Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS
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terça-feira, 31 de março de 2015

Alexander Pope - Ensaio sobre a Crítica

Temos aqui uma extensa postagem com a primeira das três seções do “Ensaio sobre a Crítica”, do inglês Alexander Pope. A tradução que apresentamos – e o seu original –, podem ser obtidos integralmente neste endereço eletrônico.

O ensaio, a rigor, apesar de ter a forma de um longo poema, com rimas e métrica, expressa-se como se prosa fosse, o que não deixa de surpreender o leitor, haja vista que os ensaios, modo geral, costumam ter forma livre, alguns a configurar livros inteiros.

Mas o que importa mesmo é a pertinência dos argumentos de Pope, bem assim a maravilhosa transposição feita ao português pela lusitana Marquesa D’Alorna, que, como se afirma do frontispício da obra (LENCASTRE, 1844), era conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe.

J.A.R. – H.C.

Alexander Pope
Apresentação de Ary de Mesquita
(MESQUITA, 1988, p. 188-189)

Alexander Pope, ilustre poeta inglês, nasceu em Londres a 21 de maio de 1688, e morreu no dia 30 de maio de 1744 em Twickenham.
Aos oito anos de idade, sob a orientação de um padre, aprendeu os rudimentos de latim, grego e história. Sendo, desde criança, muito doente, e impossibilitado de traquinar com os meninos de sua idade, Pope, por índole amigo das letras, transformou os estudos em único entretenimento, Um dos seus passatempos favoritos era o de traduzir os grandes clássicos da antiguidade. Mais tarde, quando já literato, traduziu de Ovídio o episódio de Safo e Faon e a fábula de Dríope, e de Homero a Ilíada e a Odisseia etc.
Aos dezesseis anos escreveu quatro “Pastorais” cuja correção e elegância revelam a mão de um artista consumado ao invés de trair a pena de um adolescente. Aos vinte e um anos, isto é, no princípio da vida, compôs o Essay on Criticism (Ensaio sobre a Crítica), que é uma obra notável. Começou, por assim dizer, como outros acabaram, pois, tanto a Arte Poética de Horácio, como a de Boileau, e a de Vauquelin de La Fresnaye etc., são obras da maturidade. Os verdes anos com que Pope compôs a sua Arte Poética (esse nome também caberia ao seu Ensaio Sobre a Crítica) não o impediram de lhe dar uma forma elegante e corretíssima, e de recheá-la de mais graça e leveza do que, antes, Boileau fizera com a sua. No gênero lírico, que não era o seu forte, Pope deixou uma linda amostra: Eloisa to Abelard, poemeto em que a grande amorosa francesa narra poeticamente o seu desventurado amor, a sua revolta e os seus infortúnios.
Entre as mais célebres produções de Pope é necessário citar The Rape of the Locke (O Rapto da Madeixa), a que o próprio autor e os seus coetâneos deram uma importância que boja ninguém lhe concede, dada a futilidade do assunto. Desse poema já agora só lhe podemos elogiar a forma. Coisa semelhante acontece com outra composição do poeta: The Dunciad (O termo não tem tradução portuguesa, mas sem violentar a índole da língua poderíamos dizer A Parvoeira) que deliciava com as suas ninharias a alta roda fátua e superficial daquela época.
Das suas obras originais as mais sólidas são Essay on Man (Ensaio sobre o Homem) e Moral Essays (Ensaios Morais), ambas constituídas de epístolas. Nelas é que o autor apresentou as suas concepções filosóficas e morais. Digo obras originais porque não foram traduzidas nem confessadamente imitadas, como as suas admiráveis Imitations of Horacio, mas a verdade é que as ideias delas já se encontravam em Bolingbroke, e outros corifeus do deísmo inglês.
Como poeta, no sentido restrito da palavra, Pope foi pouco menos de medíocre. Como versificador teu incomparável. Nenhum inglês conseguiu rimar prosa nem melhor, nem mesmo tão bem como ele. Acontece, porém, que só raramente Pope conseguiu rimar poesia. Quase tudo o que saiu de sua pena era razoável, equilibrado, justo, cheio de bom senso, mas era prosaico. Só a magnificência, a correção excepcional da sua linguagem salvou o olvido mesmo o melhor da sua obra. Quanto ao resto – o que ele escreveu para se vingar dos inimigos – nem o estilo conseguiu salvar. Para que se tenha uma ideia da sua forma bastará dizer que até um escritor universalmente considerado corretíssimo, como Boileau, não atingiu um tão alto grau de perfeição como Alexander Pope.

Alexander Pope
Pintura de Michael Dahl
(1688-1744)

Ensaio Sobre a Crítica
­Tradução da Marquesa D’Alorna
(LENCASTRE, 1844, p. 69-83)

(I)

Não sei dizer qual mostra menos arte,
Se quem escreve mal, se quem mal julga;
Entre ambos, menos risco há, menos dana
O que me cansa que esse que me engana:
Dos primeiros há poucos, muitos destes;
Por um que escreve mal, dez mal censuram:
Um néscio a si somente expõe, rimando;
Mas este em verso, vale dez em prosa.

Gomo os relógios são nossos juízos;
Nenhum vai certo, e todos creem no próprio.
No vate engenho genuíno é raro;
É mais raro entre os Críticos o gosto:
Uns e outros do Céu precisam luzes;
Críticos nascem, bem como os Poetas.
Os excelentes só, outros ensinem;
E só quem bem compõe, livre censure.
Autores parciais do próprio gênio
Pode haver, é verdade; mas é menos
Parcial do que opina, quem critica?

Se de perto observarmos, acharemos
Que da Crítica o germe na alma existe:
Certo clarão despende a natureza;
Linhas ligeiras traça, mas direitas;
Esboço tênue, porém bem traçado,
Que se esperdiça mal iluminado.
Falso saber bom senso desfigura:
No labirinto das escolas quantos
Desvairando se perdem! quantos outros,
Que a natureza fez tolos somente,
Presumindo de si, mais asnos ficam!
Em busca de juízo a razão perdem,
E por desculpa, em Críticos se tornam:
Igual fogo os agita, os incendeia,
Ou possam, ou não possam, sempre escrevem,
Com a raiva de um rival, ou com o ciúme
De um custódio das belas do serralho.
Têm comichão d'escarnecer os tolos,
De estar da parte de quem ri, ou ladra.
Se Mévio escreve contra o jus de Apollo,
Há quem julgue pior do que ele escreve.

Alguns, antes de serem vates, foram
Por homens de juízo reputados;
Deram-se à Crítica, e asnos ser provaram.
Como as mulas, nem asnos nem cavalos,
Outros nem são sensatos, nem censores.
Esses pedantes, semissábios, praga
Que em cardumes abafa nossas ilhas,
Quais nas margens do Nilo esses insetos
Que encontramos informes, incompletos,
De equivoca estrutura; ninguém sabe
Que nome dar a tantas meias coisas:
Nomeá-las, requer umas cem línguas;
Mas a de um tolo há de estafar cem homens.

Ó vós, que buscais dar, merecer fama,
Alcançar de Censor o nobre nome,
Avistai os limites até onde
O gênio, o gosto, o saber vosso chega:
Não vos lanceis além, sede prudentes;
Fixai bem esse ponto em que se encontram
Senso e tolice, transgredindo a meta.
As coisas têm limites próprios, todas,
Com os quais sabiamente a Natureza
Quebra a esperteza vã do presumido.

Bem como em terras onde o mar, ganhando,
Deixa areais estéreis, noutras charcos;
Na alma onde a memória predomina,
O poder do intelecto desfalece;
Se a fantasia cálida vagueia,
Da memória as espécies brandas fogem.
Uma ciência pede um gênio inteiro:
Tão vasta é arte, e curta a mente humana;
Limitada não só a certas artes,
Mas nessas mesmas só capaz de partes.
Perdemos como os Reis, essas conquistas
Que fizeram vaidosos, só guiados
Pela estulta ambição de fazer muitas:
Manda bem cada qual sua província,
Se se acomoda àquilo só que entende.

Pelos marcos que pôs a Natureza
Formai vosso juízo, segui esta:
É sempre a mesma, certa, invariável;
Com luz universal em tudo brilha;
Vida, força e beleza nos reparte,
Que são origem, fim e prova da Arte.
Esta, só deste fundo se alimenta;
Preside às obras simples e singela:
Assim num corpo belo uma alma sabia
Nutre de espírito e vigor o todo,
Sustenta o nervo, guia os movimentos;
Não se vê, nos efeitos se percebe.
Alguns, a quem o Céu deu muito engenho,
Tanto mais devem consultá-lo atentos;
O juízo e a razão ás vezes brigam,
Intentando ajudar-se; assim disputam
Um marido e mulher, se ambos governam.
Não quer esporas o cavalo alado,
A rédea basta; e quando a Musa corre,
Contenha a fúria, mas provoque a pressa:
Pégaso, qual ginete generoso,
Mais brio mostra, se o reprime o freio.

Não legou, descobriu a Antiguidade
Essas regras que estão na Natureza;
São Natureza, o método a restringe;
Bem como se restringe a Liberdade
Com as mesmas leis que a Liberdade cria.

Observai como a sábia Grécia indica
As suas úteis regras; como e quando
Reprimir, animar se deve o voo:
Do tope do Parnaso aos filhos mostra
As difíceis veredas que trilharam;
Com os prêmios imortais do alto acena,
Força a subir esses degraus quem teme:
Tira preceitos só de exemplos grandes,
E deles colhe o que eles do Céu colhem.

O generoso Crítico ao Poeta
Somente abana o fogo; ao mundo ensina
A louvar com razão o que é louvável.
Serve a Crítica à Musa de criada,
Que a veste e adorna e faz parecer mais bela:
Mas se desta intenção alguém se aparta,
Se corteja a criada, e deixa a dama;
Se as armas viram só contra os Poetas,
Aborrecendo assim quem os ensina,
São como os Boticários, que estudando
A ciência que têm pelas receitas,
O papel de doutores representam;
Atrevidos na prática dos erros,
Receitam, matam, e dizem mal dos mestres
Alguns tasquinham, roem folhas antigas,
Nem o tempo, nem traça destrói tanto:
Privados de invenção, na insulsa forma
De planos pecos, outros nos fabricam
Receitas tolas de compor poemas;
De fofa erudição fazendo alarde,
Põem de parte o sentido quando explicam,
Ou de tal modo explicam, que este foge.

Vós cujo entendimento bem navega,
Julgai bem dos antigos o caráter;
Em cada folha discerni com gosto
A fábula, o assunto, o fim proposto;
Religião, paz, gênio da idade:
Sem ter nisto, a um tempo, os olhos fitos,
Invectivar podeis, criticar nunca.
Vosso estudo e deleite as obras sejam
Do vate Homero, do Parnaso gloria;
Lede-o de dia, á noite meditai-o;
Por ele modelai vosso juízo,
Tirai máximas dele que vos levem
Até á origem da Castália fonte.
Lede, relede o texto; comparai-o
Consigo mesmo; e logo depois seja
A Mantuana Musa seu comento.

Quando na mente imensa o moço Maro
Primeiro desenhou obra tão rara,
Que havia durar mais que a imortal Roma,
Parecia talvez que desprezando
Da Crítica os preceitos, só queria
As fontes esgotar da Natureza:
Mas depois, quando viu parte por parte
O que tinha composto, e a gentileza,
Viu que era o mesmo Homero e Natureza.
Convencido, o desígnio audaz reprime;
Estritamente ás regras se conforma,
E a trabalhosa empresa continua
Bem como se presente o Estagirita
Atento presidisse a cada linha.
A justa estima das antigas regras
Daqui se aprenda; Natureza imita
Só quem as segue, quem imita Homero.

Belezas há que as regras não declaram,
Que nascem de ventura e de cuidado.
Musica e Poesia se assemelham;
Graças sem nome e sem lições têm ambas,
Que só atinge mão de mestre, ás vezes.
Se onde as regras não chegam quanto basta,
(Pois são método só de encher assumptos)
Uma feliz licença corresponde
Ao intento, então é regra a licença.
Pégaso assim, para encurtar caminho,
Foge atrevido da trilhada senda,
Do limite vulgar audaz se afasta,
E ganha graça além do alcance da arte;
A qual, sem respeitar censuras, vence
Os corações, e chega ao fim de um salto.
Fora da ordem natural das coisas
Algumas há de que o prospecto agrada;
Informes rochas, precipícios, grutas.
Grandes gênios tombem erram com glória,
Fazem erros que a Crítica respeita.
Mas se os antigos às leis próprias faltam,
(Como Reis que revogam leis que fazem)
Vós, modernos, sentido! Se é preciso
Pecar contra o preceito, seu fim sempre
Vos esteja presente, em transgredindo:
Sejam raras as vezes, e forçadas,
Justificadas por exemplos grandes.
De outra sorte, sem freio, e sem remorso,
Da vossa fama a Crítica se apossa,
Prossegue, e suas leis com força alega.

Bem sei que alguns, com presumida ideia,
Esses rasgos sublimes erros chamam;
Que as figuras ao perto, ou destacadas,
Monstros e informes coisas lhes parecem,
Às quais, no seu lugar e luz expostas,
A devida distancia concilia,
Com a forma bela, graças e harmonia.
Nem sempre desenvolve um Chefe sábio
Igualmente nos renques poder e arreio;
Com seu tempo e lugar os proporciona;
Encobre a sua força; e mesmo às vezes,
Por mais dissimular, finge uma fuga.
Estratagemas há que erros parecem;
Não cabeceia Homero; nós sonhamos.

De louros verdes inda ornados vemos
Os antigos altares; não lhes chega
Nem sacrílega mão, nem voraz fogo;
Da cólera feroz da Inveja isentos,
Da Guerra e Tempo gastador seguros.
Vede os Sábios, que vem trazendo incensos
De cada clima: os Pæans aprovadores
Atentos escutai nas línguas varias!
Resoe em cada voz tão justo a p pia uso,
E do gênero humano o coro se encha.
Salve, ó Bardos sublimes, triunfantes,
Que nascestes em dias mais ditosos!
Herdeiros imortais do geral prêmio!
Cujas honras com o tempo vão crescendo,
Como engrossam torrentes que se aumentam
Á medida que as terras vão lavando:
Vossos nomes potentes, hão de ouvi-los
Nações que hão de nascer; hão de aplaudi-los
Mundos que inda não foram descobertos.
Desse fogo celeste uma faísca
Venha inflamar a débil, triste Alcipe,
Que adejando de longe quer seguir-vos;
Que arde quando vos lê, treme se escreve
Para ensinar aos gênios presumidos
A ciência, que pouco se conhece,
De apreciar talentos superiores,
E com modéstia duvidar dos próprios.

Referências:

LENCASTRE, D. Leonor D’Almeida P. L. (Marquesa D’Alorna, Condessa D’Assumar e D’Oeynhausen). Obras poéticas. Tomo V. Edição bilínguue. Lisboa, PT: Imprensa Nacional, 1844.

MESQUITA, Ary de (Seleção, prefácio e notas). O Livro de ouro da poesia universal: 30 séculos de poesia do século IX a.c. até o século XX. Antologia. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint/Ediouro, 1988.

terça-feira, 17 de março de 2015

Arantes - O Enigma de “Ulisses” Decifrado

Para os fãs de “Ulisses” (“Ulysses”, 1922), uma já clássica obra do irlandês James Joyce, transcrevemos um guia, de autoria do tradutor José Antonio Arantes, com pequenas adaptações. São rápidas sumas de cada um dos dezoito episódios deste livro que, a cada ano, motiva celebrações no “Bloomsday”, ou melhor, 16 de junho, mesma data em que se passa a história narrada pela obra, no já distante 16 de junho de 1904.

J.A.R. – H.C.
James Joyce
(1882-1941)

Um Guia para Entender Ulisses
(José Antonio Arantes)

Quatro Personagens

Leopold Bloom tem 38 anos, filho de pai judeu imigrante, o húngaro Rudof Virag (que ao chegar à Irlanda mudara o nome para Rudolph Bloom) e Ellen Higgins, não judia. Corretor de anúncios de jornal. Casado com Molly Bloom. Pai de Milly Bloom. O casal teve um filho, Rudy, que viveu apenas onze dias, de 29 de dezembro de 1893 a 9 de janeiro de 1894. Bloom, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenofóbica de Dublin. Quando o encontramos, ele relembra o suicídio do pai e a ausência do filho, preocupa-se com a fi lha adolescente e remói a suspeita de uma traição de Molly.
Molly Bloom, 34 anos, é mulher de Leopold, mãe de Milly. Cantora soprano. Nascida em Gibraltar no dia 8 de setembro de 1870, com o nome Marion Tweedy, mudou-se para Dublin aos 16 anos, com o pai, o major Brian Tweedy. A mãe, Lunita Laredo, talvez espanhola e de família judia, teria morrido ou abandonado a família quando Molly era nova. Molly é vista por outras personagens como mulher sensual, voluptuosa e até prostituta. Só aparece substancialmente no fim da narrativa, enquanto o marido dorme, no extraordinário monólogo.
Stephen Dedalus é único personagem em Ulisses que aparece no romance anterior de Joyce, Um retrato do artista quando jovem. Neste, Stephen é enfocado desde a infância até a juventude, dos primeiros estudos à universidade, da complexa formação de um artista inconformado até a recusa ao provincianismo cultural e político, à sociedade católica coerciva, e a inevitável partida para Paris.
Em Ulisses, Stephen retorna à Irlanda devido à morte da mãe. Por falta de dinheiro e indecisões, permanece em Dublin, onde mora com Mulligan no litoral num antigo forte circular, a torre Martello, do tempo das guerras napoleónicas. Leciona numa escola para adolescentes e continua a pregar a estética em que acredita.
Malachi “Buck” Mulligan é estudante de medicina e escritor que, sem se importar de fazer concessões em relação à arte, começa a se integrar no círculo literário de Dublin. Mora na torre Martello com Stephen Dedalus, de quem é amigo e rival.
O Enredo
Oito horas da manhã na torre Martello, à beira-mar, onde Stephen Dedalus mora com Mulligan. O inglês Haines, amigo de Mulligan, é hóspede. Mulligan e Stephen discutem arte: Stephen preza a arte íntegra e despreza a concessão para obter reconhecimento, que é a posição de Mulligan. A tensão subliminar entre os dois é aumentada por Haines, que pretende estudar o renascimento da literatura irlandesa e admira o folclore. Revela-se antissemita. Stephen vê em Haines um representante do colonizador, opressor da Irlanda. Tomam o café da manhã e saem. Mulligan vai se banhar. Dois homens procuram o corpo de um afogado.
Parte I: Telemaquíada
1. Telêmaco:  Stephen sente que não há mais lugar para ele na torre. Entrega as chaves a Mulligan e parte, sem intenção de voltar. Stephen Dedalus é apresentado como artista. Mulligan e Haines equivalem aos pretendentes de Penélope (da Odisseia) e a partida de Stephen simboliza a busca de um pai (no caso, espiritual). Stephen, que já havia deixado a casa dos pais, começa o dia assediado pelo espectro da mãe; remói a culpa de não ter rezado por ela no leito de morte um ano antes. A narração combina o realismo com o monólogo interior (a técnica narrativa é juvenil).
2. Nestor: Stephen vai para a escola onde leciona, a poucos quilômetros da torre, no sudeste de Dublin. Os alunos comportam-se mal e Stephen não consegue controlá-los. Terminada a aula, fica na classe para orientar o garoto Cyril Sargent, atrasado em matemática. Stephen se identifica com Cyril quando menino. Imagina-o protegido dos males do mundo pela mãe. Libera-o para jogar hóquei e procura o diretor da escola, Garrett Deasy, para receber o pagamento. Deasy discursa sobre economia, aconselha Stephen a controlar as finanças, defende o unionismo como se fosse inglês, explica mal as relações entre Inglaterra (o dominador) e Irlanda (a dominada), revela-se antissemita, tal como Haines (“a Irlanda nunca perseguiu judeus porque nunca os deixou entrar”). Deasy escreveu uma carta de alerta para os perigos de epidemia de febre aftosa e entrega-a a Stephen para, por meio de sua influência, publicá-la em jornal. O episódio enfatiza a situação histórica da Irlanda (a arte aqui é história) e ressalta o deslocamento de Stephen, tanto físico como psicológico. Por meio do menino Cyril, é introduzido o tema do amor materno, associado sutilmente ao espectro da mãe de Stephen. O monólogo interior é utilizado durante todo o episódio, mais intensamente no início e no fim.
3. Proteu: Depois de sair da escola, Stephen anda pela praia a caminho do centro de Dublin. Reflete sobre filosofia e estética, evocando o filósofo grego Aristóteles e o poeta inglês William Blake, entre outros. Passa pela casa dos tios e imagina uma visita que não faz. Reflete sobre o que aspirou, realizou e não realizou, sobre os anos em Paris como estudante de medicina e autoexilado. Imagina a vida pregressa de duas pessoas que vê na praia. Num pedaço de papel que arranca da carta de Deasy, anota os versos de abertura de um poema simbolista. Stephen reflete sobre o visível e o invisível, o mundo objetivo como sinais que exigem interpretação, a transformação de tudo no tempo e no espaço, na própria mente. O grande significado aqui é a matéria primordial, a água, e o símbolo a evolução e a metamorfose. Correm sublinarmente os temas da mãe, da mulher e da fertilidade. Monólogo interior intenso (masculino).
Parte II: Odisseia
4. Calipso:  Oito horas da manhã, casa número 7 da rua Eccles, noroeste de Dublin. Leopold Bloom prepara o café da manhã para si, para a mulher e para o gato. Resolve comer rim de porco, vai ao açougue comprar. Vê uma mulher que lhe desperta devaneios. Volta para casa, recolhe a correspondência. Uma carta da filha Milly, outra de Blazes Boylan endereçada a Molly. Blazes organizou uma turnê de concertos que inclui Molly, mas Bloom desconfia que a mulher o trai com Blazes. Bloom come o rim tostado, vai ao banheiro, fora da casa, com um jornal. Prepara-se para ir ao enterro de um amigo, Paddy Dignam. Este capítulo apresenta o personagem que se pode interpretar como a encarnação de Odisseu, o pai espiritual de Stephen. O monólogo interior prevalece, mas diferente, porque Bloom é um homem comum. O devaneio ocupa-lhe a mente, sugerindo temas que vão e voltam ao longo do romance, como sionismo e erotismo (os símbolos aqui são Israel, família, vagina).
5. Os Lotófagos:   Bloom sai de casa e anda pelas ruas de Dublin. Pensa em anúncios, ciência. Carrega uma carta que recebeu endereçada a Henry Flower (seu pseudônimo), enviada por Martha Clifford, que nunca conheceu, mas que sempre lhe escreve. Vai à igreja, à farmácia. Reflete sobre remédios, produtos químicos. Um conhecido pede-lhe o jornal emprestado, para verificar informações sob corrida de cavalos. O tema da sensualidade e da sexualidade vai se formando, com as fantasias sobre Martha. Os jogos de palavra também se estabelecem: o nome Henry Flower e Bloom remetem à florescência, o desejo sexual que aflora (a correspondência direta com Homero é lotófagos); o nome do cavalo que o amigo vai apostar é Throwaway (jogar fora). O significado aqui é sedução e lealdade.
6. Hades: Bloom vai ao enterro de Dignam com amigos. No cemitério, conhece pessoas, entre elas o jamais identificado homem “de capa impermeável”. Reflete sobre nascimento, morte, transitoriedade, o filho Rudy o pai suicida. Participa de conversas sobre a morte que desembocam na situação da Irlanda após a morte do líder do Partido Nacionalista Irlandês, Charles Stewart Parnell. A correspondência com Homero é o episódio da Circe, a deusa-feiticeira que aconselha Odisseu a descer aos infernos e consultar os mortos para tentar encontrar um rumo. As pessoas que Bloom conhece representam esses mortos. O significado é a descida ao nada, e os símbolos o homem desconhecido e o inconsciente. Joyce denomina a técnica “incubismo”.
7. Éolo: Bloom vai à redação dos jornais onde trabalha, Freeman’s Journal e Evening Telegraph, para fechar o contrato de um anúncio. Stephen aparece para entregar a carta do diretor da escola. Um vento forte sopra quando as portas se abrem, fazendo voar papéis. Histórias ligadas ao jornalismo, discursos e política (Grã-Bretanha comparada com Roma, Israel com Irlanda), exílio. Stephen e outros vão para o bar, Bloom vai para a Biblioteca Nacional pesquisar o layout para um anúncio. Joyce substitui o monólogo interior pela linguagem do jornalismo, com o uso abundante de manchetes. O vento representa a retórica pseudo-objetiva, transparece uma espécie de consciência coletiva. Joyce recorre à retórica, cuja origem é grega e romana. A narrativa é impessoal.
8. Os Lestrígones: Bloom continua a andar por Dublin, pensando no passado: Molly amores de Molly, nascimento e família. Avista a irmã de Stephen da rua, alimenta aves, pensa em publicidade, Encontra uma conhecida, ex-amor passageiro, que lhe conta que a senhora Purefoy está internada na maternidade. Bloom, com fome, entra no bar David Byrne. Sai do bar, ajuda um cego a atravessar a rua. Joyce retoma o monólogo interior para retratar Bloom como homem bondoso e solidário. O pensamento que corre quase imperceptível, como se reprimido, é a suspeita de traição de Molly com Blazes Boylan, que ele receia encontrar. O significado aqui é melancolia. Joyce constrói o capítulo com associações de ideias.
9. Cila e Caribde: Stephen discute Shakespeare com um grupo de intelectuais, entre eles A. E., na Biblioteca Nacional. Stephen expõe sua teoria da criação literária, utilizando o idealismo defendido por A. E. e o materialismo defendido por Mulligan para mostrar que arte e vida interagem. Com base na teologia, filosofia e literatura, defende que Hamlet seria fruto de uma relação verdadeira; assim como o filho de Shakespeare, Hamlet, teria sido fruto de uma relação adúltera de Ann Hattaway. O pai fantasma na peça seria Shakespeare, Hamlet fruto do espírito criativo do dramaturgo, a traidora Gertrude seria Hathaway. Mulligan aparece na biblioteca, ridiculariza a teoria de Stephen. Bloom chega e parte. Mulligan ridiculariza Bloom por ser judeu e afirma que Bloom deseja Stephen. Saem todos da biblioteca. A narrativa adota o estilo de Stephen das três primeiras partes. A ênfase na teoria de Hamlet de certa forma mina a teoria estética de Stephen.


10. As Rochas Ondulantes: Abundância de personagens, entre eles o padre Conmee, as irmãs de Stephen e Blazes Boylan. Os acontecimentos são praticamente impossíveis de recontar com brevidade. O episódio consiste em dezoito narrativas breves, desconectadas e sem sequência temporal. Vários motivos se repetem, como se a narrativa principal não tivesse rumo a tomar. É a interpretação de Joyce do episódio de Circe, na Odisseia de Homero, em que ela sugere a Odisseu que não tome determinado rumo. O significado é ambiente hostil, a técnica labiríntica, os símbolos homônimos, sincronizações e semelhanças. Note-se que o romance tem dezoito episódios sobre as errâncias (internas e externas) dos personagens num único dia.
11. As Sereias: Bloom compra jornal, vê o carro de Blazes Boylan estacionado em frente ao hotel Ormond e desconfia que ele está lá dentro. Entra com o amigo Ritchie Goulding. Boylan flerta com as garçonetes e vai embora. Simon Dedalus, pai de Stephen, toca ao piano e canta, Ben Dollard canta uma balada sobre a revolta irlandesa. Atmosfera de nacionalismo. Bloom, alheio, pensa em Molly, escreve uma resposta à carta de Martha Cardiff. Depois sai. O episódio compõe-se de inúmeros fragmentos que se relacionam como uma fuga. A técnica adequada às sereias é a música; daí estar repleto de canto e música. Falas e associações também são arranjadas como música, algumas palavras fragmentadas a ponto de se tornarem puros sons. A narrativa lógica se dilui e a música é uma espécie de voz narradora. Resta a mente de Bloom, de novo desconfiado de que Boylan foi visitar Molly.
12. Os Ciclopes: Bloom dirige-se para o bar de Barney Kiernant, Tavern, onde pretende se reunir com Martin Cunningham para conversar sobre os assuntos da família Dignam. Lá está o personagem Cidadão, nacionalista ferrenho. Bloom entra. O Cidadão fala de pena de morte. Bloom tenta conversar com ele com jeito. O Cidadão desdenha Bloom, afirmando que a Irlanda está cheia de estrangeiros, discursa sobre a história irlandesa. Bloom fala de amor e compreensão, ciente de sua ascendência judia, depois sai. Lenehan acha que o cavalo em que Bloom teria apostado (Throwaway) foi o vencedor. O Cidadão se enfurece. Bloom volta e o Cidadão, violento, força Bloom a deixar o bar. Um dos capítulos mais complexos, a narrativa é interrompida por inúmeras passagens paródicas voltadas para si mesmas, indo do discurso jurídico e lendas irlandesas, eventos sociais e religiosos a desastres da natureza. Há um narrador não identificável e outro que é o Cidadão. No paralelo com Homero, o Cidadão é o Ciclope, que vê tudo segundo um único ponto de vista, sobretudo a ordem estabelecida. Os símbolos são a nação, o Estado, o fanatismo; a técnica é o gigantismo.
13. Nausicaa: Novos dublinenses aparecem na praia de Sandymount, onde Stephen caminhou às oito da manhã (agora são oito da noite): Gerty MacDowell, Edy Boardmanm e Cissy Caffrey e os irmãos desta. Gerty irrita-se com a algazarra dos meninos. Devaneia, pensa no homem que a rejeitou e em coisas religiosas. Bloom está na praia, um pouco distante. Gerty pensa nele romanticamente. Começa queima de fogos de artifício. As amigas saem correndo, Gerty fica, insinuando-se levemente e deixando que Bloom lhe entreveja as pernas. Quando ela se vai, Bloom percebe que é manca. Antes disso, Bloom já havia se masturbado. Pensa nos filhos, pensa em Gerty. Os estilos aqui variam conforme as personagens. O de Gerty é tirado de um romance romântico. O romantismo possibilita a Joyce “revelar” o impulso sexual subjacente e o erotismo discreto. Os fogos de artifício estouram no exato momento do orgasmo de Bloom. Com a partida de Gerty, o ponto de vista narrativo volta para Bloom. A traição de Molly retorna com o canto de um cuco. O significado é a ilusão projetada; os símbolos, o onanismo, a mulher, a hipocrisia; a técnica, tumescência, detumescência.
14. O Gado do Sol: Na maternidade do hospital de Dublin, a senhora Purefoy está em trabalho de parto. Bloom a visita. Stephen, Lenehan, Lynch e Mulligan festejam ruidosamente. Discutem a ética da medicina em relação a um parto malsucedido e à prevenção da gravidez. Bloom pensa no filho morto. Stephen discorre sobre literatura. Cai um temporal, que Bloom explica cientificamente. A enfermeira pede-lhes silêncio duas vezes. O menino nasce. O grupo vai embora. Stephen e Lynch vão para a zona de prostituição. Outro episódio complexo: aos nove meses de gravidez correspondem várias vozes, estilos da literatura inglesa, linguagem simbólica, disparates, gíria e discurso religioso. A linguagem vai do primitivo à modernidade. De acordo com uma visão corpórea do romance, Joyce põe na linguagem a mediação da realidade física. A técnica, como ele informou, é o “desenvolvimento embriônico”; os símbolos são fecundação e partenogênese; a arte a medicina.
15. Circe: Meia-noite, bordel de Bella Cohen. Stephen e Lynch entram, bêbados. Bloom chega. Alucina, acossado pelas visões de Gerty, Molly, do pai e da mãe. Preso por desordem, é submetido a um julgamento, durante o qual o chamam por vários nomes. Uma prostituta lhe diz que Stephen está na sala de música. Bloom transforma-se no avô de Stephen; Stephen transforma-se num cardeal ao discutir teologia. A dona do bordel, Cohen, troca de sexo com Bloom e o submete a castigos. O espectro da mãe de Stephen aparece, ele destrói um candelabro e, com Bloom, é expulso do bordel. Na rua, soldados rasos espancam Stephen por ter ofendido o rei e o largam inconsciente na calçada. A polícia chega. Bloom resolve a situação. O filho Rudy aparece em visões. Um episódio em que objetividade e subjetividade se interpõem, a alucinação substitui o realismo. Joyce chama a zona de prostituição de “cidade da noite”, uma metáfora do inconsciente, lugar propício para fantasias, pesadelos e realizações de desejos. Densamente metafórico, na diluição das fronteiras concretiza-se o encontro mais profundo de Bloom e Dedalus. A arte é a magia; os símbolos são zoologia, personificação.
Parte III: Nostos
16. Eumeu: Bloom leva Stephen para o abrigo de motoristas de praça, não longe da cidade da noite. Stephen encontra um amigo desempregado e recomenda procurar emprego na escola de Deasy, de onde resolveu se demitir. No abrigo, bebem café e conversam com um marinheiro, W. B. Murphy. Bloom sonha em viajar. Bloom fala do encontro com o Cidadão, mas Stephen não lhe presta atenção. Mostra a fotografia de Molly. Os dois saem do abrigo. A narração é convencional, mas com vários estilos. Novas personagens parecem ser simuladas, como se ocultassem a identidade. O mesmo aplica-se a Stephen e Bloom. Vaguidão e incoerência permeiam o episódio. A arte é a navegação; o símbolo são marinheiros; a narrativa é senil.
17. Ítaca: Bloom leva Stephen para casa, o mesmo número 7 da rua Eccles. Como Stephen, está sem a chave da porta da frente (perdeu-a). Pula a grade para entrar pela porta dos fundos, não querendo acordar Molly. Prepara um chocolate e os dois rememoram tempos passados. Arte,no caso de Stephen; ciência, no caso de Bloom. Bloom convida-o a morar com ele e Molly. Stephen entoa uma cantiga sobre uma menina judia. Bloom convida Stephen para passar a noite. Stephen recusa. Vão para o jardim e urinam, enquanto no céu passa uma estrela cadente. Stephen vai embora. Bloom volta a entrar. Guarda a carta que escreveu para Martha Cardiff numa gaveta, depara-se com coisas que lhe trazem lembranças. Repassa o dia que findou. Vai para o quarto. Sente na cama a presença de Boylan. Deita-se com a cabeça voltada para os pés de Molly, posição fetal, e dorme. Próximo do fim, o romance parece carecer de amarração. E um episódio com a técnica do catecismo (impessoal), em forma de perguntas e respostas. As respostas muito precisas e científicas (por exemplo, a reflexão sobre o complexo sistema que leva a água à torneira da cozinha de Bloom). O “fim” é o encontro de Bloom e Stephen como pai e filho espirituais (Joyce usa as composições “Stoom e Blephen”), mas também a separação um do outro, ao menos neste dia. E é um distanciamento também de Homero. O símbolo são cometas.
18. Penélope: Na cama, Molly reflete sobre o marido, o encontro com Boylan, o passado, as esperanças. Suspeita que Bloom tenha uma amante, pensa nos próprios amantes idos. Aspira a um grande futuro. Pensa em Gibraltar, na filha. É interrompida duas vezes, uma por um apito de trem, outra pelo início da menstruação. Pensa no médico, em Stephen, no filho morto e em Bloom. O relógio toca. Lembra-se de quando fez sexo com Bloom pela primeira vez. Este longo e último episódio, sem pontuação gráfica, é um monólogo interior fragmentado, com frases ligadas ininterruptamente por associações. Há o infinito, a intemporalidade, a ausência de identificação. Segundo o próprio Joyce, as oito frases de Molly começam e terminam com “sim” porque são a afirmação do “eterno feminino”: “Mulher, sou a carne que sempre afirma”.
José Antonio Arantes é tradutor de autores de língua inglesa, como James Joyce, Virgínia Woolf, William Blake. É bacharel em língua e literatura inglesa (USP). 


Referência:

ARANTES, José Antonio. Como entender Ulisses. In: Aguiar, Josélia (Ed.). 7 clássicos ingleses. São Paulo, SP: Duetto, 2010. p. 86-97. (Coleção ‘7 Clássicos’)

PINHEIRO, Bernardina da Silveira. Esquema dos episódios. In: JOYCE, James. Ulisses. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2007. p. 19.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

T. S. Eliot - O Poeta e a Poesia

Eliot, o grande poeta e crítico literário inglês, muito refletiu sobre a sua arte, deixando-nos um conjunto de ensaios que, ainda hoje, repercute nos meios acadêmicos. Num deles, “Tradition and the Individual Talent”, de 1919, declina os seus pontos de vista sobre o que seria o respeito à tradição, sem entrega a um mero processo de repetição “ad infinitum”, senão pelo contraste ao que, segundo o autor, conforma os “monumentos existentes”.

 

Notemos que Eliot alude a tais monumentos existentes dentro de uma “ordem ideal”, ordem que somente se romperia pelo surgimento de uma obra realmente nova. E sabe você, internauta, o que esse argumento fez-me lembrar? Do conceito de “paradigma”, cunhado pelo físico norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), para designar um referente capaz de romper o estado da arte na pesquisa de um determinado campo do saber.

 

Assim, se a homologia for mesmo válida – pois tenho suspeitas quanto a isso! –, uma obra de arte, ou mesmo um movimento literário paradigmático, não se compagina com os seus precedentes, embora não os ignore, mas se erige em contraposição a estes. Talvez possa não constituir algo “ab ovo”, mas certamente representa novas linhagens conceituais que apontam para um futuro, sem replicar modorrentamente os cânones do passado.

 

O “Modernismo” seria um caso?! Os representantes da “Semana de Arte Moderna” (11 a 18 de fevereiro de 1922), por conhecerem muito bem o passado daquilo que constituía a então chamada “Literatura Brasileira”, sabiam muito bem o que não queriam, embora o que, de fato, propugnavam se arrogasse muito mais como uma causa do incógnito.

 

Em outra passagem do mesmo ensaio, Eliot parece falar com os críticos que apreciam a abordagem biográfica do artista da palavra, imbricada com elementos extraliterários, conquanto, a seu ver, carente de melhores perspectivas capazes de dar conta do fenômeno artístico em sua plenitude.

 

Como defendo o credo de que o leitor atento é suficientemente capaz de interpretar um texto, bem à sua maneira, de forma a captar o sentido que o escritor-interlocutor diligencia em lhe transmitir, passo à transcrição das passagens que considero eloquentes no precitado ensaio de Eliot.

 

Mesmo assim, internauta, não deixe de cismar deste que vos fala: estou lhe posicionando em frente a duas telas entre as muitas no corredor de um museu. Você poderia me perguntar: por que não outras duas telas, noutra ala desse mesmo ou de outro museu?! Então lhe responderia: “visita direcionada” é isso mesmo! Você aceita ou não o caminho por onde lhe levam. Perceba-se que não há neutralidade nas perspectivas selecionadas! (rs).

 

J.A.R. – H.C. 

 

Thomas Stearns Eliot

(1888-1965)

 

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral; o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles (ELIOT, 1989, p. 39).

 

Desviar o interesse do poeta para a poesia é um objetivo louvável, pois isso levaria em verdade a uma avaliação mais justa da poesia atual, quer seja boa, quer seja má. Há muitas pessoas que apreciam a expressão de uma emoção sincera em verso, e há um grupo mais seleto de pessoas que podem apreciar a excelência técnica. Mas muito poucos sabem quando ocorre uma expressão de significativa emoção, emoção que tem sua vida no poema, e não na história do poeta. A emoção da arte é impessoal. E o poeta não pode alcançar essa impessoalidade sem entregar-se ele próprio inteiramente à obra que será concebida. E não é provável que ele saiba o que será concebido, a menos que viva naquilo que não é apenas o presente, mas o momento presente do passado, a menos que esteja consciente, não do que está morto, mas do que agora continua a viver (ELIOT, 1989, p. 48).

 

Referência:

 

ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: __________. Ensaios. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989. p. 37-48.