Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 30 de abril de 2022

Helvécio Goulart - As Coisas

Pelo título homônimo, com sentido algo assemelhado, este poema fez-me recordar o soneto de Borges aqui postado: Goulart tem foco na realidade dos objetos frente à passagem do tempo, o quanto neles há de silenciosa presença humana, mesmo depois que os seus detentores hajam partido para outras margens.

 

São os objetos que guardam a memória dos entes queridos que se foram e, em alguns casos, a própria história familiar. Mas há aqueles que deles se desfazem exatamente por tal razão, sobretudo quando não benquisto o falecido ou quando se pretende dar voltas a um passado que preferem esquecer.

 

J.A.R. – H.C.

 

Helvécio Goulart

(n. 1935)

 

As Coisas

 

Observa os objetos:

de todos eles

emanam respostas ao efêmero.

 

Falam a estante, os livros,

o tapete vermelho, as cortinas translúcidas,

os vasos de cristal, o escuro piano,

os enfeites de metal,

as paredes de pedra.

 

Expressam-se todos em silêncio

a lembrança do tempo

que não cessa de rodar

suas pernas de mármore

e de ver a morte

através de cada coisa

com grandes olhos de veneno

e de fogo,

invisíveis,

abertos para sempre.

 

Natureza-morta com livro danificado,

conca, cifras musicais e frasco

(Ran Mohan: artista indiano)

 

Referência:

 

GOULART, Helvécio. As coisas. In: __________. Antologia poética. Goiânia, GO: Editora da UFG, 1995. p. 31. (Coleção ‘Vertentes’)

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Helena Coleman - À Medida Que o Dia Começa a Declinar

Poetisa, escritora e musicista canadense, Coleman recorre, neste soneto, a imagens como a de a de um dia que se desvanece no ocaso ou a de um mar que se atravessou e de onde já se vislumbra a margem de destino, comumente empregadas para metaforizar uma existência que se aproxima do fim.

 

Há receios diante desse Vale de Sombras e a falante passa a lidar, em seu espírito, com sentimentos ambivalentes de ternura e de dor. Mas é nesse ponto de maior negror, em que as sombras não se afastam, tampouco se aproximam, que a alma se sente em estado de potencial ventura para irromper num voo, em meio à luz superior de outras matinadas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Helena Coleman

(1860-1953)

 

As Day Begins to Wane

 

Encompassed by a thousand nameless fears,

I see life’s little day begin to wane,

And hear the well-loved voices call in vain

Across the narrowing margin of my years;

 

And as the Valley of the Shadow nears,

Such yearning tides of tenderness and pain

Sweep over me that I can scarce restrain

The gathering flood of ineffectual tears.

 

Yet there are moments when the shadows bring

No sense of parting or approaching right,

But, rather, all my soul seems broadening

Before the dawn of unimagined light –

As if within the heart a folded wing

Were making ready for a wider flight.

 

O Ocaso

(Thomas Moran: pintor anglo-americano)

 

À Medida Que o Dia Começa a Declinar

 

Rodeada por mil medos sem nome,

Vejo que o pequeno dia da vida começa a se desvanecer,

E escuto as bem-amadas vozes me chamando em vão

Através da margem cada vez mais estreita de meus anos;

 

E à medida que se aproxima o Vale das Sombras,

Tais marés anelantes de ternura e dor

Me invadem de tal forma que mal posso conter

A torrente de baldadas lágrimas que se acumulam.

 

No entanto, há momentos em que as sombras não trazem

Qualquer sensação precisa de afastamento ou proximidade,

Mas, pelo contrário, toda a minh’alma parece se expandir

Antes do alvorecer de uma luz inimaginável –

Como se, dentro do coração, uma asa arqueada

Estivesse a se preparar para um voo mais amplo.

 

Referência:

 

COLEMAN, Helena (1860-1953). As day begins to wane. In: Garvin, John William (Ed.). Canadian poets. Toronto, CA: McClelland, Goodchild & Stewart Publishers, 1916. p. 212.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

John Clare - Eu sou

Por trás dos tormentos mentais e dos infortúnios do poeta, a mensagem subjacente a estes versos é a de que ninguém o compreende ou com ele se importa, daí a sensação de isolamento e de perda de sentido para a vida, logo vislumbrada em seu ponto terminal – num túmulo, “com a grama por baixo e o céu por cima”.

 

Abatimento, desapontamento e solidão configuram o pior dos “mundos possíveis” para quem se exaure em suas próprias aflições, ou melhor, exprime-se por meio de uma diatribe de autocomiseração: preso a um vórtice de abstrações, o ente lírico alheia-se mais e mais na distância, infundindo-nos a quase convicção de que não haverá reversão aos seus passos nessa trilha.

 

J.A.R. – H.C.

 

John Clare

(1793-1864)

Retrato de William Hilton

 

I am

 

I am: yet what I am none cares or knows,

My friends forsake me like a memory lost,

I am the self – consume r of my woes –

They rise and vanish in oblivous host,

Like shadows in love’s frenzied stifled throes:

And yet I am, and live – like vapours tost

 

In to the nothingness of scom and noise,

Into the living sea of waking dreams,

Where there is neither sense oflife or joys,

But the vast shipwreck of my life’s esteems;

Even the dearest, that I love the best,

Are strange – nay, rather stranger than the rest.

 

I long for scenes, where man hath never trod,

A place where woman never smiled or wept –

There to abide with my Creator, God,

And sleep as I in childhood sweetly slept,

Untroubling, and untroubled where I lie,

The grass below – above the vaulted sky.

 

A Pregação de São João Batista

(Abraham Bloemaert: pintor holandês)

 

Eu sou

 

Eu sou: o que agora sou ninguém quer saber;

Amigos me abandonaram, fútil haver;

Eu mesmo consumo minhas paixões feéricas –

Elas nascem e se esfumam em chão estéril,

Abafados espasmos de amor delirante –:

Mas sou, vivo – como vapores tremulantes

 

Em meio a um nada ruidoso e escamescente,

Em meio a um vivo mar de sonhos vigilantes,

Onde não há sentido de vida ou alegrias,

Só ’o cru naufrágio de minhas aporias;

E a mais desejada, que me faz e desfaz,

É-me estranha – ou pior, mais estranha que as mais.

 

Aspiro a lugares por homem não pisados,

Cenário não visto por mulher, nem pranteado –

Para lá conviver com meu Criador, Deus,

Dormir como na infância, leve, junto aos meus,

Desanuviado, e confortado onde me encontro,

A grama por baixo – por cima o céu redondo.

 

Referência:

 

CLARE, John. I am / Eu sou. Tradução de Luís Augusto Fischer. In: FISCHER, Luís Augusto. Alguns poemas do britânico John Clare. Organon. Revista do Instituto de Letras da UFRGS, Porto Alegre, v. 7, n. 20, 1993. Em inglês: p. 90; em português: p. 91. Disponível neste endereço. Acesso em: 22 jan. 2021.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Lêdo Ivo - O Homem Vivo

O ente lírico contempla a vida a partir de um ponto, presume-se, já avançado em seus dias, confrontando com destemor a morte e a realidade de seu ser transitório: assim ficam mais vívidos os traços de alguém que passa pela existência metabolizando-a como se uma espécie de sonho fosse, em cujos zéfiros faz pairar a sua altaneira pandorga.

 

As imagens a que o poeta recorre sintetizam o que se toma como o ciclo vital e o seu caráter efêmero a se exaurir no precário, perante o qual o falante renuncia a apegar-se: é a tomada de consciência muito à maneira oriental, a aspiração por uma forma de se expressar, desde já, em consonância com a premência imposta pelo fluxo irreversível do tempo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lêdo Ivo

(1924-2012)

 

O Homem Vivo

 

Felicito-me a mim mesmo por ser transitório.

Sempre tive medo da eternidade,

esse grande cão obscuro que me farejava as pernas

e me seguia sem morder.

 

Aguardando a morte como quem espera uma carta

trazida por um estafeta divino,

nada tenho para as festas do dia seguinte.

Toda a minha vida foi este esperar sem fim.

 

Entre o sono e o mar total, na paisagem celeste,

soltei minha pandorga.

Vi o farol da minha terra, e minha infância inteira

estirada em cem léguas diante do mar.

 

Nada quero de ti, Morte, nem mesmo

as recompensas de outro lado

com que amenizas o fim dos que muito sofreram.

Dá-me apenas o sono inteiriço dos que morrem

e são levados à terra dos pés juntos.

 

Que a vida seja um sonho, e os sonhos sejam sonhos

do sonho desdobrado dos que vivem.

Efêmero, bate no tempo um coração solitário

e a sombra da terra é pouca para escondê-lo.

 

Em: “Linguagem” (1950-1951)

 

Os homens existem pelo bem dos demais.

Ensina-os então ou...

(Jacob Lawrence: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

IVO, Lêdo. O homem vivo. In: __________. Central poética: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar; Brasília, DF: INL, 1976. p. 98. (‘Manancial’; v. 48)

terça-feira, 26 de abril de 2022

Alfredo Fressia - Diário de Caça

Neste sugestivo poema, o vate uruguaio relata uma espécie de excursão noturna do ente lírico pelas terras da Babilônia, ou melhor, pelos seus rios, jardins suspensos, nas imediações do paraíso edênico, em companhia de marinheiros, no figurado intento de resgatar algo que lhe excita a memória no âmbito de um imaginário náutico.

 

O poema bem poderia ser interpretado como imagens que acorreram em um sonho ao falante, diante do feitio de sua sentença de abertura – “Durou toda a noite.” –, tanto mais em função das alusões ao lendário clássico, em particular ao centauro a lhe afiar dentes e unhas, denotando, desse modo, que os instintos passaram a dominar a razão, permitindo o afloramento de sôfregos impulsos. O que diria Freud?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Alfredo Fressia

(n. 1948)

 

Diario de Caza

 

Duró toda la noche. Navegamos

más allá de las columnas, lejos los bosques

donde ríe una diosa y las estrellas

sin memoria apuntaban al lunario. Yo les robo los pétalos

a las plantas carnívoras del jardín de las delicias.

Acecho sobre la escotilla, enhebro collares vegetales

para los tripulantes de efímeras gargantas. Mis dedos ágiles

siguen la línea sinuosa en el elzevir.

Estos son los ríos de Babilonia, se suben

en busca del olvido y vuelven siempre

soberbios como un planeta. A veces me detengo

en los jardines suspendidos del imperio, y ejercito

la muerte en mis últimos torneos de cetrería.

El Centauro me afiló los dientes y las uñas, tengo

la avidez de trece lunas llenas, y del viaje sólo recuerdo

unas cartas de navegación hundidas, una cacería

de altura y el canto de los marineros.

 

En: “Eclipse” (2003)

 

O Centauro

(Michael Parkes: artista norte-americano)

 

Diário de Caça

 

Durou toda a noite. Navegamos

bem além das colunas, longe dos bosques

onde sorri uma deusa e as estrelas

sem memória apontavam para o lunário (1). Roubo-lhes

as pétalas

das plantas carnívoras no jardim das delícias.

Espreito por cima da escotilha, ensarto colares vegetais

para os tripulantes de efêmeras gargantas. Meus dedos ágeis

seguem a linha sinuosa no elzevir (2).

Estes são os rios da Babilônia: erguem-se

em busca do esquecimento e sempre regressam

soberbos como um planeta. Às vezes, detenho-me

nos jardins suspensos do império, e exercito

a morte em meus últimos torneios de falcoaria.

O Centauro afiou-me os dentes e as unhas, tenho

a avidez de treze luas cheias, e da viagem só me lembro

de algumas cartas de navegação submersas, de uma alta

caçada e do canto dos marinheiros.

 

Em: “Eclipse” (2003)

 

Notas:

 

(1). Lunário: calendário que registra o tempo em cada quarto de lua no ano, cobrindo, portanto, as fases do satélite em seu ciclo completo.

 

(2). Elzevir: um estilo de impressão, originariamente holandês, com traços fortes e serifas atarracadas, o que denota, no verso, a ideia de um tomo publicado com tais características.

 

Referência:

 

FRESSIA, Alfredo. Diario de caza. In: HALADYNA, Ronald (Ed.). Contemporary uruguayan poetry. A bilingual anthology: Spanish x English. Introduction, english translations, bibliographies and notes by the editor. Lewisburg, PA: Bucknell University Press, 2010. p. 216.