Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Márcio Catunda Gomes - 31 de Dezembro de 2005

Há mais ou menos uma década e meia, achava-se o diplomata e poeta brasileiro em Lisboa (PT), durante a virada do ano novo, a contemplar, entristecido, as águas do Tejo, ponderando que aquele deveria ser um dia como outro qualquer, mas que acaba por nos atingir emocionalmente a todos, haja vista o protocolo e o peso que a ele se atribuem, diante da expectativa de que eventos auspiciosos venham a ocorrer nos próximos 365 dias, ou que, pelo menos, não sejam fomentadores de temores ou de sobressaltos.

Mas nada que o clarão dos fogos de artifícios não seja capaz de iluminar, tanto externamente – como os barcos à beira do rio – quanto intimamente, forjando uma “súbita aurora” e levando o vate a esquecer momentaneamente, imagina-se, a sua Fortaleza (CE) natal (como Dias a capital maranhense, estando em Coimbra (PT), longe de sua terra pejada de palmeiras e sabiás).

J.A.R. – H.C.

 

Márcio Catunda Gomes

(n. 1957)

 

31 de Dezembro de 2005

 

O último dia do ano deveria ser um dia

como outro qualquer.

Sem temores, sem sobressaltos.

Mas entristeci de pensar.

A canalha assovia, a sirene passa

e eu me deito sobre os meus 48 anos.

Da varanda vejo o Tejo,

a noite abriu-se como por encanto.

Há bulício nas casas e nas ruas.

Holofotes e estrelas anunciam

e eu desentristeço de expectativa.

Os barcos são candeias na fragrância das águas.

A meia-noite acende os formidáveis fogos.

As auras fosfóreas produzem súbita aurora.

É já manhã na face lisa do Tejo.

 

Em: “Água Lustral” (1998)

 

Meditações: pôr do sol sobre o rio Tejo II

(Silvana LaCreta Ravena: pintora paulista) 


Referência:

GOMES, Márcio Catunda. 31 de dezembro de 2005. In: __________. Plenitude visionária: poemas selecionados. Lisboa, PT: Companhia das Musas, 2007. p. 16.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Ernest E. Sandeen - Ano

As coisas sucederam com alguma apreensão durante a estação do final de ano, mas sem maiores transtornos, sem casas incendiadas ao longo de um rigoroso e tardio inverno, com pinheiros naturais adornados como árvores de Natal, crianças interessadas em saber o que vai por dentro dos ornatos neles pendurados e, por fim, um novo ano que se inicia, enquanto os dias retornam à normalidade.

A voz poética, nestas linhas do poeta e educador norte-americano, espera que, uma vez restabelecida a suavidade do clima, logo as folhas retornem aos galhos do arvoredo, quando então elas poderão “inspecionar” todos os que se encontrarem ao redor – e até mesmo “julgá-los” (talvez por haverem promovido algum desmate na área!). (rs)

J.A.R. – H.C.

 

Ernest E. Sandeen

(1908-1997)

 

Year

 

Autumn endured beyond rumor.

All around us groves of rainbows

kept promising.

 

Snow came finally and we were

quarreling with winter

for our lives.

 

Christmas trees kept falling

down, the sawed roots

slipped at last.

 

No houses burned, some decorations

broke, a few children knelt to see

how empty these baubles were

inside.

 

Leaves will return in season

to their lofty perches,

they will inspect us, maybe

judge us.

 

In: “Like Any Road Anywhere” (1976)

 

Paisagem com um arco-íris

(Alexei Savrasov: pintor russo)

 

Ano

 

O outono perdurou além dos rumores.

À nossa volta, bosques de arco-íris

continuaram promissores.

 

Finalmente chegou a neve e ficamos

a pelejar com o inverno

por nossas vidas.

 

As árvores de Natal não paravam

de cair, serradas as raízes

podiam enfim ser arrastadas.

 

Nenhuma casa queimada, romperam-se uns poucos

adornos, algumas crianças se ajoelharam para ver

como eram vazias essas quinquilharias

por dentro.

 

As folhas retornarão na estação

às suas elevadas ramas;

elas nos inspecionarão, talvez

nos julguem.

 

In: “Como Qualquer Estrada em

Qualquer Lugar” (1976)


Referência:

SANDEEN, Ernest Emanuel. Year. In: __________. Collected poems: 1953-1977. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1977. p. 123.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Armindo Trevisan - Outra vez, Deus

Deus, para o teólogo, poeta e ensaísta gaúcho, não é algo que se possa ver, tocar, nem mesmo pensar, isto porque se consubstancia na fé, para além do exercício racional que possamos empreender por meio de nossos “pobres neurônios” – a menos que se o creia, v.g., na figura de Cristo, nascido humanamente criança e crucificado no Gólgota.

Diante da alocução do poema, pode-se afirmar que Trevisan estima com menor ponderação os exercícios levados a efeito por grandes pensadores e teólogos – a exemplo de São Tomas de Aquino (1225-1274) –, referentes aos argumentos lógicos, analógicos, ontológicos, cosmológicos e físico-teológicos para se provar a existência de Deus, todos eles relativizados em favor da simples profissão de fé, mais conforme à modesta “estatura” dos homens.

J.A.R. – H.C.

 

Armindo Trevisan

(n. 1933)

 

Outra vez, Deus

 

Afirma-se

que o Senhor Altíssimo

é mais conhecido pelo que Ele não é.

 

Não é algo que se vê,

que se toca,

nem que se pensa.

 

É tudo isso,

desde que O imagines

fora de tudo isso.

 

Não queiras pôr Deus na companhia

de teus pobres neurônios:

eles morreriam de tédio.

 

A não ser que te disponhas

a crer que Ele entrou na História

e permitiu que o afagassem

como uma criança,

morrendo como um bicho

– porque é assim que muitos homens morrem.

 

Tens um privilégio, ó racional,

entre todas as criaturas:

Deus abriu mão de sua condição

para amar-te, não à sua altura,

Mas à tua altura.

 

Paisagem romântica com abeto

(Elias Martin: pintor sueco)


Referência:

TREVISAN, Armindo. Outra vez, Deus. In: __________. Adega imaginária & O relincho do cavalo adormecido. 1. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013. p. 150.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Michel Quoist - A criança

Jesus no presépio é uma criança a representar todos os infantes nascidos em situação de carência, inimputáveis, ou melhor, inocentes de todos os câmbios nos propósitos humanos, não exatamente aqueles que se associam a virtudes, senão os que rebaixam o espírito – desfigurando a alma tão devotada aos seus sagrados desígnios.

Assoma-nos este poema, elaborado pelo escritor e presbítero francês, como uma prece a Cristo, para que reaviva no coração do ente lírico a imagem, as palavras e a história de vida daquele que, como ninguém, marcou de forma indelével a história da civilização ocidental, seus cânones morais e jurídicos, a arte e a filosofia.

J.A.R. – H.C.

 

Michel Quoist

(1918-1997)

 

L’enfant

 

Un instant la maman a laissé la voiture

d’enfant, et je me suis approché

pour rencontrer la Sainte Trinité

vivante en l’âme pure.

L’enfant dort, ses bras jetés em

désordre sur le petit drap brodé.

Les yeux clos regardent à l’intérieur

et la poitrine doucement se soulève.

Il semble que la vie murmure: la Maison

est habitée.

 

Seigneur, tu es là.

 

Je t’adore en ce petit qui ne t’a pas

encore défiguré.

Aide-moi à redevenir comme lui.

À retrouver ton image et ta Vie,

si loin en mon cœur enfouies.

 

Natividade (detalhe)

(Giovanni Comandu: pintor italiano)

 

A criança

 

A mamãe deixou um momento o carrinho

da criança, e eu me acheguei para

encontrar, bem viva na alma pura,

a Santíssima Trindade.

A criança está dormindo, os bracinhos jogados

em desordem sobre o lençol bordado.

Os olhos cerrados olham para dentro,

e o peito arqueja docemente.

A vida parece que murmura: a casa

é habitada.

 

Senhor, lá estás.

 

Adoro-te neste pequenino que não

Te desfigurou ainda.

Ajuda-me a ficar de novo como ele.

A encontrar outra vez Tua imagem e Tua vida,

escondidas tão fundo no meu coração.


Referências:

QUOIST, Michel. L’enfant. In: __________. Prières. Paris, FR: Les Éditions de l’Atelier / Éditions Ouvrières, 2003. p. 36.

QUOIST, Michel. A criança. Tradução de Lucas Moreira Neves. 9. ed. In: __________. Poemas para rezar. São Paulo, SP: Livraria Duas Cidades, ago. 1961. p. 38.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Joseph Brodsky - O segundo Natal à beira

Com alusões à música erudita, quiçá a algo que se pareça a uma fuga ou a uma sinfonia de adeus, estes versos de Brodsky externam a ideia de partida, separação de uma pessoa querida – pela dedicatória, decerto a inglesa Elizabeth Robson (E. R.), de quem Brodsky era amigo, durante seus estudos de pós-graduação em Leningrado (1967-1969) e com quem se comunicara em suas visitas subsequentes à antiga URSS – do passado, do antigo remanso e, no geral, do torrão natal.

Trata-se de um poema bem mais a evocar uma relação próxima – íntima, se não for descomedimento – do ente lírico com E. R., do que, propriamente, metatexto sobre fatos narrados nos Evangelhos, mesmo a despeito, por conseguinte, do recurso à expressão “Estrela dos Reis”, que nele surge, sem dúvida, para demarcar o período natalino em que se passa o sucedido entre os dois.

J.A.R. – H.C.

 

Joseph Brodsky

(1940-1996)

 

Второе Рождество на берегу

 

Э. Р.

 

Второе Рождество на берегу

незамерзающего Понта.

Звезда Царей над изгородью порта.

И не могу сказать, что не могу

жить без тебяпоскольку я живу.

Как видно из бумаги. Существую;

глотаю пиво, пачкаю листву и

топчу траву.

 

Теперь в кофейне, из которой мы,

как и пристало временно счастливым,

беззвучным были выброшены взрывом

в грядущее, под натиском зимы

бежав на Юг, я пальцами черчу

твое лицо на мраморе для бедных;

поодаль нимфы прыгают, на бедрах

задрав парчу.

 

Что, боги, – если бурое пятно

в окне символизирует вас, боги, –

стремились вы нам высказать в итоге?

Грядущее настало, и оно

переносимо; падает предмет,

скрипач выходит, музыка не длится,

и море все морщинистей, и лица.

А ветра нет.

 

Когда-нибудь оно, а неувы

мы, захлестнет решетку променада

и двинется под возгласыне надо”,

вздымая гребни выше головы,

туда, где ты пила свое вино,

спала в саду, просушивала блузку,

круша столы, грядущему моллюску

готовя дно.

 

Ялта, январь 1971

 

Sol de inverno em Līči,

perto do lago Juglas (Letônia)

(Edgars Vinters: pintor letão)

 

O segundo Natal à beira

 

para E. R.

 

O segundo Natal à beira

do não enregelável Ponto.

A estrela dos Reis nos cais do porto.

Não posso dizer que não consigo

viver sem ti – pois vivo.

Conforme a página diz. Existo,

engulo a birra, conspurco a folha,

piso na grama.

 

Agora do café, de onde nós, contentes

como convinha, temporariamente,

fomos jogados, por explosão silente,

no futuro, sob o assalto do inverno,

rumo ao Sul; com os dedos desenho

teu rosto no mármore para os desprovidos;

as ninfas na distância saltitam

erguendo brocados nos quadris.

 

O que, deuses – se uma mancha escura

à janela vos simboliza, deuses –

tentastes nos dizer, em suma?

O futuro chegou, e ele

é suportável; cai um objeto,

o violinista sai, a música não dura,

o mar cada vez mais enrugado, e os rostos.

Mas não há vento.

 

Será ele e não nós – infelizmente – um dia

a transbordar sobre o gradil da caminhada

e avançar atropelando os “é interdito”,

erguendo crista sobre a testa,

lá onde tu o vinho bebias,

secavas a blusa e dormias no jardim

– destroçando as mesinhas, e ao molusco do futuro

preparando o fundo.

 

Ialta, janeiro de 1971


Referência:

BRODSKY, Joseph. Второе Рождество на берегу / O segundo Natal à beira. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. In: __________. Poemas de Natal. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. Edição bilíngue. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Editora Âyiné, nov. 2019. Em russo: p. 62 e 64; em português: p. 63 e 65.