O ente lírico, muito bem aparatado em seu traje típico de executivo, “feito sardinha em lata”, vê-se como um “cavador” no mundo da burocracia e dos interesses corporativos, marinheiro a singrar o mar ondulante do dinheiro, quase sem ensejos para expor-se a brisas descortinadoras de outras possibilidades, germinadoras de horizontes onde fulgure o sinal de uma estrela cadente, “brasa do pensamento transfigurada em quimera”.
Assumindo a forma de “cronópio” – a julgar pelas imaginosas descrições de Cortázar, lídimo representante da espécie humana antissocial ou, por outra, daqueles um tanto afastados da vida cotidiana, a exemplo dos poetas –, aspira o falante pelo universo da poesia a jorrar como um arco-íris difuso do firmamento, para arejar a vida desse “jumento” tão preso à terra, ou melhor, fazer-lhe pulsar o coração, despertando-lhe insuspeitadas emoções – mesmo que, a distância e sob a lente do periscópio soerguido à alma, a estrela vislumbrada possa parecer uma “pedra fria, suspensa no espaço, entre milhões de solidões”.
J.A.R. – H.C.
Eduardo Alves da Costa
(n. 1936)
Uma estrela, vista através de
periscópio
Aqui estou, de gravata,
passadinho a ferro,
feito sardinha em lata
ao molho de burocrata.
Sem horizonte nem brisa,
enforcado na camisa,
olhar perdido, estupor.
Um poeta-cavador,
metido fundo na lata
do desamor-bolor.
Soergo meu periscópio
que, da alma, espia o mundo;
cronópio e marinheiro,
varo as ondas do dinheiro,
singro o mar da servidão.
Mas resisto no que me sinto:
homem atento, jumento
de pés cravados no chão;
à espera do momento
em que a brasa do pensamento
se transfigure em quimera
e fulgure no firmamento.
Uma estrela.
Mas, o que é uma estrela?
Pura emoção de quem,
ao vê-la, sente que pulsa
o coração? Ou pedra fria,
suspensa no espaço,
entre milhões de solidões?
Cadente que sou, perdido,
na vastidão espantosa
do marasmo nacional,
vejo na estrela um sinal:
um gesto de Deus no céu
– como quem tira do chapéu
um arco-íris noturno.
Periscópio
(Galen Cheney: pintora norte-americana)
Referência:
COSTA, Eduardo Alves da. Uma estrela,
vista através de periscópio. In: __________. No caminho, com Maiakóvski.
1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1988. p. 123-124.
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