um atributo encontrável entre belas mulheres?

 

J.A.R. – H.C.

 

Glauco Mattoso

(n. 1951)

 

Ao Pé da Letra

 

Mulheres são mulheres. Traduzindo,

são como as traduções: se são fiéis

não são belas; se belas, infiéis.

E quanto ao tradutor, nenhum é lindo.

 

Algumas belas damas vivem rindo.

Apenas desempenham seus papéis.

Têm sempre um par de homens a seus pés,

mas cada um chupando um dedo mindo.

 

E os outros dedos, quem os vai chupar?

E a sola, tão sedosa, quem lambeu?

E o peito? O tornozelo? O calcanhar?

De minha parte, digo: não sou eu.

Não sou de belas damas desdenhar,

mas, mais do que a Julieta, sou Romeu.

 

Mulheres

(Vishal Gurjar: artista indiano)

 

Referência:

 

MATOSO, Glauco. Ao pé da letra. In: ROSA, Jaime B. (Ed.). Antología de poesía brasileña. Edición bilingüe: portugués x español. 1. ed. Madrid, ES: Huerga y Fierro Editores, feb. 2007. p. 28.

domingo, 28 de maio de 2023

Anne Stevenson - O Espírito É um Instrumento Limitado Demais

A poetisa inglesa detém-se nestes versos a enfatizar a beleza e a perfeição do corpo humano, o fascinante e complexo processo biológico da natureza que dá ensejo à geração de uma nova vida, um ato criador que não adviria do espírito, de nenhuma paixão ou sentimento, senão de um hábito adjetivado como “ignorante” – melhor seria dizer “espontâneo”, “involuntário”.

 

Algo que está fixado em nossos genes, não em nossas “inábeis” emoções, concentra-se em uma tarefa tão complexa e importante, com destreza e sutileza, para criar o delicado corpo de um recém-nascido. A mente, por sua vez – nas palavras de Stevenson – somente seria capaz de conceber “amor, desespero, ansiedade e dor”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Anne Stevenson

(1933-2020)

 

The Spirit Is Too Blunt an Instrument

 

The spirit is too blunt an instrument

to have made this baby.

Nothing so unskilful as human passions

could have managed the intricate

exacting particulars: the tiny

blind bones with their manipulating tendons,

the knee and the knucklebones, the resilient

fine meshings of ganglia and vertebrae,

the chain of the difficult spine.

 

Observe the distinct eyelashes and sharp crescent

fingernails, the shell-like complexity

of the ear, with its firm involutions

concentric in miniature to minute

ossicles. Imagine the

infinitesimal capillaries, the flawless connections

of the lungs, the invisible neural filaments

through which the completed body

already answers to the brain.

 

Then name any passion or sentiment

possessed of the simplest accuracy.

No, no desire or affection could have done

with practice what habit

has done perfectly, indifferently,

through the body’s ignorant precision.

It is left to the vagaries of the mind to invent

love and despair and anxiety

and their pain.

 

Mãe e Filho

(William-Adolphe Bouguereau: pintor francês)

 

O Espírito É um Instrumento Limitado Demais

 

O espírito é um instrumento limitado demais

para ter ideado este bebê.

Nada tão inábil quanto as paixões humanas

poderia ter gerido os seus intrincados

e exatos pormenores: os minúsculos

e imperceptíveis ossos com os tendões que os manipulam,

o joelho e os ossos das articulações dos dedos, as malhas

finas e resilientes de gânglios e vértebras,

a cadeia da intrincada coluna vertebral.

 

Observe os nítidos cílios e as unhas afiladas em forma

de meia-lua, a complexidade da orelha semelhante a uma

concha, com suas firmes involuções

concêntricas em miniatura até diminutos

ossículos. Imagine os

capilares infinitesimais, as conexões impecáveis

dos pulmões, os invisíveis filamentos neurais

através dos quais todo o corpo

já responde ao cérebro.

 

Em seguida, nomeie qualquer paixão ou sentimento

que possua a mais simples precisão.

Não, nenhum desejo ou afeição poderia ter feito

com a prática o que o hábito

elaborou à perfeição, indiferentemente,

mediante a ignorante precisão do corpo.

Resta aos caprichos da mente inventar

o amor e o desespero e a ansiedade

e sua dor.

 

Referência:

 

STEVENSON, Anne. The spirit is too blunt an instrument. In: ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st publ. Northumberland, EN: Bloodaxe Books, 2002. p. 183.

sábado, 27 de maio de 2023

Pê Kiu Yi (Bai Juyi) - O poeta se levanta tarde

Franco e coloquial, este poema de Bai Juyi – um dos principais poetas do período intermediário da Dinastia Tang, na virada do século VIII ao IX – narra o que se passa com o poeta, quando acorda tarde e percebe sons e luzes da natureza, divagando em estados mentais, ainda envolto nas mantas do leito, imaginando sua esposa a concebê-lo como uma mariposa em crisálida, à espera da próxima primavera.

 

O tom despretensioso do discurso vai em linha com o estado de languidez no qual o falante diz ainda estar imerso, a entorpecer-lhe os sentidos, levando os seus pensamentos a se evolarem numa atmosfera de sonho:  por que os despertadores da natureza a perturbar-lhe o sono?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Pê Kiu Yi

(Bai Juyi)

(772-846)

 

O poeta se levanta tarde

 

Acordo ouvindo a matinal sonata

dos passarinhos a trinar na mata.

 

Multirisado, o sol vara a cortina

e o quarto com mil cores ilumina.

 

A cama está, porém, macia e quente

e os olhos entrecerro novamente.

 

É este o raro e mágico momento

em que flutua, longe, o pensamento.

 

Esqueço tudo e até nem sei direito

de que lado do quarto está meu leito.

 

Os sentidos esvaem-se num sonho,

uma ebriez de tóxico.

 

Suponho

que, quando entrar aqui, a minha esposa

vai julgar-me uma grande mariposa

 

dormindo na crisálida, à espera

do festival da nova primavera.

 

Jovem dormindo

(Bernhard Keil: pintor dinamarquês)

 

Referência:

 

YI, Pê Kiu (JUYI, Bai). O poeta se levanta tarde. Tradução de Hugo de Castro. In: CASTRO, Hugo de (Tradução, apresentação e notas). Cem poemas chineses. São Paulo, SP: Vertente Editora, 1978. p. 51.