Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS
Mostrando postagens com marcador Poesia Hispanoamericana. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Poesia Hispanoamericana. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Pablo Armando Fernández - Aprendendo a morrer

Nestes versos, o retorno a um tema deveras humano e universal – a iminente realidade da morte –, um processo que, a julgar pelo título do poema, requer paulatina aprendizagem no quotidiano: o falante, em estado de vigília, dá-se conta da desconexão e do distanciamento emocional que aos poucos se instaura, mesmo dentro do lar, em relação aos seus familiares, numa ausência de interação a evocar a derradeira experiência – reservada e individualíssima.

 

Essa entidade onipresente acaba por instaurar uma autêntica tormenta interna no narrador, a contrastar com a manifesta quietude da casa – onde todos se encontram adormecidos: enquanto exercício de aprendizagem que se passa durante as horas da noite, tudo encontra termo com os primeiros alvores da manhã – a anunciar ou bem a chegada de um novo dia, ou bem a alentada paz ao final do caminho.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pablo Armando Fernández

(1930-2021)

 

Aprendiendo a morir

 

Mientras duermen mi mujer y mis hijos

y la casa descansa del ajetreo familiar;

me levanto y reanimo los espacios tranquilos.

Hago como si ellos – mis hijos, mi mujer –

estuvieran despiertos, activos

en la propia gestión que les ocupa el día.

Voy insomne (o sonámbulo) llamándoles,

hablándoles;

pero nadie responde, nadie me ve.

Llego hasta donde está la menor de mis niñas:

ella habla a sus muñecas, no repara en mi voz.

El varón entra, suelta su cartapacio de escolar;

de los bolsillos saca su botín:

las artimañas de un prestidigitador.

Quisiera compartir su arte y su tesoro,

quisiera ser con él. Sigue de largo:

no repara en mi gesto ni en mi voz.

¿A quién acudo? Mis otras hijas, ¿donde están?

Ando por casa jugando a que me encuentren:

¡Aquí estoy!

Pero nadie responde, nadie me ve.

Mis hijas en sus mundos siguen otro compás.

¿Dónde se habrá metido mi mujer?

En la cocina la oigo; el agua corre,

huele a hojas de cilantro y de laurel.

Está de espaldas. Miro su melena,

su cuello joven: ella vivirá...

Quiero acercármele pero no me atrevo

– huele a guiso, a pastel recién horneado –:

¿y si al volver los ojos, no me ve?

Como un actor que olvida de repente

su papel en la escena,

desesperado grito:

¡Aquí estoy!

Pero, nadie responde, nadie me ve.

Hasta que llegue el día y con su luz

termine mi ejercicio de aprender a morir.

 

De: “Campo de amor y de batalla” (1963-1982)

 

Mulher lavando pratos

(Giuseppe Crespi, lo Spagnuolo: pintor italiano)

 

Aprendendo a morrer

 

Enquanto minha mulher e meus filhos dormem

e a casa descansa do burburinho familiar,

eu me levanto e animo os espaços quietos.

Faço como se eles – meus filhos, minha mulher –

estivessem despertos, ativos

na própria lida que lhes ocupa o dia.

Vou sem sono (ou sonâmbulo) chamando,

falando com eles;

mas ninguém responde, ninguém me vê.

Chego até onde está a menor de minhas filhas:

ela fala com as bonecas, não repara em minha voz.

O garoto entra, joga sua pasta escolar,

dos bolsos tira suas bugigangas:

artimanhas de um prestidigitador.

Quisera dividir com ele essa arte e esse tesouro,

quisera estar com ele. Continua distante:

não repara em meu gesto nem em minha voz.

A quem apelo? Minhas outras filhas onde estão?

Ando pela casa brincando de esconde-esconde:

Estou aqui!

Mas ninguém responde, ninguém me vê.

Minhas filhas em seus mundos seguem outro compasso.

Onde terá se metido minha mulher?

Ouço ela na cozinha; a água corre,

cheira a folhas de coentro e de louro.

Está de costas. Olho seu cabelo,

seu pescoço jovem: ela viverá...

Quero me aproximar dela mas não me atrevo

– cheira a guisado, a bolo saído agorinha do forno –:

E se ao virar a cabeça, ela não me vir?

Como um ator que esquece de repente

seu papel na cena,

desesperado grito:

Estou aqui!

Mas ninguém responde, ninguém me vê.

Até que chegue o dia e com sua luz

termine meu exercício de aprender a morrer.

 

De: “Campo de amor e de batalha” (1963-1982)

 

Referência:

 

FERNÁNDEZ, Pablo Armando. Aprendiendo a morir / Aprendendo a morrer. Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. In: LEMUS, Virgilio Lópes (Seleção, prefácio e notas). Vinte poetas cubanos do século XX. Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, 1994. Em espanhol: p. 218; em português: p. 219.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Mario Benedetti - Consternados, raivosos

Esta é uma homenagem póstuma a Che Guevara – vulto emblemático da Revolução Cubana –, logo depois que o poeta uruguaio tomou conhecimento de sua morte na Bolívia, em 9.10.1967, a refletir a comoção e a raiva que então sentiu pela execução do médico argentino, figura histórica pela qual certamente nutria alguma admiração, pois que, como ele próprio, compromissado na luta contra a injustiça social e a opressão, em especial, em terras da América Latina.

 

A elegia segue a sua missão de ser um recordatório de que as desigualdades injustas devem ser combatidas, de que a parelha “justiça x igualdade” não pode render-se a um estatuto de mera formalidade legal, senão que há de pautar a ação no âmbito da realidade concreta, para assim honrar a memória de todos quantos se propuseram a colocar a dignidade da pessoa humana em primeiro plano.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Benedetti

(1920-2009)

 

Consternados, rabiosos

 

Vámonos,

derrotando afrentas.

Ernesto “Che” Guevara

 

Así estamos

consternados

rabiosos

aunque esta muerte sea

uno de los absurdos previsibles

 

da vergüenza mirar

los cuadros

los sillones

las alfombras

sacar una botella del refrigerador

teclear las tres letras mundiales de tu nombre

en la rígida máquina

que nunca

nunca estuvo

con la cinta tan pálida

 

vergüenza tener frío

y arrimarse a la estufa como siempre

tener hambre y comer

esa cosa tan simple

abrir el tocadiscos y escuchar en silencio

sobre todo si es un cuarteto de Mozart

 

da vergüenza el confort

y el asma da vergüenza

cuando tú comandante estás cayendo

ametrallado

fabuloso

nítido

 

eres nuestra conciencia acribillada

 

dicen que te quemaron

con qué fuego

van a quemar las buenas

las buenas nuevas

la irascible ternura

que trajiste y llevaste

con tu tos

con tu barro

 

dicen que incineraron

toda tu vocación

menos un dedo

 

basta para mostrarnos el camino

para acusar al monstruo y sus tizones

para apretar de nuevo los gatillos

 

así estamos

consternados

rabiosos

claro que con el tiempo la plomiza

consternación

se nos irá pasando

la rabia quedará

se hará mas limpia

 

estás muerto

estás vivo

estás cayendo

estás nube

estás lluvia

estás estrella

 

donde estés

si es que estás

si estás llegando

 

aprovecha por fin

a respirar tranquilo

a llenarte de cielo los pulmones

 

donde estés

si es que estás

si estás llegando

será una pena que no exista Dios

 

pero habrá otros

claro que habrá otros

dignos de recibirte

comandante.

 

Montevideo, octubre de 1967.

 

Estampa de Che Guevara

(1928-1967)

 

Consternados, raivosos

 

Vamos em frente,

derrotando afrontas.

Ernesto “Che” Guevara

 

Assim estamos

consternados

raivosos

ainda que esta morte seja

um dos absurdos previsíveis

 

dá vergonha olhar

os quadros

as poltronas

os tapetes

tirar uma garrafa do refrigerador

teclar as três letras mundiais de teu nome

na rígida máquina

que nunca

nunca esteve

com a fita tão pálida

 

vergonha ter frio

e aconchegar-se à lareira como sempre

ter fome e comer

essa coisa tão simples

abrir o toca-discos e escutar em silêncio

sobretudo se é um quarteto de Mozart


dá vergonha o conforto

e a asma dá vergonha

quando tu comandante está caindo

metralhado

fabuloso

nítido

 

és nossa consciência massacrada

 

dizem que te queimaram

com que fogo

vão queimar as boas

as boas novas

a irascível ternura

que trouxeste e carregaste

com tua tosse

com teu barro

 

dizem que incineraram

toda tua vocação

menos um dedo

 

basta ele para mostrar-nos o caminho

para acusar o monstro e seus tições

para apertar de novo os gatilhos

 

assim estamos

consternados

raivosos

claro que com o tempo a soturna

consternação

se nos irá passando

a raiva subsistirá

se tornará mais limpa

 

estás morto

estás vivo

estás caindo

estás nuvem

estás chuva

estás estrela

 

onde quer que estejas

se é que estás

se estás chegando

será uma pena que Deus não exista

 

aproveita por fim

para respirar tranquilo

para encher de céu os teus pulmões

 

mas haverá outros

claro que haverá outros

dignos de receber-te

comandante.

 

Montevidéu, outubro de 1967.

 

Referência:

 

BENEDETTI, Mario. Consternados, rabiosos. In: __________. Antología poética. Introducción de Pedro Orgambide. Selección del autor. 4. ed., 8. reimp. Madrid, ES: Alianza Editorial, 2017. p. 116-119. (‘El libro de bolsillo’)

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Enrique Gómez Correa - Alice no País das Maravilhas

Evocando uma atmosfera fantasiosa e devaneadora – muito em linha com a obra do escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898), a servir-lhe como título –, este poema de Correa detém-se sobre a natureza do desejo, acenando para a possibilidade de libertação e de reavivamento da alma, por meio da força da imaginação e da conexão com a natureza.

 

O poeta chileno metaforiza o ser humano na figura de uma árvore, em que os frutos são a expressão de nossos desejos e os sentidos apontam, em determinado momento, para um despertar que vai de encontro ao fastio imiscuído em nossas vidas, em meio às limitações e aos obstáculos do quotidiano.

 

A mensagem subjacente aos versos convida-nos a ter uma união simbiótica com o entorno, para que regressemos a um estado primordial de harmonia e paz, semelhante ao das plantas ou pássaros, livre das preocupações e das tensões do modo de vida contemporâneo, tornando-nos conscientes da complexidade do mundo e das incertezas que pairam sobre as nossas fluidas existências.

 

J.A.R. – H.C.

 

Enrique Gómez Correa

(1915-1995)

 

Alicia en el País de las Maravillas

 

Cuando se descargan los deseos del árbol

Cuando el árbol abre bien el ojo y recupera el olfato

y se fija en nosotros que nos identificamos con el fastidio del lago

Pese a la furia de las nubes y de las manos que imploran piedad

Entonces la imaginación es sacudida por inevitables cataclismos.

 

Algún día se desatará el nudo que perturba el hilo de la memoria

Algún día no habrán los extremos de sueño y vigilia

Y tú bella desconocida podrás tenderte libremente sobre la yerba

del placer

En tu pecho crecerá el muérdago el oxiacanto

La mirada tuya será mi propia mirada

Y te sangrarás esperándome todas las tardes a la entrada de los

golfos a los que ahora me empujas

A esos golfos temidos por los perros

Arrancados a viva fuerza de los territorios del demonio.

 

No tendremos la inquietud

Ni el asalto a mansalva

Ni la nube de la que tú sabes sacar tanto partido

Ni la piedra que nos endurece el ojo y la nariz

Ni yo mismo que me compadezco de su pobre ser.

 

El hombre volverá a su estado de planta

De nariz trepadora

De pájaro errante

En buenas cuentas con sus cinco sentidos independientes

y entregados al más cruel y perfecto desorden.

 

Ilustração para a obra

de Lewis Carroll

(Rodney Matthews: ilustrador inglês)

 

Alice no País das Maravilhas

 

Quando a árvore se desembaraça de seus desejos,

Quando a árvore arregala os olhos e recupera o olfato

E se fixa em nós que nos identificamos com o fastio do lago,

Apesar da fúria das nuvens e das mãos que imploram

por misericórdia,

Então a imaginação torna-se refém de inevitáveis cataclismos.

 

Algum dia se desatará o nó que perturba o fio da memória,

Algum dia não haverá mais os extremos de sono e vigília,

E tu, bela desconhecida, poderás deitar-te livremente

sobre a relva do prazer.

Em teu peito crescerá o visco, o oxiacanto;

O teu olhar será o meu próprio olhar

E, à minha espera, sangrarás todas as tardes à entrada dos golfos

para os quais agora me empurras,

A esses golfos temidos pelos cães,

Arrancados à viva força dos territórios do demônio.

 

Não teremos a inquietude,

Nem assalto à mancheia,

Nem a nuvem da qual sabes tirar tanto proveito,

Nem a pedra que nos endurece o olho e o nariz,

Tampouco eu mesmo que me compadeço de teu pobre ser.

 

O homem retornará ao seu estado vegetal,

De nariz trepador,

De pássaro errante,

Em boas contas com os seus cinco sentidos independentes

E entregues à mais cruel e perfeita desordem.

 

Referência:

 

CORREA, Enrique Gómez. Alicia en el país de las maravillas. In: BORDA, Juan Gustavo Cobo (Selección, prólogo y notas). Antología de la poesía hispano-americana. 1. ed. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 161-162. (Colección ‘Terra Firme’)