Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 29 de fevereiro de 2020

João de Brito e Lima - Sobre o nada das vaidades humanas

O supracitado poeta (1671-1747), nascido na Bahia, replica em forma poética ponderações de ordem similar às apresentadas no Eclesiastes – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” –, a ratificarem a fragilidade do existir humano, mesmo a despeito de toda “glória, fortuna ou honra”.

Vivemos de desenganos: de algo a que aspiramos, passamos a outra mira, depois que alcançamos o alvo anterior. Com maior gravidade se nos apresenta a vida se, ao fim de toda a lida, não alcançamos aquilo a que tanto ansiamos, assombrando o espírito com o véu da experiência sem propósito.

J.A.R. – H.C.

Natureza morte com um crânio e
uma pena para escrever
(Pieter Claesz: pintor holandês)

Sobre o nada das vaidades humanas

Louco é quem da vaidade faz apreço,
Sendo a honra mundana um doce engano;
Adular a fortuna, indigno excesso,
Traz do caduco tempo o desengano:
Que é discreto e católico concesso (*)
Quem pondera no frágil ser humano
Que qual sombra no ar desvanecida
Passa a glória, a fortuna, a honra, a vida.

Que subsistência pode haver na vida
Se é por caduca, frágil e por breve
Exalação que passa despedida,
Lisonja que adular o mal se atreve?
Sombra à vista da luz desvanecida,
Dos gostos temporais engano leve;
Finalmente é da vida o ser humano
Exalação, lisonja, sombra, engano.

O bem e o mal
(Andrej Vystropov: pintor russo)

Elucidário:

Concesso – de comum acordo, com alguma afinidade, como se vê, com o verbete “consenso”.

Referência:

LIMA, João de Brito e. Sobre o nada das vaidades humanas. In: VARNHAGEN, F. A. de (Ed.). Florilégio da poesia brasileira. Tomo I. Lisboa, PT: Imprensa Nacional, 1850. p. 194-195.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Roy Campbell - Luís de Camões

Muitos aqui já são os poemas – a maior parte sob a forma de soneto, afinal, o molde para a lide poética a que Camões devotou-se à perfeição –, em homenagem ao vate maior lusitano, e não só entre autores que redigem seus textos no idioma português, como também em outras línguas.

Como exemplo, extasie-se o leitor com o belo poema abaixo, de autoria do escritor sul-africano de origem escocesa-irlandesa Roy Campbell, que encontrei na obra em referência: o autor se imagina em companhia de Camões, e sobre ele tece considerações empáticas, num cenário que muito lembra as regiões pantanosas do litoral africano.

J.A.R. – H.C.

Roy Campbell
(1901-1957)

Luís de Camões

Camões, alone, of all the lyric race,
Born in the black aurora of disaster,
Can look a common soldier in the face:
I find a comrade where I sought a master:
For daily, while the stinking crocodiles
Glide from the mangroves on the swampy shore,
He shares my awning on the dhow, he smiles,
And tells me that he lived it all before.
Through fire and shipwreck, pestilence and loss,
Led by the ignis fatuus (*) of duty
To a dog’s death – yet of his sorrows king –
He shouldered high his voluntary Cross,
Wrestled his hardships into forms of beauty,
And taught his gorgon destinies to sing.

Camões
(1524-1580)
(Retrato por Fernão Gomes
em cópia de Luís de Resende)

Luís de Camões

De toda a estirpe lírica, tão somente Camões,
Nascido na enegrecida alvorada do desastre,
Permite-se olhar de frente um ínfero soldado:
Não um mestre, senão um confrade encontro.
Pois, dia a dia, enquanto os fétidos crocodilos
Vogam pelos manguezais na costa pantanosa,
Ele compartilha meu toldo na nau e, sorrindo,
Confidencia-me que já vivera tudo isso antes.
Entre incêndios e naufrágios, pestes e perdas,
Pelo desígnio ilusório de servir, vocacionado
A uma morte de cão, rei de suas dores porém,
Levantou aos píncaros a sua cruz voluntária,
Apreendeu as privações em formas de beleza,
E ministrou à sua Górgona destinos a cantar.

Nota:

(*) “Ignis fatuus”, expressão latina, a rigor teria em “fogo fátuo” uma tradução mais literal, embora tenha preferido vertê-la ao português pelo seu significado.

Referência:

CAMPBELL, Roy. Luís de Camões. In: __________. The Collected Poems of Roy Campbell. 1st. publ. Lodon, EN: The Bodley Head, 1949. p. 159.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Boris Vian - Se os poetas fossem menos bestas

Vian – mesmo sendo também um poeta – formula provocações, sem receio das palavras que enceta, num hábil amálgama de talento e modéstia, de espirituosidade e autodepreciação, vertendo-as em direção ao leitor, ainda que melhor se direcionadas fossem a todos os poetas contra quem se insurge, para que pudessem manter seus nomes, por um dia que fosse, longe do olvido.

Perceba-se a dificuldade do tradutor – Ruy Proença – em verter ao português termos que, no francês, são recriações ou combinações de outras palavras, ou melhor, manipular neologismos capazes de fazer algum sentido no idioma destinatário: tal é árdua tarefa do “tradutor-traidor”!

J.A.R. – H.C.

Boris Vian
(1920-1959)

Si les poètes étaient moins bêtes

Si les poétes étaient moins bêtes
Et s’ils étaient moins paresseux
Ils rendraient tout le monde heureux
Pour pouvoir s’occuper en paix
De leurs souffrances littéraires
Ils construiraient des maisons jaunes
Avec des grands jardins devant
Et des arbres pleins de zoizeaux
De mirliflûtes et de lizeaux
Des mésongres et des feuvertes
Des plumuches, des picassiettes
Et des petits corbeaux tout rouges
Qui diraient la bonne aventure
Il y aurait de grands jets d’eau
Avec des lumières dedans
Il y aurait deux cents poissons
Depuis le croûsque au ramusson
De la libelle au pépamule
De l’orphie au rara curule
Et de l’avoile au canisson
Il y aurait de l’air tout neuf
Parfumé de l’odeur des feuilles
On mangerait quand on voudrait
Et l’on travaillerait sans hâte
A construire des escaliers
De formes encor jamais vues
Avec des bois veinés de mauve
Lisses comme elle sous les doigts
Mais les poètes sont très bêtes
Ils écrivent pour commencer
Au lieu de s’mettre à travailler
Et ça leur donne des remords
Qu’ils conservent jusqu’à la mort
Ravis d’avoir tellement souffert
On leur donne des grands discours
Et on les oublie en un jour
Mais s’ils étaient moins paresseux
On ne les oublierait qu’en deux.

Metamorfose de Narciso
(Salvador Dalí: pintor espanhol)

Se os poetas fossem menos bestas

Se os poetas fossem menos bestas
E se fossem menos preguiçosos
Fariam todo o mundo feliz
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Levantariam casas douradas
Cercadas por enormes jardins
E árvores cheias de colibris
De rustiflautas e de aqualises
De pardongros e de luziverdes
De plumuchas e de picapratos
E de pequenos corvos vermelhos
Que soubessem tirar nossa sorte
Haveria grandes chafarizes
Jorrando luzes de zil matizes
Não faltariam duzentos peixes
Do crocantusco ao empedraqueixo
Do trilibelo ao falamumula
Da suazmina ao rara quirila
E do guardavela ao canifeixe
Provaríamos de um ar fresquíssimo
Perfumado pelo odor das folhas
Comeríamos quando quiséssemos
E trabalharíamos sem pressa
A arquitetar escadarias
De formas nunca dantes sonhadas
Com tábuas raiadas de lilás
Lisas como só ela sob os dedos
Mas os poetas são muito bestas
Para começar, eles escrevem
Ao invés de pôr a mão na massa
Isso lhes traz profundos remorsos
Que levam consigo até a morte
Radiantes por sofrerem tanto
O mundo os aclama com requinte
E os esquece no dia seguinte
Se a preguiça não fosse mania
Teriam fama por mais um dia.

Referência:

VIAN, Boris. Si les poétes étaient moins bêtes / Se os poetas fossem menos bestas. Tradução de Ruy Proença. In: MENDONÇA, Vanderley (Ed.). Lira argenta: poesia em tradução. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Selo Demônio Negro, 2017. Em francês: p. 152 e 154; em português: p. 153 e 155.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Affonso Romano de Sant’Anna - Estou dizendo para esta lagartixa

Afora o homem, que se atormenta com a passagem do tempo, os outros animais, a flora e o reino mineral passam ao largo de preocupações sobre a impermanência das coisas do mundo, ou melhor, o fato de que um dia deixarão de existir – para dar vez a outros seres que a eles se assemelhem –, não se lhes assoma como tema de ruminação mental.

Planos para o futuro é o que o poeta espera ver no agir da formiga, da lagartixa; no existir dos objetos da sala, em seus haveres pessoais: mas eles não entram em pânico se algo lhes assalta. Viver segundo os planos da natureza é tudo de que dispõem para usufruírem o momento e serem felizes, cada um à sua maneira.

J.A.R. – H.C.

Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)

Estou dizendo para esta lagartixa

Estou dizendo para esta lagartixa
na parede do meu quarto
que o século vai acabar
mas ela não me olha
nem me entende.

Já tentei falar com a formiga
com a aranha
fui ao limoeiro da horta
e ninguém liga.

Olho os objetos da sala
minhas coisas no escritório (os óculos)
e no quarto (os sapatos).

Todos indiferentes.

Não estão em pânico
não devem nada
e não têm planos.

O tempo é mesmo
uma doença humana.

O Homem em Desespero
(Gustave Courbet: pintor francês)

Referência:

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Estou dizendo para esta lagartixa. In: __________. Vestígios. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 2005. p. 15.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Robert Graves - A Fria Teia

Segundo Graves, sem a linguagem o homem estaria inerme, indefeso frente à realidade, pois é a linguagem que – com sua teia, rede, trama, enredo, malha –, suscita a congregação dos humanos, tornando o enfrentamento das durezas da vida muitas vezes menos oprimente.

As crianças – por ainda não haverem dominado o idioma dos pais – seriam um exemplo imediato a ilustrar o problema de não se ter um meio linguístico mais apurado para se expressar o que se sente, física e mentalmente, ou, ainda, discorrer sobre ideias e teorias capazes de explicar os fenômenos do mundo.

Quem possui a linguagem é capaz de capturar a realidade: basta ver as dificuldades por que passa uma pessoa com um vocabulário mais limitado, para exteriorizar pensamentos ou sentimentos um pouco mais complexos. Veja-se, a propósito, a pobreza verbal do atual presidente de Pindorama: um fato inexplicável para quem foi parlamentar por quase 3 (três) décadas na Câmara de Deputados – uma Casa que, por precedência, tem a palavra como meio de expressão mais do que necessário!

J.A.R. – H.C.

Robert Graves
(1895-1985)

The Cool Web

Children are dumb to say how hot the day is,
How hot the scent is of the summer rose,
How dreadful the black wastes of evening sky,
How dreadful the tall soldiers drumming by.

But we have speech, to chill the angry day,
And speech, to dull the rose’s cruel scent.
We spell away the overhanging night,
We spell away the soldiers and the fright.

There’s a cool web of language winds us in,
Retreat from too much joy or too much fear:
We grow sea-green at last and coldly die
In brininess and volubility.

But if we let our tongues lose self-possession,
Throwing off language and its watery clasp
Before our death, instead of when death comes,
Facing the wide glare of the children’s day,
Facing the rose, the dark sky and the drums,
We shall go mad no doubt and die that way.

O Camarote
(Mary Cassatt: pintora norte-americana)

A Fria Teia

Mudos são os infantes para dizer quão quente está o dia,
Quão ardente é o perfume da rosa durante o estio,
Quão pavoroso os negros desertos do céu noturno,
Quão temíveis os enormes soldados a soar tambores.

Mas nós temos a fala, para refrescar o dia abrasador,
A fala, para tornar mais tênue a cruel fragrância da rosa,
Soletrando-a, afastamos a noite que se projeta hostil,
Soletrando-os, distanciamos os soldados e o temor.

Há uma fria teia de linguagem a nos circundar,
Resguardando-nos do excesso de alegria ou de medo:
Assumimos por fim um pálido verde-azulado e finamos,
Fria, salobra e voluvelmente.

Mas se deixarmos nossas línguas perderem seu autodomínio,
Tal que se desfaçam a linguagem e o seu vínculo aquoso
Antes de nossa morte, em vez de quando a morte chegar,
Diante do intenso brilho do dia dos infantes,
Diante da rosa, do céu escuro e dos tambores,
Sem dúvida nos tornaremos loucos e assim morreremos.

Referência:

GRAVES, Robert. The cool web. In: KERSNOWSKI, Frank L. The early poetry of Robert Graves: the goddess beckons. 1st. ed. Austin, TX: University of Texas Press, 2002. p. 157.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

T. S. Eliot - Manhã à Janela

Em homenagem às domésticas, que há poucas semanas foram supliciadas pela língua malévola do Ministro da Economia de Pindorama – afinal, em sua visão elitista, não têm elas o direito, nalgum dia, de pôr os pés na Disneylândia –, ofereço em réplica um poema de Eliot, no qual sobressai a força imagética da penúria, condensada nas “úmidas almas das domésticas”.

A limpeza das louças de café nas cozinhas adaptadas em porões, as saias enlameadas pelo ir e vir num pavimento destratado, a mirada através dos portões das áreas de serviço, tudo se arroja ao estado de uma vida quase sem luz no fim do túnel, num “sorriso sem destino”. Será mesmo um desígnio sem volta?

J.A.R. – H.C.

T. S. Eliot
(1888-1965)

Morning at the Window

They are rattling breakfast plates in basement kitchens,
And along the trampled edges of the street
I am aware of the damp souls of housemaids
Sprouting despondently at area gates.

The brown waves of fog toss up to me
Twisted faces from the bottom of the street,
And tear from a passer-by with muddy skirts
An aimless smile that hovers in the air
And vanishes along the level of the roofs.

Natureza-morta com torta de peru
(Pieter Claesz: pintor holandês)

Manhã à Janela

Há um tinir de louças de café
Nas cozinhas que os porões abrigam,
E ao longo das bordas pisoteadas da rua
Penso nas almas úmidas das domésticas
Brotando melancólicas nos portões das áreas de serviço.

As ondas castanhas da neblina me arremessam
Retorcidas faces do fundo da rua,
E arrancam de uma passante com saias enlameadas
Um sorriso sem destino que no ar vacila
E se dissipa rente ao nível dos telhados.

Referências:

Em Inglês

ELIOT, T. S. Morning at the window. In: __________. Poems: 1909-1925. London, EN: Faber & Faber Limited, nov. 1934. p. 37. (‘The Faber Library’; n. 4)

Em Português

ELIOT, T. S. Manhã à janela. Tradução de Ivan Junqueira. In: __________. Poesia: texto integral. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Apresentação de Affonso Romano de Sant’Anna. Edição especial. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2014. p. 89. (‘Saraiva de Bolso’)

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Emílio Moura - Ode ao primeiro poeta

Especulando, julgo que Emílio estivesse imaginando o poeta na noite dos tempos, ali quando tudo se criou pelas mãos do Eterno Espírito: saindo o homem de seu primeiro refúgio – as cavernas –, deu com as maravilhas que a natureza abarca e, para preservar mais nitidamente as imagens contempladas, avançou até as paragens do simbolismo, da linguagem e das palavras.

Mas Emílio não fala em cavernas, senão em montanhas, mas o efeito é mais ou menos o mesmo: somente o poeta foi capaz de dar conta de todo o deslumbramento diante das coisas do mundo – e como estas, a seu ver, não fossem suficientes, intentou formular em palavras outras tantas esferas que se propagassem ao infinito – como os garridos efeitos engendrados por um caleidoscópio.

J.A.R. – H.C.

Emílio Moura
(1902-1971)

Ode ao primeiro poeta

– “Comme le monde était jeune, et que le mort était loin!”
Georges Chennevière


Quando os homens desceram, um dia, dos montes, e se
detiveram trêmulos,
diante da planície imensa,
eu te vi erguendo a tua voz forte, límpida e viva.
Eras jovem e tinhas a alegria de quem está descobrindo
o mundo.

Foi a tua palavra que modelou a primeira paisagem, deu
ritmo aos ventos e imaginou a beleza ingênua dos
primeiros e únicos símbolos que se perpetuaram.

Eras criatura e criador.

Estavas no gesto maravilhado que armava as primeiras
tendas e na mão indecisa que traçava o desenho
mágico dos caminhos que se improvisavam;
na imagem da vida em que se embebeu o primeiro
surto livre do espírito;

estavas em ti mesmo e fora de ti,
quando os homens desceram, um dia, dos montes e se
detiveram, trêmulos,
diante da planície imensa...

Bom dia, senhor Gauguin
(Paul Gauguin: pintor francês)

Referência:

MOURA, Emílio. Ode ao primeiro poeta. In: __________. 50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro, GB: Ministério da Educação e Cultura, 1961. p. 3-4. (‘Os cadernos de cultura’; v. 126)

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Margaret Atwood - Olhando-me num Espelho

A poetisa se pôs a mirar-se no espelho e contemplou um mundo criado ao final de 7 (sete) anos de um sono profundo, em significativa mutação que lhe alterou as características corporais: sua pele não é mais macia e pálida porque o sol e o frio a converteram em opaca e escurecida, e as mãos tornaram-se rígidas pelo presumível trabalho levado a efeito.

A dúvida da autora sobre o que se passa revela uma atitude de apreensão com as mudanças promovidas pela natureza, ou talvez melhor, pela translação de um modo de vida inglês para outro emergente, como o do Canadá – onde Atwood nasceu. E mais: frente ao espelho não há subjetividade que possa ser acobertada – ou bem ela se manifesta inteira para reforçar nossa lembrança, ou bem se deixa descortinar, plenamente, aos nossos olhos desatentos.

J.A.R. – H.C.

Margaret Atwood
(n. 1939)

Looking in a Mirror

It was as if I woke
after a sleep of seven years

to find stiff lace, religious
black rotted
off by earth and the strong waters

and instead my skin thickened
with bark and the white hairs of roots

My heirloom face I brought
with me a crushed eggshell
among other debris:
the china plate shattered
on the forest road, the shawl
from India decayed, pieces of letters

and the sun here had stained
me its barbarous colour

Hands grown stiff, the fingers
brittle as twigs
eyes bewildered after
seven years, and almost
blind / buds, which can see
only the wind

the mouth cracking
open like a rock in fire
trying to say

What is this

(you find only
the shape you already are
but what
if you have forgotten that
or discover you
have never known)

Velha frente ao espelho
(Bernardo Strozzi: pintor italiano)

Olhando-me num Espelho

Foi como se eu acordasse
depois de um sono de sete anos

deparando-me com um firme rendado,
de um negro austero,
degradado pela terra e por ravinas

e, de outra parte, minha pele houvesse se tornado áspera
com o córtex e os filamentos brancos das raízes

Meu rosto herdado trouxera
comigo uma casca de ovo esmagada
entre outros detritos:
o prato de porcelana quebrada
na vereda do bosque, o deteriorado
xale indiano, fragmentos de cartas

e o sol daqui me infundira
a sua cor bárbara

Rígidas ficaram-me as mãos, os
dedos quebradiços como ramos
e perplexos os olhos depois de
sete anos, os quais, quase
cegos / rebentos, agora só são capazes
de ver o vento

a boca que se abre
e crepita como uma rocha sob o fogo
tentando dizer

O que é isso

(apenas encontras
a forma que já és,
mas que
já te esqueces em que consiste
ou descobres que
jamais a conheceras)

Referência:

ATWOOD, Margaret. Looking in a mirror. In: __________. The journals of Susanna Moodie: poems by Margaret Atwood. Toronto, CA: Oxford University Press, 1970. p. 24-25.