Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Armindo Trevisan - Israel

Dedicado ao filósofo, pedagogo e escritor Martin Buber, austríaco de origem judaica que, depois, naturalizou-se israelense, o poeta Armindo Trevisan – também teólogo e ensaísta –, remonta graciosamente aos enredos bíblicos, para de lá extrair os novos sentidos que passaram a moldar a terra de Israel – e mais ainda, a própria existência da voz lírica, que se diz enredada aos fios divinos.

Aparece o ceticismo sobre a revelação das intenções divinas aos homens daquela terra – Deus falou? Mas quem o ouviu? –, e a mutação, nos dias presentes, da natureza de Deus – teu Deus é outro –, embora ainda fiel. Qual será então esse Deus? Terá se revestido, novamente, em ouro como o bezerro de outrora?

J.A.R. – H.C.

Armindo Trevisan
(n. 1933)

Israel

(À memória de Martin Buber)

Piso em silêncio as pedras de Israel,
e nelas ouço, como em búzios velhos,

as trombetas, os gritos e os conselhos
que os profetas soltaram pelos ares.

Sou de uma argila antiga, sou fiel
a tantos fios que vieram de teares

por onde andou a mão de Deus. E sonho
que em outro sonho um anjo apareceu,

e disse-me a palavra que ecoou
no Monte em que, da Nuvem, Deus falou.

Falou? Mas quem O ouviu? Depois, submisso,
escuto novamente a voz bravia

que não se acorrentou à espada fria,
nem ao mel que o leão moldou na boca,

Oh, eu piso, e pisarei teu chão, Israel!
Mas viverei sonhando anjos risonhos

Que voltarão nos meus piores sonhos,
e me dirão: teu Deus é outro – e fiel.

Em: “Os Olhos da Noite” (1997)

Moisés e os mensageiros de Canaã
(Giovanni Lanfranco: pintor italiano)

Referência:

TREVISAN, Armindo. Israel. In: __________. Nova antologia poética: 1967-2001. Porto Alegre, RS: Sulina, 2001. p. 180.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

R. J. Ellmann - Um Poeta Frustrado

Talvez a poetisa autora do poema de hoje – sobre quem não consegui obter qualquer dado ou informação, nem mesmo na obra de referência – tivesse alguém em mente quando o redigiu: uma pessoa que pairava no além, sonhando acordada, enquanto os outros discutiam políticas de benefícios e orçamentos, numa reunião do departamento de recursos humanos de uma faculdade qualquer.

O resultado final, no entanto, é bastante divertido, se é que não resultou carta de demissão ao sonhador. Aliás, talvez fosse melhor assim, porquanto poderia o poeta dar asas à sua imaginação, criando um trabalho de beleza capaz de ser um sucesso editorial, quem sabe?!

J.A.R. – H.C.

Burocracia
(Leon Zernitsky: pintor russo)

A Frustrated Poet

This is to say
I know
You wish you were in the woods,
Living the poet life,
Not here at a formica topped table
In a meeting about perceived inequalities in the benefits and
allowances offered to employees of this college,
And I too wish you were in the woods,
Because it’s no fun having a frustrated poet
In the Dept. of Human Resources, believe me.
In the poems of yours that I’ve read, you seem ever intelligent
and decent and patient in a way
Not evident to us in this office,
And so, knowing how poets can make a feast out of trouble,
Raising flowers in a bed of drunkenness, divorce, despair,
I give you this check representing two weeks’ wages
And I ask you to clean out your desk today
And go home
And write a poem
With a real frog in it
And plums from the refrigerator,
So sweet and so cold.

Sem título
(Wifredo Lam: pintor cubano)

Um poeta frustrado

Isto é para dizer
que bem percebo
que gostarias de estar nos bosques,
vivendo a vida de poeta,
não aqui à volta de uma mesa coberta de fórmica
numa reunião sobre as desigualdades observadas nos benefícios e
subsídios oferecidos aos funcionários desta faculdade,
e, ainda, que também eu estimaria que estivesses nos bosques,
acredita-me,
porque não é nada divertido ter um poeta frustrado
no Departamento de Recursos Humanos.
Nos poemas da tua lavra, pareces sempre inteligente
e decente e paciente de um modo
que não se nos mostra evidente neste escritório,
e assim, sabendo como os poetas são capazes de fazer uma
festa longe de problemas,
erguendo flores num leito de embriaguez, divórcio, desespero,
entrego-te este cheque referente ao salário de duas semanas,
e peço-te que limpes a tua mesa hoje
e que vás para casa
e redijas um poema
em cujo cerne haja um sapo de verdade
e ameixas da geladeira,
tão doces e tão frias.

Referência:

ELLMANN, R. J. A frustrated poet. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 110.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Marina Tzvietáieva - Abro as veias

A poesia ampara-se da essencialidade do sangue: se a poetisa corta as veias, é ela que vaza irreprimível, enchendo bilhas e vasilhas. Mas cortar as veias é um ato de suicídio e, se para verter poesia, é necessário verter sangue, o ato de criação seria também um ato de destruição – ou melhor, de autodestruição.

Sob esse contexto, a arte poética revela-se uma arte do limite, do trânsito da vida para a morte, do instante para se manifestar o que há de mais interior à luz do dia, de extravasar tudo aquilo que cerceado está nas veias e artérias do poeta: trata-se, pois, de uma vocação aparentada da tragédia, no seu fluxo imparável e irrecuperável.

J.A.R. – H.C.

Marina Tzvietáieva
(1892-1941)

Вскрыла жилы

Вскрыла жилы: неостановимо,
Невосстановимо хлещет жизнь.
Подставляйте миски и тарелки!
Всякая тарелка будетмелкой,
Мискаплоской.

Через крайи мимо
В землю черную, питать тростник.
Невозвратно, неостановимо,
Невосстановимо хлещет стих.

6 января 1934

Coração partido em posição invertida
(Sarah Levy: pintora norte-americana)

Abro as veias

Abro as veias: irreprimível,
Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.

Pelas bordas – à margem
Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.

6 de janeiro de 1934

Referências:

Em Russo

ЦВЕТАЕВОЙ, Марины.  Вскрыла жилы. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 fev. 2019.

Em Português

TZVIETÁIEVA, Marina. Abro as veias. Tradução de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto (Seleção e Tradução). Poesia da recusa. São Paulo, SP: Perspectiva, 2006. p. 165.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Hilda Hilst - Árias pequenas. Para bandolim - XIII

Veja você, internauta, que as minhas melhores intenções em sintetizar algo sobre os poemas que, dia a dia, posto neste bloguinho, são vãs. Afirma-nos Hilst que são inúteis as tentativas de se explicar um poema, tanto mais que o ofício do poeta é um exílio sobre a terra – e, talvez, o silêncio melhor exprima o que lhe condiciona o ofício.

Mas eu resisto, sobretudo em razão de as palavras serem uma das poucas formas que temos para expressar nossos sentimentos, longe das quais tudo são apenas expressões que não são capazes de promover a necessária catarse que a razão sempre exige.

A língua é matéria vibrátil

É triste explicar um poema. É inútil também.
Um poema não se explica. É como um soco.
E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida.
Um soco certamente te acorda e, se for em
cheio, faz cair tua máscara, essa frívola,
repugnante, empolada máscara que tentamos
manter para atrair ou assustar. Se pelo menos
um amante da poesia foi atingido e levantou de
cara limpa depois de ler minhas esbraseadas
evidências líricas, escreva apenas isso: fui
atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser
festa aquilo que na Terra me pareceu exílio:
o ofício de poeta. (HILST, 2012, p. 65)

Em: “Cascos & Carícias & Outras Crônicas” (1998) 

J.A.R. – H.C.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Árias pequenas. Para bandolim - XIII

Túlio: há palavras escuras,
Guardadas, duros ramos
Dentro das arcas. Roxura
Por exemplo. É ânsia.
Convém lembrá-las
Porque me faço mordente
Nesta minha armadura,
Soberbosa, cansada
Do teu silêncio
E do laivoso das gentes.
Há palavras escuras.
Hederoso, por exemplo.
É abundante de heras.
Habena, que é chicote.
E há uma palavra rara
Em milenar repouso
No teu peito duro.
Convém lembrá-la, Túlio.
Do amor é que te falo.

Acorda a tua palavra.
Usa o chicote
Antes que eu me faça escura.

Em: “Júbilo, memória, noviciado da paixão” (1974)

T. S. Eliot & Black Elk
(Lori Lorion: pintora norte-americana)

Referência:

HILST, Hilda. Árias pequenas. Para bandolim - XIII. In: __________. Uma superfície de gelo ancorada no riso: antologia. Seleção, organização e apresentação de Luisa Destri. São Paulo, SP: Globo, 2012. p. 66

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Charles Bukowski - Dostoiévski

A experiência que Bukowski usufruiu das leituras das obras de Dostoiévski correm em linha com o seu modo de vida dissoluto, da qual obteve alguma distância pelo sentido humanístico dos enredos criados pelo autor russo, plasmados pela filosofia, pelo rigorismo moral e pela religião.

O ambiente escuro de suas histórias, muito mais mental do que propriamente ambiental – afinal, obnubilados são os caracteres psicológicos dos personagens criados por Fiódor –, também influenciou outro grande poeta norte-americano, nomeadamente Allen Ginsberg, que, nestes versos, rememora as premonições que lhe assaltaram quando criança, ao tomar conhecimento do enredo de “Os Possessos”.

J.A.R. – H.C.

Charles Bukowski
(1920-1994)

Dostoevsky

against the wall, the firing squad ready.
then he got a reprieve.
suppose they had shot Dostoevsky?
before he wrote all that?
I suppose it wouldn’t have
mattered,
not directly.
there are billions of people who have
never read him and never
will.
but as a young man I know that he
got me through the factories,
past the whores,
lifted me high through the night
and put me down
in a better
place.
even while in the bar
drinking with the other
derelicts,
I was glad they gave Dostoevsky a
reprieve,
it gave me one,
allowed me to look directly at those
rancid faces
in my world,
death pointing its finger,
I held fast,
an immaculate drunk
sharing the stinking dark with
my
brothers.

Um derradeiro indulto salva Dostoiévski
do pelotão de fuzilamento
(Ralph Bruce: ilustrador britânico)

Dostoiévski

contra o muro, o pelotão de fuzilamento a postos.
logo após concederam-lhe um indulto.
especulemos que houvessem disparado em Dostoiévski,
antes que redigisse todas as suas obras.
suponho que não teria
importância,
pelo menos não diretamente.
há bilhões de pessoas que
nunca o leram e que nunca
o lerão.
mas quando eu era jovem sei que
conduziu-me por entre as fábricas,
para além das putas,
ergueu-me às alturas através da noite,
colocando-me
num lugar
melhor.
mesmo enquanto no bar estava,
a beber com outros
derrelitos,
felicitava-me por terem concedido um indulto
a Dostoiévski,
o qual legou-me um,
permitindo-me olhar diretamente para esses
rostos râncidos
em meu mundo,
a morte apontando o seu dedo.
mantive-me firme,
um bêbado imaculado
compartindo a escuridão fétida com
meus
irmãos.

Referência:

BUKOWSKI, Charles. Dostoevsky. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 76-77.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Edmund Wilson - Sobre a Literatura

Neste excerto de um ensaio intitulado “New York”, Edmund Wilson metaforiza a nossa necessidade por literatura como o efeito de se contrair uma doença e o corpo arregimentar as suas forças para combatê-la, lançando mão dos leucócitos com o objetivo de expulsar ou neutralizar as bactérias nocivas que causam a inflamação.

Wilson, um ensaísta fantástico – é dele a mais singular narrativa sobre o marxismo de que se tem notícia, vale dizer, “Rumo à Estação Finlândia” (1940) –, fez-me lembrar um outro escritor e ensaísta, o inglês Aldous Huxlley, que, num ensaio também inusitado – “Os sermões dos gatos” –, sustenta que conheceríamos melhor o comportamento afetivo e sexual dos humanos se observássemos com atenção o dos felinos.

J.A.R. – H.C.

Edmund Wilson
(1895-1972)

Sobre a Literatura

A literatura é apenas o resultado de nossas brutais colisões com a realidade, cujas repercussões, depois que nos recolhemos ao abrigo de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar, harmonizar, colocar numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento que se reestrutura depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado por elas – tomam-se meras cores e formas que podem tranquilizar e divertir a placidez de outras mentes ou que, no calor das circunstâncias ou atos, podem proporcionar aquele estado de distanciamento reflexivo – pois até mesmo o mais alto nível de excitação da visão imaginadora é um estado de reflexão e distanciamento. – A literatura é um longo processo de neutralização destes choques, abrandando o grosseiro e o bárbaro, a traição, o assassinato, o amor não correspondido (as anomalias, tanto quanto os crimes, têm de ser incluídas) – as irrupções constantes, impossíveis de prevenir, de nossa natureza bárbara e os acidentes dos desajustes internos de nossa situação enquanto parte do universo – na arte, lhes emprestamos a lógica de nossa razão e a harmonia de nossa imaginação – razão e imaginação, como leucócitos acumulando-se no local em que a Infecção, no organismo físico, aconteceu, acorrem imediatamente ao local da ruptura e, ingerindo os elementos estranhos, são expelidas sob a forma de arte – assim é que podemos rir ou chorar desses desastres, aliviando, num caso, nossa inteligência preocupada e, no outro, nossas emoções obstruídas (por meio do processo estético, seja lá o que ele for), e desse modo a ferida sara. – Assim, apenas as obras de arte – que, como os fagócitos, realmente ingeriram as bactérias nocivas, a causa da inflamação, da perturbação do equilíbrio do sistema – são importantes e valiosas; tem de haver um conflito com bactérias realmente nocivas, as inimigas do organismo que constantemente o atacam. – Em si, a obra de arte produzida, a qual, de certo modo, como o glóbulo branco, está morta, nunca pode, sozinha – ou seja, pelo simples ato de ser contemplada –, dar início à inflamação que evoca os leucócitos vivos. – É só quando reinfecciona o leitor – no caso da literatura, com uma forma mais branda da infecção – que a obra de arte pode gerar novas obras de arte; o intelecto intrigado e as emoções desconcertadas são causados pela obra de arte, e também, como a obra de arte é apenas humana, como o é o leucócito – ou seja, é um agente perfeito que tenta realizar um objetivo – ela exibe em sua própria forma e textura as anomalias, tragédias e vícios que são inerentes a todas as partes do organismo (o grande organismo whiteheadiano do qual as obras de arte não passam de partes, assim como os seres que as produzem). Se estas anomalias, etc., são sentidas a fundo – isto é, se o crítico, já infectado do sarampo, da difteria, da tuberculose ou da sífilis do desajustamento e do sofrimento, é posteriormente infectado por obras de arte (às quais, talvez ele prefira limitar-se, ao invés de correr os riscos da infecção da vida em si, mais séria, e, para ele, talvez fatal) – ele próprio pode vir a produzir novas obras de arte. – A analogia, naturalmente não se sustenta em todos os pontos, e não se deve tentar levá-la às raias do absurdo.

O Dramaturgo
(Brigit Ganley: pintora irlandesa)

Referência:

WILSON, Edmund. 1926-1930: New York (excerpt). Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Os anos 20: extraído dos cadernos e diários. Organização e introdução de Leon Edel. Seleção de Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1987. p. 286-287.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Carlos Drummond de Andrade - Campo de Flores

Um amor crepuscular tomou conta do poeta. E por ser amor, como diria o compositor Djavan, “invade e fim!”. Um amor maduro que nem se sabe se foi uma dádiva divina ou se uma armadilha de Satã, pois, irrompendo tão tardiamente, veio tumultuar a necessária calma do tino já estabelecido, como um verme a desgastar as entranhas. Mas um amor obtido por merecimento, haja vista que decorrente de “um secreto investimento em formas improváveis”.

Trata-se de um amor devotado a converter o “sagrado terror em jubilação”. Poder-se-ia dizer, um amor que antepõe a destruição à criação, que é fonte de vida e nos põe sempre a morrer. Eros e Thanatos são os mitos pretéritos invocados pelo vate: “Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso / e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou”.

Récita do poema por Paulo Autran

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Campos de Flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Cena interior com um casal de velhos
comendo ao lado de uma janela
(Frans van Mieris, o mais velho: pintor holandês)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Campo de flores. In: __________. Claro enigma. Livro vira-vira 2. Rio de Janeiro, RJ: BestBolso, 2010. p. 49-50. (Seleção Saraiva vira-vira: 2 livros em 1; publicado em conjunto com ‘A rosa do povo’).

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Edward Field - Nova-iorquinos

Um poema interessante sobre o comportamento dos nova-iorquinos, que costumam fugir às regras das comuns expressões empregadas quotidianamente, nos relacionamentos e contatos informais entre as pessoas, especialmente nas grandes cidades, cujo trato, no mais das vezes, é meramente incidental.

Mas julgo que as observações do poeta, nos dias que correm, valem não só para os nova-iorquinos, como também para os moradores de cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro em especial, onde se percebe o estresse no rosto das pessoas, e muito pouco espaço para um diálogo, ainda que curto, para desanuviar a tensão imposta pela “marcha do mundo capitalista”.

J.A.R. – H.C.

Edward Field
(n. 1924)

New Yorkers

Everywhere else in the country, if someone asks,
How are you? You are required to answer,
like a phrase book, Fine, and you?

Only in New York can you say, Not so good, or even,
Rotten, and launch into your miseries and symptoms,
then yawn and look bored when they interrupt
to go into the usual endless detail about their own.

Nodding mechanically, you look at your watch.
Look, angel, I’ve got to run, I’m late for my… uh…
uh… analyst. But let’s definitely
get together soon.

In just as sincere a voice as yours,
they come back with, Definitely!
and both of you know what that means,
Never.

Tarde no Madison Square: 1910
(Paul Cornoyer: pintor norte-americano)

Nova-iorquinos

Em qualquer outro lugar do país, se alguém lhe pergunta,
“Como você está?”, você é levado a responder,
como num livro de expressões, “Bem, e você?”.

Só em Nova York você pode dizer, “Não tão bem”, ou mesmo,
“Péssimo”, e lançar-se a seus tormentos e sintomas, então bocejar
e parecer entediado quando lhe interrompem para entrar
nos detalhes, habituais e intermináveis, sobre os seus próprios males.

Assentindo mecanicamente, você olha para o relógio.
Veja, anjo, tenho que correr, pois estou atrasado para o meu...
uh... uh... analista. Mas, definitivamente, vamos
nos reunir em breve.

Numa voz tão sincera quanto a sua,
replicam-lhe com, “Definitivamente!”,
embora todos saibam o que isso significa:
“Nunca”.

Referência:

FIELD, Edward. New Yorkers. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 40.