Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Francisco Carvalho - Explicação do Poema

Um poema – ou seria melhor empregar o termo poesia?! – é uma forma de expressão emblemática – porque quase tudo comporta enquanto significante, significado, som e ritmo –, tendo por objetivo surpreender, cativar e estimular uma resposta ao leitor sensível às palavras.

A par da incompletude dessa definição de poesia – arranjada ao sabor do momento, daí porque precária, elusiva ou mesmo imprecisa –, melhor seria ponderar que ela emerge da pena assombrosa de um mágico, cujos truques de sua arte, vez por outra, são deslindados em outros tantos poemas desse “fingidor” e “ilusionista”: com as lentes do poeta cearense, internauta, navegue pelas trilhas enigmáticas do infratranscrito poema e tire as suas próprias conclusões!

J.A.R. – H.C.

 

Francisco Carvalho

(1927-2013)

 

Explicação do Poema

 

O poema é uma teia

de sombra e sol.

Uivo de alcateia

 

para a lua cheia.

O poema é o fluxo

e o cio da sereia.

 

O poema é o que pulsa

no vértice de fogo

dos olhos da Ursa.

 

Não é o cachimbo

de ópio. É o voo dos

pássaros do limbo.

 

A dança da chama

que devora o peito

de quem ama.

 

O lugar da ágora

onde os deuses amam

musas e medusas.

 

O poema é um meio

de beber ao seio

das guitarras lusas.

 

Em: “Romance da nuvem pássaro” (1998)

 

Constelação de Órion

(Randy Burns: pintor norte-americano)


Referência:

CARVALHO, Francisco. Explicação do poema. In: SEFFRIN, André (Seleção e Prefácio). Roteiro da poesia brasileira: anos 50. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2007. p. 145.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Michael O’Siadhail - Entre

O poeta irlandês divaga sobre o que se mostra inescrutável no ser amado, como reserva que jamais poderá ser desvelada, porque inacessível no plano da alteridade – e não só pelos pensamentos que vêm à tona, como reflexos identitários da totalidade do ser, mas também na qualidade de revérberos conscientes ou inconscientes suscitados por cada contingente momento, a exemplo da presumida relação erótica experimentada pelo casal.

Daí essa sensação de estranheza, por vezes completa, em relação às pessoas que nos são íntimas ou próximas, a causar-nos perplexidade: amar é vogar num nebuloso oceano, nem sempre convictos de que aportaremos no desejado local de destino, embora atribuindo fé aos “instrumentos de navegação”, para que o batel não se desgarre à deriva!

J.A.R. – H.C.

 

Michael O’Siadhail

(n. 1947)

 

Between

 

As we fall into step I ask a penny for your thoughts.

‘Oh, nothing’, you say, ‘well, nothing so easily bought’.

 

Sliding into the rhythm of your silence, I almost forget

how lonely I’d been until that autumn morning we met.

 

At bedtime up along my childhood’s stairway, tongues

of fire cast shadows. Too earnest, too highstrung.

 

My desire is endless: others ended when I’d only started.

Then, there was you: so whole-hog, so wholehearted.

 

Think of the thousands of nights and the shadows fought.

And the mornings of light. I try to read your thought.

 

In the strange openness of your face, I’m powerless.

Always this love. Always this infinity between us.

 

A família

(Egon Schiele: pintor austríaco)

 

Entre

 

À medida que avançamos, peço-te um centavo por

teus pensamentos.

“Oh, nada”, dizes, “até porque coisa alguma se compra

assim tão facilmente”.

 

Resvalando ao ritmo do teu silêncio, quase me esqueço

do quanto me sentia só, até aquela manhã de outono

em que nos conhecemos.

 

À hora de dormir, ao longo da escada de minha infância,

línguas

de fogo projetam sombras. Lancinante demais, excitável

demais.

 

Infinito é o meu desejo: outros já chegaram a termo,

enquanto eu mal começara.

E então, lá estavas tu: toda por inteiro, de todo o coração.

 

Pensas nas milhares de noites e nas porfiadas sombras.

E nas manhãs de luz. Tento ler teu pensamento.

 

Na estranha franqueza de teu rosto, sou impotente.

Sempre este amor. Sempre esta infinitude entre nós.


Referência:

O’SIADHAIL, Micheal. Between. In: ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed. New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 290.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Elizabeth Bishop - Na Sala de Espera

Bishop narra-nos um dia que lhe ficou marcado na memória, à altura de seus sete anos incompletos, quando foi ao consultório dentário com sua tia Consuelo, para fazer-lhe companhia, oportunidade em que folheara um exemplar da revista “National Geographic” e dá com os olhos sobre imagens desconcertantes do mundo “adulto”, a desafiarem a sua ainda frágil perspectiva de futuro.

Algo horrorizada com o que vê na revista e transportada emocionalmente para as paragens onde extraídas as fotos, a criança logo perceberá que atingir o estágio de um ser humano adulto, ou melhor, a maioridade, não será experiência descomplicada – como uma visita ao dentista, a sempre comportar alguns gritos e gemidos!

J.A.R. – H.C.

 

Elizabeth Bishop

(1911-1979)

 

In the Waiting Room

 

In Worcester, Massachusetts,

I went with Aunt Consuelo

to keep her dentist’s appointment

and sat and waited for her

in the dentist’s waiting room.

It was winter. It got dark

early. The waiting room

was full of grown-up people,

arctics and overcoats,

lamps and magazines.

My aunt was inside

what seemed like a long time

and while I waited I read

the National Geographic

(I could read) and carefully

studied the photographs:

the inside of a volcano,

black, and full of ashes;

then it was spilling over

in rivulets of fire.

Osa and Martin Johnson

dressed in riding breeches,

laced boots, and pith helmets.

A dead man slung on a pole

– “Long Pig”, the caption said.

Babies with pointed heads

wound round and round with string;

black, naked women with necks

wound round and round with wire

like the necks of light bulbs.

Their breasts were horrifying.

I read it right straight through.

I was too shy to stop.

And then I looked at the cover:

the yellow margins, the date.

Suddenly, from inside,

came an oh! of pain

– Aunt Consuelo’s voice –

not very loud or long.

I wasn’t at all surprised;

even then I knew she was

a foolish, timid woman.

I might have been embarrassed,

but wasn’t. What took me

completely by surprise

was that it was me:

my voice, in my mouth.

Without thinking at all

I was my foolish aunt,

I – we – were falling, falling,

our eyes glued to the cover

of the National Geographic,

February, 1918.

 

I said to myself: three days

and you’ll be seven years old.

I was saying it to stop

the sensation of falling off

the round, turning world.

into cold, blue-black space.

But I felt: you are an I,

you are an Elizabeth,

you are one of them.

Why should you be one, too?

I scarcely dared to look

to see what it was I was.

I gave a sidelong glance

– I couldn’t look any higher –

at shadowy gray knees,

trousers and skirts and boots

and different pairs of hands

lying under the lamps.

I knew that nothing stranger

had ever happened, that nothing

stranger could ever happen.

 

Why should I be my aunt,

or me, or anyone?

What similarities –

boots, hands, the family voice

I felt in my throat, or even

the National Geographic

and those awful hanging breasts –

held us all together

or made us all just one?

How – I didn’t know any

word for it – how “unlikely”...

How had I come to be here,

like them, and overhear

a cry of pain that could have

got loud and worse but hadn’t?

 

The waiting room was bright

and too hot. It was sliding

beneath a big black wave,

another, and another.

 

Then I was back in it.

The War was on. Outside,

in Worcester, Massachusetts,

were night and slush and cold,

and it was still the fifth

of February, 1918.

 

A sala de espera do médico

(Vladimir Makovsky: pintor russo)

 

Na Sala de Espera

 

Em Worcester, Massachusetts,

fui com a tia Consuelo

ao dentista, acompanhá-la,

e fiquei na sala de espera,

sentada, esperando por ela.

Era inverno. Escurecia

bem cedo. A sala de espera

estava cheia de adultos

de galocha e sobretudo,

abajures e revistas.

Minha tia parecia

que nunca mais ia sair,

e enquanto eu esperava eu lia

a National Geographic

(pois eu já sabia ler)

e olhava as fotografias:

um vulcão visto por dentro,

negro, e cheio de cinzas;

depois ele aparecia

jorrando riachos de fogo.

Osa e Martin Johnson

com trajes de montaria,

com botas e capacetes.

Um homem morto num espeto

– “Antropófagos”, a legenda.

Bebês com cabeças pontudas

com espirais de barbante;

mulheres negras e nuas

com espirais no pescoço

tal como se fossem lâmpadas.

Seus peitos eram medonhos.

Li a revista todinha,

sem coragem de parar.

Então olhei para a capa:

a borda amarela, a data.

De repente, lá de dentro

veio um grito, ai!, de dor

– voz da tia Consuelo –

não muito alto, nem comprido.

Eu não me surpreendi:

já sabia que ela era

uma mulher boba e medrosa.

Não senti vergonha alguma,

embora tivesse motivo.

O que me espantou por completo

foi sentir que era eu:

minha voz, na minha boca.

Sem pensar, eu era agora

a boboca da minha tia,

eu – nós – caíamos, olhando

a capa da National Geographic

de fevereiro de mil

novecentos e dezoito.

 

Eu pensei: daqui a três dias

você vai fazer sete anos,

pra afastar a sensação

de estar caindo, caindo

do mundo redondo, a rodar,

no espaço escuro e gelado.

Mas pensei: você é um eu,

você é uma Elizabeth,

você é uma delas, também.

Mas por quê, por quê? Eu mal

tinha coragem de olhar

para ver o que eu era, mesmo.

Dei uma olhada de esguelha

– não dava pra ver mais de cima –

naqueles joelhos cinzentos,

calças e saias e botas

e pares de mãos diferentes

pousadas sob os abajures.

Eu sabia: nada tão estranho

jamais acontecera, e nunca

voltaria a acontecer.

 

Por que eu era minha tia,

ou eu, ou quem quer que fosse?

Que semelhanças – as botas,

as mãos, a voz da família

que eu sentia na garganta,

ou a National Geographic

e os peitos caídos, horrendos –

nos mantinham todas juntas

ou nos tornavam uma só?

Que coisa – eu não conhecia

a palavra – mais “improvável”...

Como eu fora parar ali,

como elas, pra escutar

um grito de dor que podia

ter sido maior, mas não foi?

 

A sala de espera era clara

e quente demais. Deslizava

sob uma onda grande e negra,

e outra, e outra, e mais outra.

 

E voltei à sala. Era tempo

de guerra. Lá fora, em Worcester,

Massachusetts, estava úmido,

escuro e frio, e ainda era cinco

de fevereiro de mil

novecentos e dezoito.


Referência:

BISHOP, Elizabeth. In the waiting room / Na sala de espera. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 320, 322 e 324; em português: p. 321, 323 e 325.