Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Carlos Nejar - Poética

Em meio a tantas autorreferências, a poesia avança, neste caso, sob a pena do epigrafado poeta gaúcho, que vai até as mais distantes páginas do tropo bíblico para de lá sacar associações com as narrativas de Absalão – o terceiro filho do rei Davi, tão belo e viloso quanto rebelde, pronto a usurpar o trono do pai.

Sarças, peixes, a luta de Jacó contra o anjo do Senhor, tudo lembra o momento de convívio mais próximo entre o humano e o divino, durante o qual a criação projeta os efeitos de seus esforços, devastadores às vezes, fazendo renovar a face da terra. Assim também o vate, para quem não basta a simples materialidade do mundo, sendo necessária, por igual, a externalização das imanências da realidade, segundo o “evangelho” da poética.

J.A.R. – H.C.

Carlos Nejar
(n. 1939)

Poética

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
(Carlos D. de Andrade)

Abre a gaveta do tempo
sem etiquetas, poema.
Abre a gaveta e limpa-a
do esquecimento.

Tira de seu interior, os abstratos
temas, razões de antigo fervor,
cartas, dezenas de folhas:
e rolhas de ideias sem cor.

Tira os insetos da rima
ou se rima ficar: o conforto
é enterrar o já morto,
poema. Viver é depor.

Depois, cerrar a gaveta
como uma ata
e a sarça de sons, poesia,
nunca me farta.

II

O poema vem de onde venho,
de sua limalha.
Na sua torrente, ando.
Não me corrói, depositário
fiel de seus transportes.

Do poema
faço a mala de viagem,
a força de construir
o que não ganho,
a força de cavar
o que não tenho.

Do poema: “o visto”.
Para onde? Não disponho.

III

Cavo o poema
com meus valores;
cavo o poema,
com desespero,
como se cava um filho.

Em tudo o que crio
ou destruo;
na asa da gaivota,
na grota.

O poema como balança
entre a mesa e o pensamento.
Mais perto deste,
quando me alcança.

IV

Lutei, Jacó, três dias
e três noites
e o poema me venceu
com seu açoite.

Três dias e três noites,
lutei contra o vazio
das palavras
e a poesia
cuidou as feridas
e as lavas.

Jacó, não derrubavam
meu semblante,
na luta de antes.
Na luta de Deus
ou da morte,
o verso, o verso
repetido
como um mote.

Três dias e três noites.

V

Não te chamarei
Como Éluard, liberdade.
Embora estejas
na mesma Cidade.

És conhecida e desconhecida
dos que me viram no sítio
de haver nascido,
poesia,
dos que me acompanharam
sem remorsos,
dos que amei e desamei no encontro.

Eras subterrânea
como o peixe nas catacumbas
e te portava, unânime,
entre vozes confusas.

Bandeira de muralha,
guerra de sons, conflito,
cavo teu grito
na garganta dos vivos.
Cavo-o, profundo
e oco,
na árvore da origem.

VI

Fui Absalão e Davi.
Absalão no não.
Absalão no reino
que perdi.

E Davi levava-o comigo
nos incestos,
na colina,
depois das batalhas,
na harpa
em que moravas,
poesia,
sem mesadas.

Absalão fui
e sou no teu ritmo,
herdeiro
e do rei foragido.
Os oráculos preguei
no muro do espaço.
Eis o meu apanágio.

Absalão, contigo
nasci, fui teu irmão.
Bateste, bateste, bateste
na morte,
contenção, vibrátil
Absalão.

Pesava duzentos siclos
teu cabelo.

VII

Cavo o poema
nos meus guardados,
carta de terras
que não reparto.

Cavo o poema,
longe do nojo,
perto do ontem,
onde repouso.

Habilitado
pelos contrastes
e pelos ares
de meu casaco,
cavo o poema
com zelo e arte.

E bebo o leite
que vem do tambo;
cavo o poema,
cavo até quando
surgir à cena,
Davi, o campo
e o mais que teima
no fundo espanto.

Cavo o poema,
com suas sardas
e seus fonemas.
Tardo, recluso,
eu mesmo uso
de suas penas,
urdindo as teias
desta vivenda,
na noite plena.

Absalão, cavo o poema.

Em: “Ordenação Segunda”

A festa de Absalão
(Mattia Preti: pintor italiano)

Referência:

NEJAR, Carlos. Poética. In: __________. Ordenações. Porto Alegre, RS: Globo, 1971. p. 49-53.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

A. C. Jacobs - N.W.2: Primavera

Em Londres, mais precisamente em um bairro localizado a noroeste da metrópole – próximo ao local onde se localiza o “Gladstone Park” –, o poeta escocês de origem judaica aspira, do ambiente à volta, as sensações que lhe insufla ao espírito a poesia, amalgamada à pura tangibilidade das coisas.

É a primavera que afugenta os últimos vestígios invernais, fazendo brilhar a luz do sol sobre a urbe: esse evento cíclico da natureza passou pela pena de grandes escritores e poetas britânicos, que teceram elogios à beleza da buganvília em terras inglesas, tornando-a ainda mais atraente sob a estação das flores.

J.A.R. – H.C.

A. C. Jacobs
(1937-1994)

N.W.2: Spring

The poets never lied when they praised
Spring in England.
Even in this neat suburb
You can feel there’s something to
their pastorals.
Something gentle, broadly nostalgic, is stirring
On the well-aired pavements.
Indrawn brick
Sighs, and you notice the sudden sharpness
Of things growing.
The sun lightens
The significance of what the houses
Are steeped in,
brightens out
Their winter brooding.
Early May
Touches also the cold diasporas
That England hardly mentions.

Jardins da Catedral de St. Paul
(Nick Andrew: artista inglês)

N.W.2: Primavera

Os poetas jamais mentiram quando teceram elogios
À primavera na Inglaterra.
Mesmo neste arrumado subúrbio
Pode-se sentir que há algo para
as suas pastorais.
Algo deferente, em geral nostálgico, agita-se sobre
As calçadas bem ventiladas.
Os discretos tijolos
Suspiram, permitindo que se perceba a súbita nitidez
Das coisas a crescer.
O sol clareia
O significado daquilo em que as casas
Estão imersas,
banhando em luz
O seu inverno melancólico.
O início de maio
Também afeta as frias diásporas
A que a Inglaterra dificilmente faz menção.

Referência:

JACOBS, A. C. N.W.2: spring. In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 137.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Lev Kropivnítzki - Sextina

Estas sextinas pertencem a um poeta, artista e compositor considerado como um dos líderes da cultura não oficial russa, enquanto um dos fundadores do grupo “Lianozovo” – a incluir, dentre outros, o pintor Oscar Rabin e o poeta Igor Holin –, devotado a abrir caminho alternativo na arte, motivo pelo qual transitou na “periferia” das principais tendências artísticas do século XX.

Pode-se deduzir que o teor de tais sextinas reflitam os impasses sofridos pelos artistas russos sob o domínio da política soviética, eis que apresentam temática dedicada aos trabalhadores e camponeses, em sua lida de trabalho e diversão, enquanto, de forma subterrânea, o grupo “Lianozovo” entregava-se aos pendores de vanguarda, no domínio da criatividade metapoética, dos coloquialismos e dos ditames surrealistas, tendências que, mais tarde, desenvolveram-se com mais liberdade, já nas décadas finais do século.

J.A.R. – H.C.

Lev Kropivnítzki
(1893-1979)

Секстинах

Молчи, чтоб не нажить беды,
Таись и бережно скрывайся;
Не рыпайся туды-сюды,
Не ерепенься и не лайся.
Верши по малости труды
И помаленьку майся, майся.

Уж раз родилсястало, майся:
Какой еще искать беды? –
Известно, жизньтруды, труды
Трудись, но бережно скрывайся,
Не поддавайся, но не лайся, –
Гляди туды, смотри сюды.

Хотя глядишь туды-сюды,
Да проку что? – сказали: майся.
Все ерунда, так вот, не лайся!
Прожить бы только без беды,
А чуть бедаскорей скрывайся.
Но памятуй: нужны труды.

Труды они и есть труды:
Пошел туды, пришел сюды,
Вотот работы не скрывайся.
Кормиться хочешьстало, майся,
Поменьше было бы беды,
Потише было бы, – не лайся.

Есть лают зло, а ты не лайся,
И знай себе свои труды:
Труды туды, труды сюды;
Прожить возможно ль без беды?
А посему трудись и майся,
И помаленечку скрывайся.

Все сгинетну и ты скрывайся,
И на судьбу свою не лайся:
Ты маялся? – так вот, не майся,
Заканчивай свои труды,
В могилу метьтуды, туды,
Туды, где больше нет беды.

(1948)

A Dança Camponesa
(Pieter Bruegel, o Jovem: pintor flamengo)

Sextina

Cala, e não haverá desgraça.
Oculta-te e fica de lado:
Não te agites pra cá, pra lá,
Não te enerves, bico calado.
É isso aí: cai no trabalho
E, pouco a pouco, dança, dança.

Quem nasceu não tem jeito, dança:
Para que buscar mais desgraça?
A vida é assim mesmo: trabalho.
Trabalhar e passar de lado.
Aguentar, mas sempre calado,
Olhar pra cá, olhar pra lá.

Mesmo que olhes pra cá, pra lá,
De que adianta? – disseram: dança,
Tudo é inútil. Passa, calado,
Para não cair em desgraça.
Se há desgraça, fica de lado,
Mas lembra bem: tudo é trabalho.

Trabalho é sempre trabalho:
Zanza pra cá, zanza pra lá,
Ou trabalha ou fica de lado.
Comer não é bom? Então, dança.
Pra viver com menos desgraça
E mais paz, aguenta calado.

Que outros chiem, ouve calado
E conhece bem teu trabalho:
Talha pra cá, malha pra lá;
Quem pode viver sem desgraça?
É esse o jeito: trabalha e dança...
E pouco a pouco sai de lado.

Tudo passa – fica de lado,
Aceita o teu quinhão, calado.
Pra que dançar? Esquece a dança
E trabalha no teu trabalho,
Talha a mortalha e vai pra lá,
Pra lá, onde não há desgraça.

(1948)

Referências:

Em Russo

КРОПИВНИ́ЦКИЙ, Евге́ний Леони́дович. Секстинах. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 out. 2018.

Em Português

KROPIVNÍTZKI, Lev. Sextina. Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia moderna russa: nova antologia. Traduções de Augusto e Haroldo de Campos, com a revisão ou colaboração de Boris Schnaiderman. 3. ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1985. p. 290-291.

domingo, 28 de outubro de 2018

João Guimarães Rosa - Gargalhada

De um livro de poemas anterior a suas grandes obras – como “Sagarana” (1946) ou “Grande Sertão: Veredas” (1956) –, nomeadamente “Magma”, de 1936, este poema já permitia antever a capacidade criativa de Rosa, tratando o tema da separação como uma “tortura predestinada”, razão de se ter rido internamente de toda a cena, ainda que já com os olhos a lagrimar.

É o efeito a contrário senso daquela composição dos anos 90, interpretada pela cantora Tetê Espíndola, de autoria do esposo Arnaldo Black e de Carlos Rennó, a afirmar que ela e o amado juntaram-se por um amor que “estava escrito nas estrelas”, um “caso do acaso bem marcado em cartas de tarô”.

Diferenças entre as hipóteses?: a separação predestinada de Rosa pertence à noite dos tempos, quando a inexperiência dos Deuses ainda não havia criado o mundo. Então o que terá ocorrido? Quando se tornaram experientes, os Deuses criaram o mundo e deixaram, sem querer, a predestinação correndo solta? Ou os Deuses, mesmo na inexperiência, criaram o mundo e, de forma deliberada, deixaram a “tortura predestinada” virar um atropelo nos pensamentos e sentimentos dos amantes, permitindo-nos concluir, se verdadeira tal hipótese, que os Deuses seriam sádicos?! Mas percebamos no que deu: o escritor-poeta se ri disso tudo. Seria ele algo masoquista?! (rs)

J.A.R. – H.C.

João Guimarães Rosa
(1908-1967)

Gargalhada

Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos.
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...

A Separação
(Edvard Munch: pintor norueguês)

Referência:

ROSA, João Guimarães. Gargalhada. In: __________. Magma. Desenhos de Poty. 2. reimpressão. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1997. p. 91.