Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de março de 2020

Kabir - Abre os olhos do amor... [76]

Deus é o Eterno inominável, mistério dos mistérios a abarcar toda a criação: com tanta abundância, por qual motivo haveríamos de submergir no apego às coisas materiais, sendo a vida um sopro que um dia se atenua e se extingue? “Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr” (Ec 1:7).

A dicotomia entre o “ter” e o “ser”, vezes sem conta, já deu motivo a inúmeras obras quer no ocidente quer no oriente. Mas uma sempre me vem à memória quando o tema é exortado: “Ter ou ser?”, de Erich Fromm, um confronto entre a exasperação do homem moderno por abundância material – como se, somente ela fosse capaz de levá-lo à felicidade –, e o sentido maior do ser, não apenas no plano individual, mas também no social e em outras ações experimentais, capazes de inspirá-lo e motivá-lo à mudança de comportamento.

J.A.R. – H.C.

Kabir
(1440-1518)

[76]

Abre os olhos do amor e vê que ele preenche este mundo.
Olha bem e o encontrarás aqui mesmo, nesta terra.
Quando encontrares o satguru (*), ele despertará teu coração
E te desvelará o segredo da aspiração e do desapego.
Entenderás, então, que ele também transcende este mundo.
E sua teia de caminhos te trará o encanto e o espanto.
Alcançar a meta sem percorrer a estrada faz parte do jogo,
Pois unidade e diversidade são um colar em sua mão.
Um só fio, múltiplas contas: girá-lo é para ele um esporte.
Que diferença então existe entre a posse e a renúncia?

Compreende isso e o fogo de ter não te queimará outra vez.

Vê que, no seio de todo movimento, ele repousa imóvel,
E, de sua informalidade, irrompem miríades de formas;
Que, no epicentro do cosmo, envolto em luz, ele se senta,
E mil sóis empalideceriam ante o fulgor de seu rosto;
Que, diante de seus pés, fluem as águas da vida e da morte,
E não existe qualquer diferença entre um fluxo e outro.
Chamam-no vazio, a ele que gera e sustém tudo o que existe.
Mas a filosofia não o alcança e dele nada pode ser dito.
E como poderia – ó irmão – se o afortunado que o contempla
Não consegue distinguir corpo nem forma nem extensão?

Feliz de quem nele ancora, pois transcende a vida e a morte.

Kabir diz:
A palavra que sai da boca não o nomeia.
As letras que percorrem o papel não o enlaçam.
Diante dele, sou como a criança que prova um doce.
Por mais que me esforce, como poderia descrever seu sabor?

Filha de Abbott Handerson Thayer
(Gladys Thayer: pintora norte-americna)

Nota:

(*). Satguru: literalmente, o “verdadeiro mestre”.

Referência:

KABIR. Poema nº 76: Abre os olhos do amor... In: KABIR. Cem poemas. Seleção e tradução ao inglês de R. Tagore. Tradução, ensaios e notas de José Tadeu Arantes. São Paulo: Attar, 2013.

Obs.: Não há, na obra acima, quaisquer referências aos números de suas páginas, senão apenas a indexação dos poemas aos números em colchetes, apostos imediatamente acima da tradução, assim como o fazemos no topo desta postagem.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Cecília Meireles - O gosto da Beleza em meu lábio descansa

A perfeição deste poema de Cecília dispensa qualquer comentário ou paráfrase, pois um poema que se preze “esgota” as possibilidades de mais palavras para girar à volta do próprio umbigo por onde foi gerado. E a beleza, assim, termina por repousar em lábios hábeis a conferir nitidez à sua superlativa importância. Ela “salvará” o mundo, sentencia o príncipe Míchkin.

A imagem de dunas que, na noite, se amontoam se presta bem para sugerir a alucinação que se pode usufruir com o esteticamente belo. E tudo é capaz de ser varrido por sua torrente: vitórias conquistadas, esperanças, alegrias; mas também dores, agonias, angústias. Pois a poesia não pode negar o que quer que seja experimentável neste plano de existência!

J.A.R. – H.C.

Cecília Meireles
(1901-1964)

O gosto da Beleza em meu lábio descansa

O gosto da Beleza em meu lábio descansa:
breve pólen que um vento próximo procura,
bravo mar de vitórias – ah, mas istmos de sal!

Eu – fantasma – que deixo os litorais humanos,
sinto o mundo chorar como em língua estrangeira;
eu sei de outra esperança: eu conheço outra dor.

Apenas alta noite algum radioso espelho
em sua lâmina reflete o que estou sendo.
E em meu assombro nem conheço o próprio olhar.

Alta é a alucinação da provada Beleza.
Pura e ardente, esta angústia. E perfeita, a agonia.
Eu, que a contemplo, vejo um fim que não tem fim.

Dunas da noite que se amontoam.

Vista de Toledo
(El Greco: pintor grego)

Referência:

MEIRELES, Cecília. O gosto da beleza em meu lábio descansa. In: __________. Cecília de bolso: uma antologia poética. Organização e apresentação de Fabrício Carpinejar. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 132. (Coleção ‘L&PM Pocket; v. 700)

domingo, 29 de março de 2020

Pablo Neruda - Ode à tristeza

Mal chegou o fim do primeiro trimestre, e já me sinto cansado – e triste como as coisas vão transcorrendo, quer em meus desvãos quer nos “tristes trópicos” de Pindorama – e no mundo, por extensão: mas venho teimando em amparar os umbrais de minha morada contra as pressões vindas de fora, carreadas por uma torrente de desalentos suscitada por gente desorientada, daqui e dalhures.

Tratarei de agir como propõe o poeta chileno: torcerei até a morte esse morcego chamado “tristeza”, depenando-o em seguida, pulverizando-o aos quatro ventos, soterrando-lhe os despojos para muito mais além dos sete palmos com que se costuma amanhar uma cova mortuária. E que as rosas vermelhas voltem a florir no jardim, para encantar o mundo!

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Oda a la tristeza

Tristeza, escarabajo
de siete patas rotas,
huevo de telaraña,
rata descalabrada,
esqueleto de perra:
Aquí no entras.
No pasas.
Ándate.
Vuelve
al Sur con tu paraguas,
vuelve
al Norte con tus dientes de culebra.
Aquí vive un poeta.
La tristeza no puede
entrar por estas puertas.
Por las ventanas
entra el aire del mundo,
las rojas rosas nuevas,
las banderas bordadas
del pueblo y sus victorias.
No puedes.
Aquí no entras.
Sacude
tus alas de murciélago,
yo pisaré las plumas
que caen de tu manto,
yo barreré los trozos
de tu cadáver hacia
las cuatro puntas del viento,
yo te torceré el cuello,
te coseré los ojos,
cortaré tu mortaja
y enterraré tus huesos roedores
bajo la primavera de un manzano.

A Melancolia
(Louis-Jean-François Lagrenée: pintor francês)

Ode à tristeza

Tristeza, escaravelho
de sete patas partidas,
ovo de teia de aranha,
rato esfolado,
esqueleto de cadela:
Aqui não entras.
Não passas.
Anda-te.
Volta
ao Sul com teu guarda-chuva,
volta
ao Norte com teus dentes de serpente.
Aqui vive um poeta.
A tristeza não pode
entrar por estas portas.
Pelas janelas
entra o ar do mundo,
as novas rosas vermelhas,
as bandeiras bordadas
do povo e de suas vitórias.
Não podes.
Aqui não entras.
Sacode
tuas asas de morcego,
eu pisarei as penas
que caem de teu manto,
varrerei os despojos
de teu cadáver para
as quatro pontas do vento,
te torcerei o pescoço,
te cerzirei os olhos,
talharei tua mortalha
e enterrarei teus ossos roedores
sob a primavera de uma macieira.

Referência:

NERUDA, Pablo. Oda a la tristeza. In: MIRANDA, Rocío (Ed.). 24 poetas latinoamericanos. 1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 116. (‘Coedición Latinoamericana’)

sábado, 28 de março de 2020

Robert Herrick - A Vinha

O poeta, ao dormir, sonhou que havia se transformado numa videira que, com os seus ramos, aos poucos apalpa e subjuga o corpo de sua amada. Mas quando ele começa a gerar folhas para apor sobre as partes íntimas dela, fica sobremodo excitado, vindo a acordar, quando então percebeu que uma parte dele mais se parecia com um “tronco” – o falo, obviamente – do que com uma videira.

O orador do poema reconhece no assunto do poema um lapso momentâneo da razão, parecendo sentir algum constrangimento ou perturbação moral no jogo luxuriante das conquistas sexuais, dos atos libertinos ou mesmo das perversões eróticas, ainda que os prazeres daí derivados apenas se limitem a momentos oníricos fugazes.

J.A.R. – H.C.

Robert Herrick
(1591-1674)

The Vine

I dreamed this mortal part of mine
Was metamorphosed to a vine,
Which crawling one and every way
Enthralled my dainty Lucia.
Methought her long small legs and thighs
I with my tendrils did surprise;
Her belly, buttocks, and her waist
By my soft nervelets were embraced.
About her head I writhing hung,
And with rich clusters (hid among
The leaves) her temples I behung,
So that my Lucia seemed to me
Young Bacchus ravished by his tree.
My curls about her neck did crawl,
And arms and hands they did enthrall,
So that she could not freely stir
(All parts there made one prisoner).
But when I crept with leaves to hide
Those parts which maids keep unespied,
Such fleeting pleasures there I took
That with the fancy I awoke;
And found (ah me!) this flesh of mine
More like a stock than like a vine.

O Vinhedo Vermelho
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

A Vinha

Sonhei que esta mortal parte minha
Se metamorfoseara numa vinha,
A qual, dando volta sobre volta,
Cativara minha Lúcia graciosa.
Assim, suas pernas e quadris
Co’as minhas gavinhas surpreendi;
Seu ventre, nádegas, cintura,
Rodeei com minhas brandas nervuras;
Em torno da cabeça, eu serpente,
Grandes rácimos (ocultos entre
As folhas) prendi às suas têmporas.
Do jovem Baco era Lúcia imagem,
Dele preso em sua folhagem.
No colo meus cachos a envolviam,
De seus braços e mãos restringiam
Os gestos (e ali um só, dessarte,
Prisioneiro fizeram tais partes).
Mas quando com folhas fui tapar
As partes que as donzelas do olhar
Alheio guardam, tanto prazer
Eu tive que acordei para ver,
(Ai de mim!) ver esta carne minha
Feita mais um tronco que uma vinha.

Referência:

HERRICK, Robert. The vine / A vinha. Tradução de José Paulo Paes. In: PAES, José Paulo (Seleção, tradução, introdução e notas). Poesia erótica em tradução. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. Em inglês: p. 110; em português: p. 111.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Duda Machado - Roda das ideias fixas

Uma roda, por si só, já pressupõe o potencial para se pôr em movimento, girante, em círculos. Mas a roda do poeta se conecta à fixidez das ideias, aquilo que se repete como uma linha reta – e não exatamente em volutas. É como se fosse a busca do oposto pela persistência contra o que se mostra obcecado em persistir, rumo à mais pura abstração.

O título do poema induz o leitor a pensar sobre uma espécie de comportamento paranoico, monomaníaco, de alguém que somente pensa e reflete sobre uma única ideia ou tipo de ideias, à volta de um “labirinto surpreendente” do qual se mostra incapaz de escapar, afirmando-se pela negação da negação.

J.A.R. – H.C.

Duda Machado
(n. 1944)

Roda das ideias fixas

para João Alexandre Barbosa

Outros – no tempo –
compõem emblemas
com que me persigo

presenças perpetuadas
pela mais tenaz repetição
a engendrar a suprema
surpresa geométrica
de um labirinto interno
a uma linha reta

a mesma coisa concreta
cercada até sua abstração
ou afirmada ainda
pelo apego avesso
da via negativa

como a metáfora implícita
em liquidar com as metáforas
e aquela busca da hora
– impontual –
que é o fim de todas as horas

Personagem
(Pavel Tchelitchew: pintor russo)

Referência:

MACHADO, Duda. Roda das ideias fixas. In: MASSI, Augusto (Org.). Artes e ofícios da poesia. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 1991. p. 123.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Denise Levertov - O Sábio

Os núcleos das rosas – os nomeados “corações”, no dizer da poetisa –, costumam ser amargos e, por tal motivo, o bichano da autora não os toca, sobretudo porque conhece bem “o mundo e o clima”. E como diria Pessoa: “E assim nas calhas da roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama o coração”.

O gato seria um sábio, porque não se deve deglutir o coração de tudo quanto exterioriza vida, pois ali há amargura suficiente para verter tribulações para quem ousar colocá-lo à prova. Levertov omitiu-se em esclarecer que o coração também abriga as lembranças do amor que se deu e se recebeu. E não se ousaria dizer que o amor tem “sabor amargo”. Então, para sermos mais justos, complementemos: o núcleo das rosas tem sabor agridoce!

J.A.R. – H.C.

Denise Levertov
(1923-1997)

The Sage

The cat is eating the roses:
that’s the way he is.
Don’t stop him, don’t stop
the world going round,
that’s the way things are.
The third of May
was misty; fourth of May
who knows. Sweep
the rose-meat up, throw the bits
out in the rain.
He never eats
every crumb, says
the hearts are bitter.
That’s the way he is, he knows
the world and the weather.

Mulher com Gato
(Pablo Picasso: pintor espanhol)

O Sábio

O gato está comendo as rosas:
assim que ele é.
Não o impeça, não impeça
que o mundo siga a girar,
é assim que as coisas são.
Em três de maio
estava enevoado; em quatro de maio
quem há de o saber. Varra
os núcleos das rosas, deite à chuva
os pedaços que restam.
Ele nunca come
todas as migalhas, pois se costuma dizer
que os corações são amargos.
Assim que ele é: conhece
o mundo e o clima.

Referência:

LEVERTOV, Denise. The sage. In: __________. Collected Earlier Poems: 1940-1960. New York, NY: New Directions, 1979. p. 99-100.
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quarta-feira, 25 de março de 2020

León Felipe - Vencidos

O protótipo do herói picaresco é a inspiração maior de outro poeta espanhol, ambos “carregados de amargura” pelas derrotas que a vida – não exatamente a dos sonhos – lhes imputa, derrubados até a fadiga, impactados por um desalento mortal, capaz de levá-los à inação, por mais que disponham de armadura, couraça ou espaldar.

Há momentos em que a vida cansa e o mais adequado a se fazer é dar um tempo às arremetidas sobre pontas de facas, passando a mensurar cuidadosamente o peso de cada ação em confronto aos nossos planos de felicidade, pois para se ir ao longe, “morrer” aos bocados todos os dias é medida capaz de ceifar mais prontamente o paciente, e da qual, obviamente, melhor que nos afastemos o quanto antes.

J.A.R. – H.C.

León Felipe
(1884-1968)

Vencidos

Por la manchega llanura
se vuelve a ver la figura
de Don Quijote pasar.

Y ahora ociosa y abollada va en el rucio la armadura,
y va ocioso el caballero, sin peto y sin espaldar,
va cargado de amargura,
que allá encontró sepultura
su amoroso batallar.
Va cargado de amargura,
que allá “quedó su ventura”
en la playa de Barcino, frente al mar.

Por la manchega llanura
se vuelve a ver la figura
de Don Quijote pasar.
Va cargado de amargura,
va, vencido, el caballero de retorno a su lugar.

¡Cuántas veces, Don Quijote, por esa misma llanura,
en horas de desaliento así te miro pasar!
¡Y cuántas veces te grito: Hazme un sitio en tu montura
y llévame a tu lugar;
hazme un sitio en tu montura,
caballero derrotado,
hazme un sitio en tu montura
que yo también voy cargado
de amargura
y no puedo batallar!
Ponme a la grupa contigo,
caballero del honor,
ponme a la grupa contigo,
y llévame a ser contigo
pastor.

Por la manchega llanura
se vuelve a ver la figura
de Don Quijote pasar...

Dom Quixote e Sancho Pança
retornando à sua vila
(Sir John Gilbert: pintor inglês)

Vencidos

Pela manchega planura
volta-se a ver a figura
de Dom Quixote passar.

Ora amassada e ociosa vai no ruço a armadura,
vai ocioso o cavaleiro sem couraça e espaldar.
Carregado de amargura,
que lá teve sepultura
o amoroso batalhar.
Carregado de amargura,
que lá “quedou sua aventura”
na praia de Barcino, frente ao mar.

Pela manchega planura
volta-se a ver a figura
de Dom Quixote passar.
Carregado de amargura,
vai, vencido, o cavaleiro de retorno a seu lugar.

Quantas vezes, Dom Quixote, por essa mesma planura
em horas de desalento assim te vejo passar!
Quantas vezes te gritei: Dá-me um canto na montada,
e leva-me a teu lugar;
dá-me um canto na montada,
cavaleiro derrotado,
que eu também vou carregado
de amargura
e não posso batalhar!
Põe-me à garupa contigo,
fatigado lidador,
põe-me à garupa contigo,
e leva-me a ser contigo
pastor.

Pela manchega planura
volta-se a ver a figura
de Dom Quixote passar...

Referência:

FELIPE, León. Vencidos / Vencidos. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Traduzida. Edição bilíngue. Organização e notas de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: 7Letras; Cosac Naify, 2011. Em espanhol: p. 150 e 152; em português: p. 151 e 153.

terça-feira, 24 de março de 2020

Sebastião da Gama - Meu País Desgraçado

O autor do poema refere-se ao seu país natal – Portugal –, em uma época certamente menos venturosa do que a dos dias que correm. Mas mal ele veio a conhecer Pindorama sob os auspícios do atual maluco de plantão: um manicômio à mercê das piores intempéries – metafóricas, ‘of course’ –, onde tudo se pode prognosticar, do coronavírus ao sobressalto da bolsa de valores.

É a maior de todas as desgraças a que o país jamais esteve submetido: a economia à deriva – com um ministro que só pensa em favorecer a banca –, as manifestações escatológicas da turma obtusa que apoia o presidente (sic), os ministros a compor um quadro digno de internamento num hospício... Apreciaria saber o que Stefan Zweig diria sob tal contexto, se vivo estivesse, depois de haver escrito “Brasil, um país do futuro”!

J.A.R. – H.C.

Sebastião da Gama
(1924-1952)

Meu País Desgraçado

Meu país desgraçado!…
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!…
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
– busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anêmico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
– olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!

Em: “Cabo da Boa Esperança” (1947)

Janelas Azuis
(Mukhtar Mukambetov: pintor quirguistanês)

Referência:

GAMA, Sebastião da. Meu país desgraçado. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 146-147.