Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de julho de 2022

Gabriel Saldivia - Despovoado

Em três indagações que, por si próprias, já carregam as suas próprias moções, a saber, congruentes ao mesmo propósito de grafar em linhas o impacto da ausência dos que partiram para bem longe do torrão natal, o poeta venezuelano entorna a sua lírica memorial, para deplorar o tom esmaecido da aquarela que restou de um ledo passado, de uma idílica infância.

 

A percussão sonora de uma voz que enuncia o “despovoado e o ausente”, os rumores sobre os passos daqueles que longe se encontram são como lâminas a lacerar fundo o ânimo dos mais absortos, induzindo-os a lançar mão da palavra para revolver a lápide sob a qual o tempo se obstina em soterrar as crônicas de suas fainas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gabriel Saldivia

(n. 1956)

 

Despoblado

 

Qué escribir sino palabras

que arden en el sol,

sin verdor

sin caudalosas aguas

sin patios

para los saltos de la infancia

y el reposo de pájaros.

 

Qué escribir sino páginas de exilios

donde tiembla el pulso

y se escucha la voz de lo despoblado y ausente.

 

Qué escribir cuando las palabras son rumores

en los pasos lejanos de los hombres

que al azar de otros predios

para siempre partieron.

 

En: “Ceniza inicial” (1985-1990)

 

Fantasia Italiana

(José Manuel Ballester: pintor espanhol)

 

Despovoado

 

O que escrever senão palavras

que ardem ao sol,

sem verdor

sem caudalosas águas

sem pátios

para os saltos da infância

e o repouso de pássaros.

 

O que escrever senão páginas de exílios

onde freme o pulso

e se escuta a voz do despovoado e do ausente.

 

O que escrever quando as palavras são rumores

nos passos distantes dos homens

que, ao acaso, de outras herdades

para sempre partiram.

 

Em: “Cinza inicial” (1985-1990)

 

Referência:

 

SALDIVIA, Gabriel. Despoblado. In: __________. Antología poética. Caracas, VE: Fundarte, 2010. p. 11. (“Cuadernos de Difusión – Mención Poesía”; nº 290)

sábado, 30 de julho de 2022

Wisława Szymborska - Resenha de um poema não escrito

A voz lírica, neste poema, é a de um crítico que, em sua resenha, faz terra arrasada de um poema redigido por certa autora – Wisława Szymborska, por que não?! –, em razão de sua alegada superficialidade, raciocínios imprecisos e sentidos equivocados atribuídos à existência humana: para ele, diante de estimativas probabilísticas avançadas, quem acreditaria que “estejamos mesmo sós sob o sol, sob todos os sóis do universo”?

 

Nos versos do poema, como em muitos outros de Szymborska, sempre aquela verve irônica por trás do discurso poético (com efeito, distante de qualquer pretenso rigor científico), conduzindo o leitor pela mão até o relicário de suas ilações, neste caso, infensas à ideia de uma caminhada às estrelas com o objetivo de solução para dilemas humanos ou de participação espiritual na “mente cósmica”.

 

Os argumentos declinados no poema objeto de crítica – o qual, afinal, não se conhece – aparecem aqui entremeados na exposição do falante, a exemplo das lucubrações de Pascal sobre o homem (“média entre tudo e nada”, perdido num universo infinito e desencantado, cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma), mas que ao crítico parecem vetustas, haja vista que suscitadas em meados do século XVII –, além de outras incursões filosóficas que teriam um desarrazoado propósito moral.

 

J.A.R. – H.C.

 

Wisława Szymborska

(1923-2012) 

 

Recenzja z nienapisanego wiersza

 

W pierwszych słowach utworu

autorka stwierdza, że Ziemia jest mała,

niebo natomiast duże do przesady,

a gwiazd, cytuję: więcej w nim niż trzeba.

 

W opisie nieba czuć pewną bezradność,

autorka gubi się w strasznym przestworze,

uderza ją martwota wielu planet

i wkrótce w jej umyśle (dodajmy: nieścisłym)

zaczyna rodzić się pytanie,

czy aby jednak nie jesteśmy sami

pod słońcem, pod wszystkimi na świecie słońcami?

 

Na przekór rachunkowi prawdopodobieństwa!

I powszechnemu dzisiaj przekonaniu!

Wbrew niezbitym dowodom, które lada dzień

mogą wpaść w ludzkie ręce! Ach, poezja.

 

Tymczasem nasza wieszczka powraca na Ziemię,

planetę, która może toczy się bez świadków,

jedyną science fiction, na jaką stać kosmos.

Rozpacz Pascala (1623-1662, przyp. nasz)

wydaje się autorce nie mieć konkurencji

na żadnej Andromedzie ani Kasjopei.

Wyłączność wyolbrzymia i zobowiązuje,

wyłania się więc problem jak żyć et cetera,

albowiem “pustka tego za nas nie rozstrzygnie”.

“Mój Boże, woła człowiek do Samego Siebie,

ulituj się nade mną, oświeć mnie

 

Autorkę gnębi myśl o życiu trwonionym tak lekko,

jakby go było w zapasie bez dna.

O wojnach, które – jej przekornym zdaniem –

przegrywane są zawsze po obydwu stronach.

O “państwieniu się (sic!) ludzi nad ludźmi.

Przez utwór prześwituje intencja moralna.

Pod mniej naiwnym piórem rozbłysłaby może.

 

Niestety, cóż. Ta z gruntu ryzykowna teza

(czy aby jednak nie jesteśmy sami

pod słońcem, pod wszystkimi na świecie słońcami)

i rozwinięcie jej w niefrasobliwym stylu

(mieszanina wzniosłości z mową pospolitą)

sprawiają, że któż temu wiarę da?

Z pewnością nikt. No właśnie.

 

In: “Wielka Liczba” (1976)

 

Fantasia Espacial

(Composição de autoria desconhecida)

 

Resenha de um poema não escrito

 

Nas primeiras palavras do poema

a autora afirma que a Terra é pequena,

o céu, por sua vez, grande até o exagero

e há nele, cito: “mais estrelas do que o necessário”.

 

Na descrição do céu dá para sentir certa impotência,

a autora se perde na horrível imensidão,

assusta-a a ausência de vida em tantos planetas

e logo na sua mente (acrescentemos: não exata)

começa a surgir uma pergunta,

será que afinal não estamos sós

sob o sol, sob todos os sóis do universo?

 

A despeito da teoria das probabilidades!

E da convicção hoje universal!

Malgrado as provas irrefutáveis que em breve

podem cair em mãos humanas! Ah, poesia.

 

Enquanto isso nossa profetisa volta à Terra,

planeta que talvez “gire sem testemunhas”,

única “ficção científica que o cosmo pode se permitir”.

O desespero de Pascal (1623-1662, nota nossa)

parece à autora não ter rival

em nenhuma Andrômeda ou Cassiopeia.

A exclusividade é destaque e compromisso;

surge então o problema: como viver et cetera,

já que “o vazio não o resolverá para nós”.

“Meu Deus, clama o homem para Si Mesmo,

tem piedade de mim, me ilumina”…

 

Aflige à autora a ideia da vida desperdiçada à toa

como se dela houvesse uma fonte inesgotável.

E das guerras que – na sua opinião contestadora –

são sempre perdidas pelos dois lados.

E do homem que “autoritormenta” (sic!) o homem.

Na obra transparece uma intenção moral.

Fosse uma escrita menos ingênua talvez brilhasse mais.

 

Mas enfim. Essa tese em essência arriscada

(de que talvez estejamos mesmo sós

sob o sol, sob todos os sóis do universo)

e seu desenvolvimento num estilo ligeiro

(uma mistura de solenidade e fala comum)

levam à pergunta: quem é que vai acreditar?

Com certeza ninguém. Pois é.

 

Em: “Um Grande Número” (1976)

 

Referência:

 

SZYMBORSKA, Wisława. Recenzja z nienapisanego wiersza / Resenha de um poema não escrito. Tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski. In: __________. Para o meu coração num domingo. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien e Gabriel Borowski. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2020. Em polonês: p. 150-151; em português: p. 152-153.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Péricles Eugênio da Silva Ramos - Teoria

Contra um governo federal que se compraz em disseminar o ódio, trago ao leitor um poema que, intitulado “Teoria”, bem poderia se interpretar por uma “Utopia” ou um “Programa” para propagação do amor: em um país que retornou ao “mapa da fome”, por que perder-se em vão o que se recolhe aos celeiros, sem destinação aos mercados?! Como afirma o Papa Francisco, em sua encíclica “Fratelli Tutti”, “Todos Irmãos”, a fome é um delito, porquanto a alimentação é um direito inalienável!

 

À “rosa impura” contrapõe-se o sonho de uma humanidade não centrada no egoísmo, no individualismo doentio, senão devotada ao convívio fraterno, à coexistência pacífica em um cenário universal: nenhum nominalismo em direitos que se firmam em cartas magnas sem maiores consequências, mas a realidade fática confrontada para fazer valer tais direitos!

 

J.A.R. – H.C.

 

Péricles E. S. Ramos

(1919-1992)

 

Teoria

 

Que todas

se humanizem,

ruas e cidades,

terras e nações;

que sejam como homens

de auroras e de nuvens

e amor no coração:

 

não desse amor

de álcool à chama;

não desse amor

às marés do instante,

à rosa impura

da violência e do outro;

 

mas do amor que é trigo

nas planícies, nos celeiros,

 

e se perde em vão.

 

Rosa Sangrenta

(Nicolas Raymond: artista norte-americano)

 

Referência:

 

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Teoria. In: __________. Poesia quase completa. Rio de Janeiro, GB: Livraria José Olympio Editora, 1972. p. 139-140.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Alfredo Jaramillo Andrade - Catedrais Oníricas

Desponta por demais relevante o poder de sugestão deste poema para que que a ele se dê uma interpretação unívoca – quero dizer, pelo menos assim me parece –, muito embora a atmosfera onírica do título persista incólume ao longo de suas linhas, na “liberdade do voo” que se pretende empreender por meio de um impulso às alturas, ou por outra, de um cogitado exílio.

 

A impressão que se tem é que tudo não passaria de uma dinâmica semelhante a que levam a efeito grandes nomes da pintura surrealista, ao transformarem em imagens sobre a tela algumas cenas de sonho que não se pretendem firmadas na realidade, mas no lado mais delirante ou fantasioso da mente?! Devaneios, quimeras, utopias: catedrais que planam na imaginação do poeta...

 

P.s.: “La Cigüeña de Papel” (“A Cegonha de Papelé título de um poemário, então inédito, lançado por Jaramillo, em 1996.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alfredo Jaramillo Andrade

(n. 1934)

 

Catedrales Oníricas

 

Al fondo del cristal y su arista secreta,

– punto muerto superior del canto y la palabra –,

la Cigüeña de Papel

en su doblez volcánico saturado de nieve,

nos sorprende, imprevistos, indefensos:

cosa leve, ...risueña, ...bio-forme;

recuperada angustia temporal;

invertebrada y encendida flama

de pronósticos:

 

¡Nos envanece!...

 

¡Los tüneles indiscretos de la pasión

amedrentan las catedrales hondas

del silencio!...

 

Al otro extremo de esta negra antigua

oscuridad sin alas ni memoria,

el reflejo sensual de la semilla,

su parcela equidistante, nos ofrece

la máxima expresión de convergencia.

 

La Cigüeña de Papel,

– burbuja sostenida

en eclosión de alturas –,

alimenta una curiosidad de soles extenuados.

Inquieta tus avances

crónicos. Desubica los cálices de oro.

¡Desarraiga y exilia, oniricamente y cruel

por intimar con ella y su espiral

de clorofila o yeso:

la libertad del vuelo!...

 

(Depuración del fuego / Primera dimensión)

 

Igreja Catedral

(Olga Ibadullayeva: artista ucraniana)

 

Catedrais Oníricas

 

Do fundo do vidro e sua aresta secreta,

– ponto morto superior do canto e da palavra –,

a Cegonha de Papel

em sua dobra vulcânica saturada de neve,

surpreende-nos, imprevistos, indefesos:

coisa leve, ...risonha, ...bio-forme;

recuperada angústia temporal;

invertebrada e ardente flama

de prognósticos:

 

– Envaidece-nos!...

 

Os túneis indiscretos da paixão

assombram as profundas catedrais

do silêncio!...

 

Do outro extremo desta negra e antiga

escuridão sem asas nem memória,

o reflexo sensual da semente,

sua parcela equidistante, oferece-nos

a máxima expressão de convergência.

 

A Cegonha de Papel,

– bolha sustentada

em eclosão de alturas –,

alimenta uma curiosidade de sóis extenuados.

Açula os teus avanços

crônicos. Desloca os cálices de ouro.

Desenraíza e exila, cruel e oniricamente,

por ter-se tornado íntimo dela e de sua espiral

de clorofila e gesso:

a liberdade do voo!...

 

(Depuração do fogo / Primeira dimensão)

 

Referência:

 

ANDRADE, Alfredo Jaramillo. Catedrales oníricas. In: __________. Metáforas y paradigmas: poesía. Loja, EC: Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamin Carriôn (Nucleo de Loja), 2006. p. 25-26.