Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Georg Trakl - A Igreja morta

Os componentes descritivos deste poema de Trakl revelam plena familiaridade do poeta com os elementos rituais e as celebrações litúrgicas cristãs, muito embora seus fundamentos ou significados originais pareçam aqui algo demudados, diante do notório ceticismo acerca do que lhe parece ser uma vã esperança num Deus de graça e redenção.

 

Sem pretensão de cotejar os elementos expressionistas da poesia de Trakl com os notórios ingredientes simbolistas presentes nas obras de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, não há como se deixar de constatar o quanto se se assemelha a imagística religiosa a que tais poetas recorrem – exceto, é claro, o sobredito acento de incredulidade e pessimismo do autor austríaco.

 

J.A.R. – H.C.

 

Georg Trakl

(1887-1914)

 

Die tote Kirche

 

Auf dunklen Bänken sitzen sie gedrängt

Und heben die erloschnen Blicke auf

Zum Kreuz. Die Lichter schimmern wie verhängt,

Und trüb und wie verhängt das Wundenhaupt.

Der Weihrauch steigt aus güldenem Gefäß

Zur Höhe auf, hinsterbender Gesang

Verhaucht, und ungewiß und süß verdämmert

Wie heimgesucht der Raum. Der Priester schreitet

Vor den Altar; doch übt mit müdem Geist er

Die frommen Bräuche – ein jämmerlicher Spieler,

Vor schlechten Betern mit erstarrten Herzen,

In seelenlosem Spiel mit Brot und Wein.

Die Glocke klingt! Die Lichter flackern trüber –

Und bleicher, wie verhängt das Wundenhaupt!

Die Orgel rauscht! In toten Herzen schauert

Erinnerung auf! Ein blutend Schmerzensantlitz

Hüllt sich in Dunkelheit und die Verzweiflung

Starrt ihm aus vielen Augen nach ins Leere.

Und eine, die wie aller Stimmen klang,

Schluchzt auf – indes das Grauen wuchs im Raum,

Das Todesgrauen wuchs: Erbarme dich unser –

Herr!

 

In: “Nachlass – Sammlung (1909)

 

Capela em Dogwood

(Thomas Kinkade: pintor norte-americano)

 

A Igreja morta

 

Sentam-se amontoados em bancos escuros

E erguem os seus desvanecidos olhares

Até a cruz. Os círios brilham como se velados,

Tornando baça e mortiça a cabeça ferida.

Eleva-se às alturas o incenso de um dourado

Turíbulo, um canto agonizante se dispersa,

E incerta e docemente o recinto entenebrece,

Como que assombrado. O sacerdote move-se diante

Do altar; contudo, ministra com espírito cansado

Os ritos piedosos – um deplorável intérprete

ante maus devotos de corações enregelados,

numa fria representação com pão e vinho.

Reboa o sino! Os círios bruxuleiam tenuemente –

E mais pálida, quão velada acha-se a cabeça ferida!

O órgão murmura! Em corações exânimes

A memória estremece! Um rosto sangrento de dor

Deixa-se envolver na escuridão e o desespero

Mira-o fixamente mediante o vazio de muitos olhos.

E uma voz, que soava como todas as outras,

Pôs-se a soluçar – enquanto o horror crescia no recinto,

Expandia-se o horror da morte: Tem piedade de nós –

Senhor!

 

Em: “Obra Póstuma – Coletânea (1909)

 

Referência:

 

TRAKL, Georg. Die tote kirche. In: __________. Dichtungen und briefe. Herausgegeben von Walther Killy und Hans Szklenar. Salzburg, AT: Otto Müller Verlag Salzburg, 1969. s. 256.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Juan Gelman - XCI: toda poesia é hostil ao capitalismo

Preliminarmente, uma observação: embora possa parecer que Juan Gelman esteja a traduzir poemas de um poeta de presumível origem anglo-saxã, de fato, tudo não passa de um jogo – talvez para burlar a censura argentina –, pois John Wendell representa somente mais um dos pseudônimos adotados pelo autor, para poder dar curso ao seu talento ao longo da ditadura então em curso no país vizinho. De resto, não se ignorem as marcas indeléveis na biografia do poeta, resultantes das perseguições políticas que lhe foram dirigidas e a seus familiares.

 

Infensa aos propósitos do capitalismo, a poesia, segundo a voz lírica, faz-lhe oposição mediante protestos nos quais se assume acometida pela dor, quer em razão da fome, quer em face da sede, quer até mesmo – por mero exercício de rebeldia – para ir de encontro àqueles que a veem mais como uma resignada e decorosa “maneira de vencer a morte”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Juan Gelman

(1930-2014)

 

XVI

 

toda poesia es hostil al capitalismo

puede volverse seca y dura pero no

porque sea pobre sino

para no contribuir a la riqueza oficial

 

puede ser su manera de protestar de

volverse flaca ya que hay hambre

amarilla de sed y penosa

de puro dolor que hay puede ser que

 

en cambia abra los callejones del deliria y las bestias

canten atropellandose vivas de

furia de calor sin destino puede

ser que se niegue a si misma como outra

rnanera de veneer a la muerte

asi como se llora en los velórios

 

poetas de hoy

poetas de este tiempo

nos separaron de la grey no se que sera de nosotros

conservadores comunistas apoliticos cuando

suceda lo que sucedera pero

toda poesia es hostil al capitalismo

 

En: “Traducciones I – Los Poemas de John Wendell”

(1965-1968)

     

O triunfo da revolução

(Diego Rivera: pintor mexicano)

 

XVI

 

toda poesia é hostil ao capitalismo

pode tornar-se seca e dura mas não

porque seja pobre mas

para não contribuir com a riqueza oficial

 

pode ser sua maneira de protestar de

fazer-se magra já que há fome

amarela de sede e sofrida

de pura dor que há pode ser que

 

ao contrário abra os becos do delírio e as bestas

cantem atropelando-se vivas de

fúria de calor sem destino pode

ser que se negue a si mesma como outra

maneira de vencer a morte

assim como se chora nos velórios

 

poetas de hoje

poetas deste tempo

nos separaram do rebanho não sei que será de nós

conservadores comunistas apolíticos quando

aconteça o que vai acontecer mas

toda poesia é hostil ao capitalismo

 

Em: “Traduções I – Os Poemas de John Wendell”

(1965-1968)

 

Referências:

 

Em Espanhol

 

GELMAN, Juan. XVI: toda poesia es hostil al capitalismo. In: __________. Poesía reunida. Tomo I: 1956-1980. 1. ed. Buenos Aires, AR: Seix Barral, 2012. p. 232-233. (Seix Barral ‘Biblioteca Breve’)

 

Em Português

 

GELMAN, Juan. XVI: toda poesia é hostil ao capitalismo. Tradução de Jeff Vasques. In: VASQUES, Jeff (Pesquisa e Tradução). Poesias de luta na América Latina. Prefácio de Mauro Iasi e Luis C. Scapi. 2. ed. [s.l.]: [Trunca Edições], 2017. p. 14. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 jun. 2023.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Sidnei Schneider - De como lidar com rio

Rio é qualquer mudança que nos sobrevém no curso da vida, a refletir a heraclitiana impermanência do mundo fenomênico, diante do qual só nos cabe desbravá-lo lançando mão de um “simples remo”, dando “forma ao nosso sonho de asas”, permitindo-nos assim atravessá-lo sem nos manter subjugados à vã pretensão de, pelo pensamento, imobilizar coisas essencialmente fluidas.

 

A “flor” – provável alegoria associada às realizações com potencial para tornar uma vida significativa e com sentido – mantém-se na margem oposta, como que a sinalizar o rumo a ser seguido pelos nautas, sem risco de descaminhos: sejamos como Ulisses a fugir das sereias – sem caudas de peixe, mas com asas de pássaro –, sempre desenvoltas em fascinar e extraviar os mortais!

 

J.A.R. – H.C.

 

Sidnei Schneider

(n. 1960)

 

De como lidar com rio

 

Represar um rio é impossível.

O rio insulta a barragem.

 

Se sustém uma folha calma de lago,

amplia suas pernas de Heráclito.

 

Veloz, recortará efígies das escarpas

e nas curvas fará ondas de mar.

 

 

Mas se segue da nascente à foz,

na outra margem é que está a flor.

 

Não é pisando em peixes

que conseguiremos atravessá-lo.

 

Largo, pinguela nele não cabe,

ponte não nos dará conhecê-lo.

 

 

Não seria sábio auscultar

o diário vaivém dos pássaros?

 

Com os braços dar forma

ao nosso sonho de asas?

 

De dentro domá-lo para sempre

com um simples remo.

 

Em: “Plano de Navegação” (1999)

 

Atravessando o rio

(Tyl Destoop: artista belga)

 

Referência:

 

SCHNEIDER, Sidnei. De como lidar com rio. In: VASQUES, Marco (Seleção e Organização). Moradas de Orfeu: antologia poética. Apresentação de Péricles Prade. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas, 2011. p. 379.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Xavier Villaurrutia - Noturno da Estátua

Ao encalço de uma realidade de sonho, na qual lugares e formas têm o poder de se transfigurar a cada momento, o falante não logra capturar o que de fato tem em vista, tampouco parece vislumbrar meios de decifração capazes de dar conta do que representa a fugidia estátua que o assombra nos primeiros versos do poema abaixo.

 

Uma vez “assassinada”, a estátua fica ao seu alcance como uma “inesperada irmã”, com quem passa a brincar até ouvi-la dizer que está “morta de sono”: se tudo nas palavras de Villaurrutia não for um jogo de surrealistas aparências, talvez não fosse irrazoável tomar a estátua como uma alegoria para a verdade (hoje tão preterida e torturada ante a implacável prevalência das “fake news”!) (rs)

 

J.A.R. – H.C.

 

Xavier Villaurrutia

(1903-1950)

 

Nocturno de la Estatua

 

Soñar, soñar la noche, la calle, la escalera

y el grito de la estatua desdoblando la esquina.

 

Correr hacia la estatua y encontrar sólo el grito,

querer tocar el grito y sólo hallar el eco,

querer asir el eco y encontrar sólo el muro

y correr hacia el muro y tocar un espejo.

Hallar en el espejo la estatua asesinada,

sacarla de la sangre de su sombra,

vestirla en un cerrar de ojos,

acariciarla como a una hermana imprevista

y jugar con las fichas de sus dedos

y contar a su oreja cien veces cien cien veces

hasta oírla decir: “estoy muerta de sueño”.

 

Mulher ao Espelho

(Pablo Picasso: pintor espanhol)

 

Noturno da Estátua

 

Sonhar, sonhar a noite, a rua, a escada

e o grito da estátua a dobrar a esquina.

 

Correr até a estátua e encontrar apenas o grito,

querer tocar o grito e apenas achar o eco,

querer agarrar o eco e encontrar apenas o muro

e correr até o muro e tocar um espelho.

Achar no espelho a estátua assassinada,

arrancá-la do sangue de sua sombra,

vesti-la em um piscar de olhos,

acariciá-la como a uma imprevista irmã,

brincar com as fichas de seus dedos

e contar em seu ouvido cem vezes cem cem vezes

até escutá-la dizer: “estou morta de sono”.

 

Referência:

 

VILLAURRUTIA, Xavier. Nocturno de la estatua. In: TAPSCOTT, Stephen (Ed.). Twentieth-century latin american poetry: a bilingual anthology. 5th paperback printing. Austin, TX: University of Texas Press, 2003. p. 200.