Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Denise Levertov - Para o Ano Novo, 1981

A esperança apenas se multiplicará se for distribuída para além dos grupos de que tomamos parte, e, ainda que você, dela, só tenha um pequeno grão, poderá reparti-lo com alguém e, assim, fazer avançar esse necessário estado de espírito, capaz de sobrepor mundos ao mundo.

Caso você teime em manter o seu grão de esperança íntegro, diz-nos Levertov, muito provavelmente verá que ele minguará em pouco tempo. Mas esse grão, parte genuína da graça, se dividido, crescerá em beleza, inundando de possibilidades o espaço humano – como num jardim em um quadro de Van Gogh.

J.A.R. – H.C.

Denise Levertov
(1923-1997)

For the New Year, 1981

I have a small grain of hope –
one small crystal that gleams
clear colors out of transparency.

I need more.

I break off a fragment
to send you.

Please take
this grain of a grain of hope
so that mine won’t shrink.

Please share your fragment
so that yours will grow.

Only so, by division,
will hope increase,

like a clump of irises, which will cease to flower
unless you distribute
the clustered roots, unlikely source –
clumsy and earth-covered –
of grace.

A Cabra
(Mikalojus K. Čiurlionis: pintor lituano)

Para o Ano Novo, 1981

Tenho um pequeno grão de esperança –
um pequeno cristal que brilha
em cores claras por efeito da transparência.

Preciso de mais.

Destaco um fragmento
para te enviar.

Por favor, toma
este grão de um grão de esperança
para que a minha não se reduza.

Compartilha o teu fragmento
para que a tua cresça.

Só assim, por divisão,
a esperança aumentará,

como um punhado de lírios que deixará de florescer,
a menos que distribuas
as raízes agrupadas, fonte implausível –
singela e coberta de terra –
da graça.

Referência:

LEVERTOV, Denise. The acolyte. In: __________. Poems: 1972-1982. New York, NY: New Directions, 2001. p. 257.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Wendy Cope - 30 de Dezembro

O Natal já se foi, levando atrás de si os hóspedes, depois de dias permeados por uma azáfama sem par – muito trabalho para poucas horas de desfrute –, e, por fim, o ano chega aos seus derradeiros dias, quando então a poetisa pode usufruir a paz num presumível parque devotado ao descanso e à contemplação da natureza.

E ela sonha com um Natal que não seja exatamente a barafunda que é, mas bem mais calmo, com a tranquilidade que veio a usufruir uma semana à frente, sem o Papai-Noel singrando os ares sustentado por renas, mas com a visão dos cisnes voando até o ponto de aterrissagem que lhes está destinado.

J.A.R. – H.C.

Wendy Cope
(n. 1945)

30th December

At first I’m startled by the sound of bicycles
Above my head.  And then I see them, two swans
Flying in to their runway behind the reeds.

The bridge is slippery, the grass so sodden
That water seeps into my shoes. But now
The sun has come out and everything is calm
And beautiful as the end of a hangover.

Christmas was a muddle
Of turkey bones and muted quarrelling.

The visitors have left.
Solitary walkers smile and tell each other
That the day is wonderful.

If only this could be Christmas now –
These shining meadows,
The hum of huge wings in the sky.

Cisnes ao pôr do sol de inverno
(Ruslana Golub: pintora ucraniana)

30 de Dezembro

A princípio, surpreende-me o som das bicicletas
Sobre a minha cabeça. E logo os vejo, dois cisnes
Voando até a raia deles, por trás dos juncos.

A ponte está resvaladiça e a grama tão encharcada
Que a água penetra em meus sapatos. Mas agora
O sol saiu e tudo está tranquilo
E belo como o fim de uma ressaca.

O Natal foi uma barafunda
de ossos de peru e contendas em surdina.

Os visitantes se foram.
Solitários caminhantes sorriem e dizem um ao outro
O quão maravilhoso é o dia.

Se isso somente agora pudesse ser o Natal –
Esses prados brilhantes,
O zumbido de enormes asas no céu.

Referência:

COPE, Wendy. 30th december. In: __________. If I don’t know. London, EN: Faber and Faber, 2001. p. 5.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Rafael Díaz Ycasa - Feliz ano, Equador

Ycasa deseja um ano muito feliz ao seu país de origem – o Equador –, mas não especificamente àqueles que estão com a mesa farta, bebendo e comendo à vontade, enquanto a maior parte da população passa o momento – como diríamos? – de modo mais frugal ou modesto (ou até mesmo dormindo).

A derradeira estrofe do poema orienta-se àqueles que, em princípio, não são rigorosamente felizes – prostitutas, engraxates, alcoólatras, famintos e por aí vai –, de modo a fazer irônico contraponto aos que se dedicam a regalos mais ostensivos, citados nas estrofes imediatamente anteriores.

J.A.R. – H.C.

Rafael Díaz Ycasa
(1925-2013)

Feliz año, Ecuador

No soy un hombre, soy
mil millones de brazos
para el que está durmiendo
para el que está penando
para el que está sencillamente triste
en esto año de camisas nuevas
de vestidos de fiesta y de botellas
y de infidelidades alegremente nuevas.

Orejas del nuevo año, canto para vosotras
ojos del año nuevo
piernas, brazos, caderas, órganos postizos
digo para vosotros: viva el año nuevo
suelte sus camaretas y sus luces
arrojen sus muletas el hígado y el bazo.

Canto y doy voces, bailo
con el pie más alegre
sobre el izquierdo lado verdadero.

Digo que viva el año, digo vivan
la sarna del muchacho de cinco años
los aterciopelados
bigotes del general en jefe del ejército
vivan los pagarés, las letras, los martillos
y los tributos nuevos
digo vivan
las tetas prisioneras de las madres.

Buen año. Para todos, año bueno:
prostitutas, domésticas, limpiabotas
meseras, concubinas, alcohólicos, hambrientos
ajusticiados, prisioneros, locos
a los que estáis penando
a los que estáis durmiendo
a los que estáis sencillamente tristes.

En: “Zona Prohibida” (1972)

A Festa do Rei dos Feijões
(Jacob Jordaens: pintor flamengo)

Feliz ano, Equador

Não sou um homem, sou
mil milhões de braços
para o que está dormindo,
para o que está sofrendo,
para o que está simplesmente triste
neste ano de camisas novas,
de vestidos de festa e de garrafas,
e de infidelidades alegremente novas.

Orelhas do ano novo, canto para vós,
olhos de ano novo,
pernas, braços, quadris, órgãos postiços,
digo para vós: viva o ano novo,
soltem suas filmadoras e suas luzes,
soltem suas muletas, o fígado e o baço.

Canto e dou vozes, danço
com o pé mais alegre,
sobre o esquerdo, lado verdadeiro.

Digo que viva o ano, digo vivam
a sarna do menino de cinco anos,
os aveludados
bigodes do general em chefe do exército,
vivam as duplicatas, as letras, os leilões
e os novos tributos,
digo vivam
as tetas aprisionadas das mães.

Bom ano. Para todos, ano bom:
prostitutas, domésticas, engraxates,
garçonetes, concubinas, alcoólatras, famintos,
justiçados, prisioneiros, loucos,
para vós que estais sofrendo,
para vós que estais dormindo,
para vós que estais simplesmente tristes.

Em: “Zona Proibida” (1972)

Referência:

Ycasa, Rafael Díaz. Feliz año, Ecuador. In: __________. Señas y contrasueñas: antología poética. Guayaquil, EC: Núcleo del Guayas de la Casa de la Cultura Ecuatoriana, 1978. p. 66-67. (Colección ‘Letras del Ecuador’; n. 78)

sábado, 28 de dezembro de 2019

Odylo Costa, Filho - Poema de Natal

Um poema bem diferente sobre o nascimento de Cristo, que teria ficado consternado com a situação dos animais à volta – talvez porque não sejam capazes de ter consciência de sua própria condição de carência intelectiva –, para só depois olhar em direção aos seus pais, pastores e reis.

Sua mãe mostrou-lhe uma flor remanescente num fio de capim sobre a manjedoura, levando-o a alegrar-se, pois que pôde perceber o quanto a vida é um ciclo contínuo, ao longo da qual temos “mortes” parciais e “ressurreições” que nos restabelecem à condição de combatentes na luta por sua continuidade.

J.A.R. – H.C.

Odylo Costa, Filho
(1914-1979)

Poema de Natal

Quando Jesus nasceu
no presépio pobre
viu primeiro os bichos.
Teve pena deles,
mas sorriu.
Só então é que olhou os homens
– Maria, José, os pastores e os reis –
e, esquecido de que era Deus,
como qualquer outra criança
chorou.
O ar da terra entrou aos socos nos
pequenos pulmões.
Ficou Homem.

Aflita, a Mãe curvou-se.
Na manjedoura um fio de capim
guardava ainda a flor.
E a Senhora mostrou a vida sempre
renascente ao menino,
que voltou a sorrir.

Em: “Notícias de Amor” (1977)

A Natividade
(Georges La Tour: pintor francês)

Referência:

COSTA FILHO, Odylo. Poema de Natal. In: __________. Poesia completa. Edição preparada por Virgílio Costa, com a colaboração do Instituto Odylo Costa, Filho. Rio de Janeiro, RJ: Aeroplano; Fundação Biblioteca Nacional, 2010. p. 211.


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Frei Elias Medeiros Ferro - Jesus Infante

Um poema em cinco quadras, redondo com as suas rimas alternadas, contando de forma bem convencional o enredo bíblico do nascimento de Cristo – muito ao feitio de quem não poderia fazê-lo de outro modo, pois se trata de um autor que pertenceu aos quadros da Igreja.

Aliás, quase toda a sua poesia, recolhida à obra em referência, mostra-se voltada a propósitos religiosos, ele que pertenceu à Ordem dos Carmelitas, em Salvador (BA), ainda que tenha nascido em Palmeira dos Índios, no Estado de Alagoas, onde veio a falecer em Maceió.

J.A.R. – H.C.

Frei Elias Medeiros Ferro
(1905-1971)

Jesus Infante

Na erma gruta da ditosa Efrata,
Em deslumbrante profusão de luz,
E entre acordes de angélica sonata,
Repousa o Infante Salvador, Jesus.

É o Verbo Eterno, o Deus feito Menino,
Que ao mundo veio para o libertar:
Sendo infinito, fez-se pequenino,
Nos dando prova dum amor sem par.

O astro novo cujo brilho encanta
E do Presépio em torno se irradia.
Já foi previsto em profecia santa:
– Que de Jacó a Estrela surgiria.

Os Santos Reis, os Magos do Oriente,
Vendo o Luzeiro não mais se detêm:
Seguem a estrada pressurosamente,
Em rumo à Lapa da feliz Belém.

E cada qual trazendo seu tesouro,
Ei-los prostrados junto à Estrebaria,
Oferecendo incenso, mirra e ouro
A Jesus, no regaço de Maria.

Em: “Flores de Outono” (1956)

Maria com o Menino e Dois Anjos
(Anton Raphael Mengs: pintor alemão)

Referência:

FERRO, Frei Elias Medeiros. Jesus infante. In: __________. Poesias completas. Salvador, BA: Reiprimatur, 1963. p. 43.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Denise Levertov - Sobre o Mistério da Encarnação

Um belo poema de Levertov sobre o dogma da encarnação, a relembrar-nos que Cristo entre os homens representaria “o verbo que se fez carne”, segundo o preâmbulo do Evangelho de João – consigne-se, uma das passagens mais bem escritas – digo melhor, sob o ponto de vista literário – do Novo Testamento.

Uma pequena observação sobre a versão ao português da linha final do poema: tem-se grafado, no original, a expressão “a Palavra”, que pelo sentido dos versos imediatamente anteriores, refere-se a Cristo encarnado, enviado aos homens como um “irmão”, como um “convidado”, levando a uma confrontação dúbia no gênero das palavras, motivo que me levou a vertê-la como “o Verbo”, pois, em nosso idioma, tudo resultaria no masculino: “convidado”, “irmão” e “o Verbo”.

Note-se que Levertov empregou o masculino “brother” e não “sister”, que resultaria mais consentâneo com a expressão “the Word”, contudo mais distante sobre o sentido do que se representa, sendo Jesus um homem.

J.A.R. – H.C.

Denise Levertov
(1923-1997)

On the Mystery of the Incarnation

It’s when we face for a moment
the worst our kind can do, and shudder to know
the taint in our own selves, that awe
cracks the mind’s shell and enters the heart:
not to a flower, not to a dolphin,
to no innocent form
but to this creature vainly sure
it and no other is god-like, God
(out of compassion for our ugly
failure to evolve) entrusts,
as guest, as brother,
the Word.

O Nascimento à Noite
(Geertgen tot Sint Jans: pintor holandês)

Sobre o Mistério da Encarnação

É quando, por um momento, defrontamo-nos
com o pior que nossa espécie é capaz de engendrar,
e estremecemos ao saber da mácula em nós mesmos,
que a reverência rompe a concha da mente e adentra
o coração: não em uma flor, nem em um delfim,
nem em outra forma inocente,
senão nesta criatura debalde segura,
afim à imagem de Deus como nenhuma outra,
e Deus (compadecendo-se de nosso indecoroso
fracasso em evoluir), confia-nos,
como convidado, como irmão,
o Verbo.

Referência:

LEVERTOV, Denise. On the mystery of the incarnation. In: __________. A Door in the Hive. New York, NY: New Directions, 1989. p. 56.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Lêdo Ivo - Poema de Natal

Um Natal em meio à natureza mais remota, em plena floresta, a divagar com a amada pelo alpendre de hipotética pousada, escutando o estrondo de rajadas de ventos e de trovões, bem assim de torrentes d’água, lavando a noite, purificando as nódoas da vida, enquanto os sentidos vão ficando entorpecidos pela bebida.

É nesse diapasão que o poeta retrata o seu Natal, passado nas imediações de uma cordilheira – “pista errada” –, mas que o leva a uma loquacidade sem par, aproximando-o do “freixo puro das palavras de amor”, a rasgar o véu a cada manhã, para que a eternidade possa se materializar em vida atravessando centúrias – como no caso de uma sequoia.

J.A.R. – H.C.

Lêdo Ivo
(1924-2012)

Poema de Natal

Este será meu Natal:
mel bebido em cordilheira,
pista errada! profundeza
de urna e clarão, e orelha
surda aos tambores do vento.

Contemplei uma sequoia
na floresta; retardei
o fogo no campo nu
como o beijo em tua espádua.

Este será nosso Natal:
a volta à cicatriz da vida inteira,
a canção que te exalta, o freixo puro
das palavras de amor.
Como as rosas, que progridem através dos séculos
e são eternamente inéditas a cada manhã
– tão jamais vistas que às vezes mal as reconhecemos
é tua flor de hoje, meu amor.

A liana que enlaça os minutos
não voltará a perturbar-nos.
Pólen que a água transporta,
canoa em planetas de chuva,
pá de relâmpago nos céus,
tudo isso é nosso. É Natal.

As nossas vidas, um dia
irão até às fronteiras
das solitudes extremas.
Entre esses polos, a vida
bebe as lágrimas do mundo.

Ficaremos sempre bêbedos.
Cantaremos junto ao mar.
Dançaremos nos terraços
sob os archotes das horas.
Gritaremos! Saltaremos!
E depois desmontaremos
a máquina do Natal.

A Noite do Papai Noel Antes do Natal
(Thomas Kinkade: pintor norte-americano)

Referência:

IVO, Lêdo. Poema de Natal. In: __________. Linguagem: 1949-1951. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora, 1951. p. 40-41.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Guilherme de Almeida - Noite de Natal

O poeta vislumbra em sua magnólia cheia de flores, com um vagalume em circunvoluções ao redor, o protótipo de uma árvore de Natal, divisando ainda um anjo a menear suas amplas asas de algodão, num céu coberto de nuvens.

Ou será que a visão do poeta teria sido exatamente ao contrário: lobrigou em sua árvore de Natal estandardizada – com direito a bolas enfeitadas e piscas – algo mais vivo, digo melhor, animado como a natureza, devolvendo o ânimo do que se passa logo ali, para além da porta que dá para a rua? “A terra morena transpira.”...

J.A.R. – H.C.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Noite de Natal

A terra morena transpira.
Na magnólia cheia de flores e perfume
vira e gira
um vagalume.

A magnólia parece um céu artificial
com luas brancas penduradas
e estrelinhas vadias niqueladas.

Ó minha árvore de Natal!

O outro céu, em cima, entorna
outras joias. E vestido de cerração
como um arcanjo branco sobre a terra morna
desce o silêncio das asas de algodão.

Em: “Meu” (1922-1923)

Árvore de Natal: 1958
(Andy Warhol: artista norte-americano)

Referência:

ALMEIDA, Guilherme de. Noite de Natal. In: __________. Toda a poesia. Tomo IV. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, nov. 1952. p. 177-178.