Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de junho de 2021

John Ashbery - Por Agora

Ashbery parece dirigir-se, neste poema, bem mais a outros poetas do que aos simples e mortais leitores de poesia, pois, desse modo, certamente presume que será entendido em suas ponderações: parte o orador da premissa de que um poema é um construto social, experimento sinérgico entre as partes envolvidas – e não, meramente, um produto estocável em armazéns, com embalagem e conteúdo que se equivalham.

Quem haveria de “iluminar” o poema? – pergunta-se Ashbery. Pelas metáforas que emprega, o autor sugere que, sob os versos, estão os propósitos tencionados pelo emitente das linhas: ocultar-se de algo que possa lhe sobressaltar o espírito ou que lhe venha causar transtornos; mover-se para qualquer que seja o destino, mesmo às custas de um cenário toldado; manter-se alimentado, denotativa e, quiçá, conotativamente.

Difícil é se encontrar um ponto de equilíbrio no poema, entre uma mensagem que não se deixa dilucidar ou perpassar, complexa ao extremo, deveras hermética, e outra que declina para o fraseado fácil, pouco refletido, quase uma colagem de falas num café às cinco da tarde.

Fato é que o valor de um poema não é objeto que possa ser possuído ou transportado, mesmo que o poeta assim o intente, como se fosse o ofício de um músico que, sem oitiva num lugar, possa de pronto se deslocar a outro onde venha a ter melhor acolhida: não! – uma vez exposto à luz, um poema passa a fazer parte da “decoração, da dança, para sempre”!

J.A.R. – H.C.

 

John Ashbery

(1927-2017)

 

For Now

 

Much will be forgiven those

on whom nothing has dawned. But I wonder,

does our polemic have an axis? And if so,

who does the illuminating? It’s not as though I haven’t stayed,

stinking, in the dark. What does this

particular mess have to do with me, surely

one or more may have wondered. And if he

or she suddenly saw in retrospect

the victimhood of all those years, how pain

was as reversible as pleasure, would they stand

for nothing selling in shops now, the cornucopias

of bargain basements open to the weather?

 

From pantry and hayloft spiffy white legs

emerge. A way of sitting down

has been established, though it’s the same stuff

we groped through before: reeds, old motor-boat

sections, skeins of herring. We brought something else –

some enlightenment we thought the months

might enjoy in their gradual progress through the years:

“sudden realizations”, the meaning of dreams

and travel, and how hotel rooms

can become the meaningful space one has always lived in.

lt’s only a shred, really, a fragment of life

no one else seemed interested in. Not that it can be carried away:

It belongs to the décor, the dance, forever.

 

Ceres e duas ninfas com uma cornucópia

(Peter Paul Rubens: pintor flamengo)

 

Por Agora

 

Muito será perdoado àqueles

a quem nada se revelou. Mas pergunto-me,

nossa polêmica tem um eixo? E se o tem,

quem se ocupa da iluminação? Não é como se não houvesse ficado,

a cheirar mal, no escuro. O que essa

desordem em particular tem a ver comigo, certamente

que uma ou mais pessoas podem ter-se perguntado. E se ele

ou ela de repente visse em retrospectiva

a condição de vítima de todos aqueles anos, como a dor

era tão reversível quanto o prazer, permaneceriam,

por nada, a vender agora, em lojas, as cornucópias

das seções de pechinchas expostas à intempérie?

 

Da despensa e do palheiro emergem vistosas pernas

brancas. Estabeleceu-se

uma forma de se sentar, embora corresponda às mesmas coisas

entre as que antes tateávamos: juncos, seções de antigas

lanchas a motor, meadas de arenque. Trouxemos algo mais –

algum deslinde que, presumíamos, os meses

poderiam desfrutar em seu progresso gradual através dos anos:

“realizações repentinas”, o significado dos sonhos

e das viagens, e como os quartos de hotel

podem tornar-se o espaço significativo em que sempre se viveu.

É somente um fragmento, em verdade, um fragmento de vida

que a ninguém mais parece interessar. Não que possa deixar-se levar:

faz parte da decoração, da dança, para sempre.


Referência:

ASHBERY, John. For now. In: __________. A worldly country: new poems. New York, NY: HarperCollins Publishers, jan. 2007. p. 8. (HarperCollins e-books)

terça-feira, 29 de junho de 2021

Giuseppe Ungaretti - Itália

A voz lírica reconhece-se um poeta, vestido como soldado em defesa de sua Itália natal, uma voz gritada e unânime a assumir as vozes de todo o seu povo, consubstanciando-lhe os sonhos, digo melhor, gnose circunspecta no olhar que alberga muitas outras perspectivas, cria de “inumeráveis contrastes de enxertos”, exploração e conquista daqueles valores que justificam toda uma vida.

Essa poesia, que desabrocha numa estufa, contém o fermento prodigioso da palavra, teluricamente incrustada no meio dos homens, pois que perpassada por suas experiências existenciais e culturais, autêntica ossatura viática a pôr em marcha a concretização das suas mais diletas aspirações: vai Itália, cumpre o teu destino!

J.A.R. – H.C.

 

Giuseppe Ungaretti

(1888-1970)

 

Italia

 

Sono un poeta

un grido unanime

sono un grumo di sogni

 

Sono un frutto

d’innumerevoli contrasti d’innesti

maturato in una serra

 

Ma il tuo popolo è portato

dalla stessa terra

che mi porta

Italia

 

E in questa uniforme

di tuo soldato

mi riposo

come fosse la culla

di mio padre

 

Locvizza I’ 1 ottobre 1916

 

Uma vista distante de Florença

(Thomas Patch: pintor inglês)

 

Itália

 

Sou um poeta

um grito unânime

sou um coágulo de sonhos

 

Sou um fruto

de inúmeros contrastes de enxerto

amadurecido em estufa

 

Mas teu povo é levado

pela mesma terra

que me leva

Itália

 

E neste uniforme

de teu soldado

repouso

como acaso no berço

de meu pai

 

Locvizza, 1º de outubro de 1916


Referência:

UNGARETTI, Giuseppe. Italia / Itália. Tradução de Henriqueta Lisboa. In: LISBOA, Henriqueta. Poesia traduzida. Organização, introdução e notas de Reinaldo Marques e Maria Eneida Victor Farias. Edição bilíngue: Italiano x Português. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2001. Em italiano: p. 250; em português: p. 251. (Inéditos & Esparsos)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Age de Carvalho - A terra não é redonda

Não: o poeta paraense não está advogando a mesma coisa que as recentes hostes bolsonaristas passaram a defender com a subida de seu “mito” ao poder, vale dizer, que a terra seria plana! (rs) – pois este poema remonta à década de 80 do século passado, e o sentido colimado pelo autor revela-se nitidamente tropológico, como que a espreitar a dicotomia “local” x “universal”.

No “Quarto Mundo”, de Gismonti, sente-se o impacto ambiental da Hileia e o batuque primordial dos indígenas em seu ‘habitat’ – tão infinito, que paralelas poderiam vir a se tocar, e tão delimitado, que a objetiva de Galileu convergiria o foco não para a amplitude dos céus, senão para massa arbórea da Amazônia e os seus caudais tonitruantes.

J.A.R. – H.C.

 

Age de Carvalho

(n. 1958)

 

A terra não é redonda

 

I

 

O mundo revelado amplo,

junção de paralelas, plano

infinito do homem: o índio integral,

a utopia da terra, “Quarto Mundo”,

de Gismonti

 

II

 

O mundo tornado curto,

quadrado percorrido, turva

infância de Galileu: as arestas do vento,

o discurso dos rios, a Amazônia,

cabeleira do mundo

 

Superfície da Terra

(Meredith Poston: pintora norte-americana)


Referência:

CARVALHO, Age de. A terra não é redonda. In: __________. ROR: 1980-1990. São Paulo, SP: Duas Cidades; Secretaria de Estado de Cultura, 1990. p. 174. (Coleção ‘Claro Enigma’)

domingo, 27 de junho de 2021

Ted Berrigan - Robert (Lowell)

Um poeta presta tributo a outro poeta, seu compatriota e contemporâneo, recordando as esbórnias de que juntos participaram, como forma de mitigar as cizânias havidas com sérias discussões em prováveis tertúlias literárias, com consumo desenfreado de cigarros, bebidas e comprimidos (antidepressivos?) e alguma circunstancial criação poética.

Pela força da idade, sob o “novo ar de dezembro” – fim de um ciclo, começo de outro –, a voz lírica já não se mostra capaz, sequer, de dormir nem de escrever o próprio nome: pondera que, de qualquer forma, ambos se tornaram conhecidos do grande público, mesmo a despeito de – ou sobretudo, em razão de – todo o comportamento erradio demonstrado, o qual mais lhe apraz se mais erradio fosse.

J.A.R. – H.C.

 

Ted Berrigan

(1934-1983)

 

Robert (Lowell)

 

Like the philosopher Thales

who thought all things water

and fell into a well... trying to

find a car key... (“it can’t be here...”)

We rest from all discussion,

drinking, smoking, pills...

want nothing

but to be old, do nothing, type & think...

 

But in new December’s air

I could not sleep, I could not write my name –

Luck, we’ve had it; our character’s gone public –

We could have done worse. I hope we did.

 

Robert Lowell

(1917-1977)

(Autoria desconhecida)

 

Robert (Lowell)

 

Como o filósofo Tales

que pensava que tudo era água

e caiu em um poço... tentando

encontrar a chave de um carro... (“não pode estar aqui...”)

Descansamos de toda discussão

pondo-nos a beber, a fumar, comprimidos...

nada querer

senão ser velho, nada fazer, digitar & pensar...

 

Porém no novo ar de dezembro

não conseguia dormir, não conseguia escrever meu nome –

Sorte, nós a tivemos; nossa figura tornou-se pública –

Poderíamos ter feito pior. Espero que o tenhamos feito.


Referência:

BERRIGAN, Ted. Robert (Lowell). In: __________. The selected poems of Ted Berrigan. Edited by Alice Notley, Anselm Berrigan and Edmund Berrigan. Berkeley, CA: University of California Press, 2011. p. 195.

sábado, 26 de junho de 2021

Ezra Pound - Nova York

O poeta torna manifesto o seu amor por Nova York – a ‘Big Apple’ que todo mundo espera, um dia, vir a conhecer: a cidade se metaforiza em uma mulher loura, virgem e sem seios, “esbelta como um caniço de prata”, a abrigar também o lado mais tormentoso da civilização – os traficantes –, nela se esperando, ademais, se encontrar uma virgem!

A cidade, com os seus atrativos, seduz a todos, sendo raro alguém por ela passar sem que seja instigado a consumir e consumir: como megalópole cosmopolita, Nova York, em seus contrastes arquitetônicos e tribos multiétnicas, mais do que qualquer outra urbe, conforma-se ao epíteto que muitos lhe atribuem – a “capital do mundo”.

J.A.R. – H.C.

 

Ezra Pound

(1885-1972)

 

N. Y.

 

My city, my beloved, my White!

Ah, slender,

Listen! Listen to me, and I will breathe into thee a soul.

Delicately upon the reed, attend me!

 

Now do I know that I am mad,

For here are a million people surly with traffic;    

This is no maid.   

Neither could I play upon any reed if I had one.  

 

My City, my beloved,    

Thou art a maid with no breasts,

Thou art slender as a silver reed.       

Listen to me, attend me!

And I will breathe into thee a soul,   

And thou shalt live for ever.

 

Inauguração da Estátua da Liberdade

(Edward Moran: pintor anglo-americano)

 

Nova York

 

Cidade minha, minha amada, minha loira,

és esbelta,

ouve-me, escuta, e te soprarei uma alma

de leve, neste caniço – escuta!

 

Ora, bem sei que enlouqueci

eis um milhão de grosseiros traficantes

e nenhuma virgem!

Ah! se eu tivesse um caniço não saberia tocar.

 

Cidade minha, minha amada,

tu és uma virgem sem seios,

esbelta como um caniço de prata.

Ouve-me, escuta,

eu te darei uma alma

e tu serás eterna.


Referências:

Em Inglês

POUND, Ezra. N. Y. In: __________. Ezra Pound’s poetry and prose. Contributions to periodicals in ten volumes. Volume I: 1902-1914 (C0-C167). New York (NY) & London (EN): Garland Publishing Inc., 1991. p. 150.

Em Português

POUND, Ezra. Nova York. Tradução de Sérgio Milliet. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e Notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 283-284.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Carlos de Oliveira - Quando a harmonia chega

Carlos labuta em seu mister literário ao romper do dia, mesmo instante em que a cidade começa a emergir de seu sono e partir para a lida diária, de trabalho e espairecimento, preenchendo-lhe as ruas com a força harmônica e inesgotável do que se orna o universo: estamos na primavera dos dias, instante mesmo em que uma “ave de fogo” arde vividamente perante nossos “densos olhos”.

Diz o poeta que a “alegria se reconstrói e continua” a cada momento, como um processo metamórfico, eis que se parece a uma messe de átimos estelares que se estabelecem por força dos relacionamentos: somos peregrinos que se buscam conhecer, pois se o desígnio de todos nós é o alcance da felicidade, deve haver um denominador comum que nos cinge a todos.

J.A.R. – H.C.

 

Carlos de Oliveira

(1921-1981)

 

Quando a harmonia chega

 

Escrevo na madrugada

as últimas palavras deste livro:

e tenho o coração tranquilo,

sei que a alegria se reconstrói e continua.

 

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos,

gente que desperta no rumor das casas,

forças surgindo da terra inesgotável,

crianças que passam ao ar livre gargalhando.

Como um rio lento e irrevogável,

a humanidade está na rua.

 

E a harmonia,

que se desprende dos seus olhos densos ao

encontro da luz,

parece de repente urna ave de fogo.

 

Em: “Terra de Harmonia” (1950)

 

Margens do rio Oise ao nascer do sol

(Louis Hayet: pintor francês)


Referência:

OLIVEIRA, Carlos de. Quando a harmonia chega. In: CASTRO, Mario Moraes (Selección y Traducción). Antología breve de la poesía portuguesa del siglo XX. Edición bilingüe: Portugués x Español. 1. ed. México, DF: Instituto Politécnico Nacional, ene. 1998. p. 120.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Roberto Bolaño - O monge

As imagens suscitadas pelos versos deste poema de Bolaño levam-nos a associá-las a algum instante do Medievo, quando os senhores de terra detinham castelos e os protegiam com alambrados ou outras vedações, para que se lhes fossem prestados tributos.

Ouve-se a voz lírica de um monge que, depois de descansar de algumas caçadas, pôs-se a procurar pelo seu senhor, que havia avançado até um ponto por todos ignorado, quando, então, teve ciência de que alguém – seria ele próprio? – havia dormido por longo tempo sobre os seus escritos.

Sob um artificial calor dos crepúsculos, o monge, mais parecendo um cavaleiro andante ou guerreiro, percebe, de fato, que muitas virtuais obras sobre suas aventuras deixaram de ser difundidas, daí porque não se pode sentir a calidez de uma missão cumprida ao figurado arrebol da vida.

J.A.R. – H.C.

 

Roberto Bolaño

(1953-2003)

 

El monje

 

Fui feliz durante las cacerías.

Dormité a la sombra de un plátano.

Los sueños ordenaban ríos y castillos.

Al alba mi hermano me murmuró al oído

que tras esas colinas los dominios

permanecían con las mismas alambradas.

Homenajes – dijo. Cabalgué

hasta alcanzar a la vanguardia.

Nadie supo indicarme hacia dónde

se había marchado nuestro señor.

Intuí que el calor de los crepúsculos

era artificial. Supe que alguien

largo tiempo había dormido

sobre mis escritos.

 

Monge cartuxo

(Charles-Caïus Renoux: pintor francês)

 

O monge

 

Fui feliz durante as caçadas.

Dormitei à sombra de um plátano.

Os sonhos punham em ordem rios e castelos.

Ao amanhecer, meu irmão sussurrou-me ao ouvido

que, por trás daquelas colinas, os domínios

permaneciam com os mesmos alambrados.

Homenagens – disse-me ele. Cavalguei

até chegar à vanguarda.

Ninguém soube indicar-me até onde

havia avançado o nosso senhor.

Intuí que o calor dos crepúsculos

era artificial. Soube que alguém

por um longo tempo havia dormido

sobre os meus escritos.

 

Referência:

BOLAÑO, Roberto. El monje. In: __________. Poesía reunida. Prólogo de Manuel Vilas. 1. ed. Madrid, ES: Alfaguara, 2018. p. 54.