Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

José Vander Vieira do Nascimento - Deixa a palavra escorregar II

As palavras do poema, enquanto pura criação, existem por si mesmas, não podendo ser reduzidas a explicações, sob pena de se imergir num pélago analítico que, ao esmiuçar o que se passa nos átomos de um galho de árvore, deixa de contemplar a beleza e o encanto de uma floresta inteira: “Um poema não deve significar, mas ser”! (Archibald MacLeish)

 

Porque o poema é também o mistério e a perplexidade em que recai o olhar sobre a linguagem; janela que se abre para o esfíngico; luz e absorção interior; todos os matizes desse caleidoscópico aparato, de algum modo suscetíveis de apreensão: “Um poema deve dispensar palavras, como o voo das aves”.

 

J.A.R. – H.C.

 

José V. V. do Nascimento

(n. 1989)

 

Deixa a palavra escorregar II

 

Analisar

o poema

é tirar

do pássaro

as penas

 

Esmiuçar o

eu passarinho

faz cair

a ave

do ninho

 

Pensar demais

torna anêmico

sem sangue

sem cor:

acadêmico

 

O Pintassilgo

(Carel Fabritius: pintor holandês)

 

Referência:

 

VIEIRA DO NASCIMENTO, José Vander. Deixa a palavra escorregar II. In: MACHADO, Lino et alii. Coletânea de poemas: prêmio Ufes de literatura. Vitória, ES: Edufes, 2015. p. 118. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 jan. 2024. 

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

David Markson - Diálogo em Milão

Os versos deste poema reproduzem um hipotético diálogo entre algum membro da família dos Sforza de Milão com Leonardo da Vinci (1452-1519) e, aparentemente, outros presentes, próximo ao final da primeira estadia do artista naquela cidade, ocorrida entre 1482 e 1499.

 

O interlocutor de Leonardo acusa-o de dispersão nos trabalhos e pouca atenção aos detalhes de durabilidade e finalização de suas obras – a exemplo das frágeis pinturas sobre gesso ou mesmo do baldado esforço em levar a cabo o monumento equestre em homenagem a Francesco Sforza (1401-1466).

 

Ademais, suscita a pouca habilidade de Leonardo em trabalhos de estatuária e em amplas pinturas murais – em claro contraponto às obras de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), sobretudo em Roma.

 

O poema se encerra com a transcrição de uma frase atribuída ao grande talento do Renascimento italiano, a nos dar conta do quanto o artista então se encontrava às voltas com as questões do planejamento urbano, depois que Milão teve a sua população devastada por uma grave epidemia, entre 1483 e 1485.

 

J.A.R. – H.C.

 

David Markson

(1927-2010)

 

Dialogue in Milan

 

“But oil on plaster yet again?

It cannot set, will flake and fade

Before your own life’s done. Old fool,

Near fifty now, at least this once

Leave something permanent. That horse

You planned, too huge to cast, the years!

Go, cross the town, to sit and stare

Or single brushstroke fix! The hours

Of waste amid those notes, those drafts,

What fruit therein, what end? Back south

Commissions fall to younger brush,

Not only Raphael in Rome

But Buonarroti too, nor even stone

But on the walls as well, what skill

Hath he in this? Yet all this time

So little realized, so much

Diffuse...”

 

“ ‘Let the street be as wide

As the height of the houses.’ ”

 

Autorretrato

(Leonardo da Vinci: artista italiano)

 

Diálogo em Milão

 

“Mas outra vez óleo sobre gesso?

Não se pode fixar, irá desbotar e desvanecer

Antes que finde a tua própria vida. Velho insensato,

Já perto dos cinquenta anos, pelo menos desta vez

Deixa algo permanente. Aquele cavalo

Que planejaste durante anos, grande demais para moldar.

Retiras-te, cruzas a cidade, sentas-te a observar

Ou a recompor uma simples pincelada! As horas

Perdidas entre essas notas, esses rascunhos,

Qual o proveito disso, qual o propósito? Do lado oposto,

Ao sul, as comissões inclinam-se a pincéis mais jovens,

Não somente Rafael em Roma,

Mas também Buonarotti; não apenas na estatuária,

Como também nas paredes, que habilidade

Tem ele nesses misteres? No entanto, todo esse tempo

Tão pouco profícuo, dispersado

De fato...”

 

“ ‘Que a rua seja tão larga

quanto a altura das casas.’ ”

 

Referência:

 

MARKSON, David. Dialogue in Milan. In: __________. Collected poems. 1st ed. Normal, IL: Dalkey Archive Press, 1993. p. 32.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Marina Tsvetáeva - Diálogo de Hamlet com a consciência

Laurence Olivier (1907-1989), no prelúdio de seu renomado filme “Hamlet”, de 1948, afirma: “Esta é a história de um homem que não conseguia se revolver”. Perplexo ou desnorteado – adjetivo que, aliás, aparece em itálico e entre parênteses, interposto aos dois últimos versos da derradeira estrofe, a julgar pela transcrição do poema no sítio da poetisa na internet (v. aqui) –, Hamlet, nestes versos de Tsvetáeva, revela o quanto era, paradoxalmente, sincero e ao mesmo tempo dúbio o seu sentimento de amor por Ofélia.

 

O poema, redigido ao estilo de uma elucubração filosófica, surge titulado como se um diálogo fosse, malgrado, em verdade, seja um monólogo da personagem com a sua própria consciência: o relacionamento acabara, muito embora as imagens evocadas ao presumido suicídio de Ofélia por afogamento – lodo, algas, leito de rio – sustentem a quimera de uma miragem que teima em perdurar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Marina Tsvetáeva

(1892-1941)

 

Диалог Гамлета с Совестью

 

На дне она, где ил

И водоросли... Спать в них

Ушла, но сна и там нет!

Но я её любил,

Как сорок тысяч братьев

Любить не могут!

Гамлет!

 

На дне она, где ил:

Ил!.. И последний венчик

Всплыл на приречных брёвнах...

Но я её любил,

Как сорок тысяч...

Меньше

 

Всё ж, чем один любовник.

На дне она, где ил.

Но я её

любил??

 

5 июня 1923

 

Hamlet e sua mãe

(Eugène Delacroix: pintor francês)

 

Diálogo de Hamlet com a Consciência

 

No fundo ela, onde é lodo

E algas.... Ela foi dormir

Com eles mas lá não há sono!

Mas eu a amei,

Como quarenta mil irmãos

Não podem amar!

Hamlet!

 

No fundo ela, onde é lodo:

Lodo!... E a última grinalda

Surgiu num tronco no riachinho...

Mas eu a amei,

Como quarenta mil...

Menos

Porém, do que um amante.

 

No fundo ela, onde é lodo.

Mas eu a

amei?

 

5 de julho de 1923

 

Referência:

 

TSVETÁEVA, Marina. Диалог гамлета с совестью / Diálogo de Hamlet com a consciência. Tradução de Veronica Filíppovna. In: (n.t.) Revista Literária em Tradução. Florianópolis, SC. Edição bilíngue semestral, ano 1, n. 1, 1. vol., set. 2010. Em russo: 24; em português: p. 42. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 jan. 2024.