Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de maio de 2022

Louise Glück - A Rosa Branca

A rosa do poema fala com uma voz humana, perquirindo os seus problemas existenciais a uma figura à janela (um jardineiro?), qualificável apenas como uma evocada “luz”, à maneira como divagamos perante o Eterno: a flor espera por explicações em relação à sua vida e, não as obtendo, julga a lacuna como um sinal de que ambos – a flor e a figura (já agora adjetivada em seu oposto, ou melhor, como negritude) – não têm mesmo chances de sobreviver ao “clima” terrenal.

 

A rosa afirma ter apenas “o corpo como voz”, não podendo “desaparecer no silêncio”, primeiramente para denotar a rigidez da sua condição de “aprisionada” à terra, e, depois, para consignar que essa restrição em sua liberdade de movimentos, com “n-1” graus de liberdade, é como um vaticínio hamletiano à sua própria finitude.

 

J.A.R. – H.C.

 

Louise Glück

(n. 1943)

 

The White Rose

 

This is the earth? Then

I don’t belong here.

 

Who are you in the lighted window,

shadowed now by the flickering leaves

of the wayfarer tree?

Can you survive where I won’t last

beyond the first summer?

 

All night the slender branches of the tree

shift and rustle at the bright window

Explain my life to me, you who make no sign,

 

though I call out to you in the night:

I arn not like you, I have only

my body for a voice; I can’t

disappear into silence –

 

And in the cold morning

over the dark surface of the earth

echoes of my voice drift,

whiteness steadily absorbed into darkness

 

as though you were making a sign after all

to convince me you too couldn’t survive here

or to show me you are not the light I called to

but the blackness behind it.

 

Rosas Brancas

(Henri Fantin-Latour: pintor francês)

 

A Rosa Branca

 

Isto é a terra? Então

não sou daqui.

 

Quem és tu na janela acesa,

agora à sombra das folhas trêmulas

do viburno?

Podes sobreviver onde não vou durar

além do próximo verão?

 

A noite inteira os galhos esguios da árvore

movem-se e sussurram à janela iluminada.

Explica a minha vida, tu que não fazes sinal algum,

 

embora eu chame por ti na noite:

não sou como tu, tenho apenas

meu corpo como voz; não posso

desaparecer no silêncio –

 

E na minha fria

sobre a superfície escura da terra

vagueiam ecos da minha voz,

brancura que firme se consome em escuridão

 

corno se finalmente fizesses um sinal

para me convencer de que também não pudeste

sobreviver aqui

ou para me mostrar que não és a luz que chamei

mas o breu atrás dela.

 

Referência:

 

GLÜCK, Louise. The white rose / A rosa branca. Tradução de Maria Lúcia Milléo Martins. In: O’SHEA, José Roberto (Org.). Antologia de poesia norte-americana contemporânea. Tradução de Maria Lúcia Milléo Martins. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, 1997. Em inglês: p. 40; em português: p. 41.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Alberto da Costa e Silva - Elegia

Morrer para renascer outra vez como criança, em nova infância; sazonar, experimentar o fluxo e o refluxo de todas as coisas, nesse reino do espírito, para se poder viver a eternidade em tudo que é lábil: tais são as metáforas empregadas pelo poeta para dar vazão a esse sentimento pungente de finitude.

 

Aniquilamento e iniciação, mistério e revelação, libertação e êxtase são díades que se firmam no sentido mais profundo da morte: resistir à mudança é jamais chegar à maturidade; é concentração, condensação, cristalização na inércia, ignorando a infinita variedade das formas, em contínuo movimento de friabilidade e reintegração.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alberto da Costa e Silva

(n. 1931)

 

Elegia

 

Sofrer esta infância, esta morte, este início.

As cousas não param. Elas fluem, inquietas,

como velhos rios soluçantes. As flores

que apenas sonhamos em frutos se tornaram.

Sazonar, eis o destino. Porém, não esquecer

a promessa de flores nas sementes dos frutos,

o rosto de teu pai na face do teu filho,

as ondas que voltam sobre as mesmas praias,

noivas desconhecidas a cada novo encontro.

As cousas fluem, não param. As folhas nascem,

as folhas tombam longe, em longínquos jardins.

Em silêncio, vives a infância de teus olhos

e, morto, és tão puro que te tornas menino.

 

Elegia

(William-Adolphe Bouguereau: pintor francês)

 

Referência:

 

COSTA E SILVA, Alberto da. Elegia. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Antologias ABL: poesia / ABL’s Anthologies: poems. Idealização e apresentação de Ana Maria Machado. Organização de Domício Proença Filho e Marco Lucchesi. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: ABL, 2013. p. 4.

domingo, 29 de maio de 2022

Cristina Peri Rossi - Inseparáveis

A voz lírica – atribuível a uma pessoa do sexo feminino – dirige-se a outra pessoa do sexo feminino – talvez sua companheira ou mesmo sua mãe –, dando-lhe conta da cisão operada na proximidade física e mental de ambas, uma espécie de separação promovida mediante cirurgia em pessoas siamesas ou mesmo através de uma excisão de ordem psicanalítica.

 

De duas criaturas integradas, mental e fisicamente, a outras duas voltando a experimentar o status ontológico da individualidade humana, a solitude à volta da própria companhia, a preservação da singularidade ainda que na presença de terceiros, sem demérito, é claro, aos vínculos afetivos e sociais. Afinal, lembremo-nos da máxima de Jobim: “Fundamental é mesmo o amor: é impossível ser feliz sozinho”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cristina Peri Rossi

(n. 1941)

 

Inseparables

 

Y hubo que separar

todo aquello que estuvo siamesamente

unido

 

la carne de la carne

los labios de los labios

los dedos de los dedos

el vientre del otro vientre.

 

Y hubo que separar

todo aquello que estuvo siamesamente

unido

 

el sueño del sueño

la epidermis de la epidermis

la cutícula de la uña

las pestañas de los párpados

el iris de la mácula.

 

La cirugía obra milagros

– también el psicoanálisis –.

 

Ahora volvíamos a ser solas

individuales

tu rostro no era ya mi rostro

tu despertar ya no era el mío

ni mi mirada era la tuya.

 

Devolví al mundo lo que había devorado

feto de mi entraña

comida de mi hambre

agua de mi sed

sangre de mis venas

célula de mi tejido

hija de tu vientre

alimento de tu plato

clítoris de tu sexo

epitelio de tus ojos.

 

Ahora ya somos dos.

 

La cirugía obra milagros

– también el psicoanálisis –.

 

Instaurada otra vez y para siempre la soledad.

 

Inseparáveis

(Pavel Eryzhenskii: artista russo-americano)

 

Inseparáveis

 

E foi preciso separar

tudo aquilo que esteve siamesamente

unido

 

a carne da carne

os lábios dos lábios

os dedos dos dedos

o ventre do outro vente.

 

E foi preciso separar

tudo aquilo que esteve siamesamente

unido

 

o sonho do sonho

a epiderme da epiderme

a cutícula da unha

os cílios das pálpebras

a íris da mácula da pupila.

 

A cirurgia opera milagres

– a psicanálise também –.

 

Agora voltávamos a ser sozinhas

individuais

teu rosto já não era meu rosto

teu despertar já não era o meu

nem teu o meu olhar.

 

Devolvi ao mundo o que havia devorado

feto de minhas entranhas

comida de minha fome

água de minha sede

sangue de minhas veias

célula de meu tecido

filha de teu ventre

alimento de teu prato

clitóris de teu sexo

epitélio de teus olhos.

 

Agora já somos duas.

 

A cirurgia opera milagres

– a psicanálise também –.

 

Restabeleceu-se – e para sempre – a solidão.

 

Referência:

 

ROSSI, Cristina Peri. Inseparables. In: __________. Estrategias del deseo. 1. ed. Barcelona, ES: Lumen (Random House Mondadori), oct. 2004. p. 85-86. (‘Poesía’; n. 151)

sábado, 28 de maio de 2022

Henry Bataille - O passado (Fragmento)

O passado como um segundo coração a bater no peito, mas que, sem materialidade, somente se faz sentir por uma “violenta pulsação” “nas tardes cheias de alma em que essa voz ressoa”: as palavras do poeta, s.m.j., fala-nos da beleza nostálgica de um declínio, imagem e hora da saudade e da melancolia, quando a vida se aproxima de seu crepúsculo.

 

Há quem prefira não reviver o passado, sacudindo a poeira das sandálias, quer na tentativa de sufocar sentimentos de culpa indelevelmente gravados na memória, quer para esquecer experiências dolorosas associadas à família, amizades ou ao próprio país de nascimento.

 

Outros há, como o poeta, que procuram acessar a beleza retida nos eventos do passado, à procura de resgatar, talvez, fórmulas que deram certo para replicá-las no presente, mas que, pelo visto, acabam por desencaminhar-se no labirinto simbólico das coisas acontecidas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Henry Bataille

(1872-1922)

 

Le passé

(Fragment)

 

Le passé, c’est un second cœur qui bat en nous…

on l’entend, dans nos chairs, rythmer à petits coups,

sa cadence, pareille à l’autre cœur, – plus loin,

l’espace est imprécis où ce cœur a sa place,

mais on l’entend, comme un grand écho, néanmoins,

alimenter le fond de l’être et sa surface.

Il bat. Quand le silence en nous se fait plus fort

cette pulsation mystérieuse est là

qui continue… Et quand on rêve il bat encor,

 

et quand on souffre il bat, et quand on aime il bat…

Toujours! C’est un prolongement de notre vie…

Mais si vous recherchez, pour y porter la main,

où peut être la source heureuse et l’eurythmie

de son effluve… Rien!… Vous ne trouverez rien

sous les doigts… Il échappe. Illusion… Personne

ne l’a trouvé jamais… Il faut nous contenter

d’en sentir, à coups sourds, l’élan précipité,

dans les soirs trop humains où ce grand cœur résonne.

 

O passado era o seu melhor amigo

(Erik Pevernagie: pintor belga)

 

O passado

(Fragmento)

 

Ele é um segundo coração que bate em nós.

Surdamente, na carne, ouve-se a sua voz

Num ritmo igual ao do primeiro coração.

A gente ignora onde ele esteja: ouve-o bater

E vir, num eco imenso, numa ondulação,

Alimentar o fundo e o nível do seu ser.

Bate. Quando o silêncio é mais forte, eis que vem

Aquela pulsação misteriosa e nos chama

Sempre... e quando se sonha ele bate também,

 

Quando se sofre, bate... e bate quando se ama...

É uma continuação da nossa própria vida...

Mas, quando a gente tenta alcançá-la com a mão,

Onde esteja a cadência ou a fonte escondida

Do seu eflúvio... Nada! Inútil! Ilusão!           

Ele escapa entre os dedos. Vai-se. Foge. Voa...

Ninguém nunca o tocou... E a gente se contenta

Só com poder sentir-lhe a pulsação violenta

Nas tardes cheias de alma em que essa voz ressoa...

 

Referência:

 

BATAILLE, Henry. Le passé (Fragment) / O passado (Fragmento). Tradução de Guilherme de Almeida. In: ALMEIDA, Guilherme de (Seleção e tradução). Poetas de França. Prefácio de Marcelo Tápia. 5. ed. São Paulo, SP: Babel, 2011. Em francês: p. 148; em português: p. 149.