Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Natal e Final de Ano - Boas Festas Dez.12


Prezado(a)s Internautas,

Venho trazer-lhes esta mensagem de fim de ano, talvez muito mais uma profusão de sentimentos desencontrados do que escritos de sóbria razão, mas de todo modo uma formulação de intenções pela busca do equilíbrio e de emoções humanas sob controle.

Penso que, até naturalmente, o melhor das intenções humanas sempre expressa, de algum modo, uma faceta do que é belo, ainda que este, em muitos casos, se manifeste de uma forma intangível, como a própria busca da verdade.

E, por isso mesmo, imagino que não concorde tanto com Salomão, no Eclesiastes, quando reduz a ação humana a uma sucessão de vaidades: torna-se necessário que o belo se manifeste, para que o homem possa ter paz de espírito!

Por que não usufruir o belo que existe nas pessoas - e esse belo tanto pode se expressar fisicamente quanto, e sobretudo, espiritualmente quanto -, se mais difícil ainda é ter que fechar os olhos e o coração para interpor barreiras a uma interação humana saudável e equilibrada?

Se vemos o mal em outrem, por que será que somos incapazes de percebê-lo em nós mesmos? Trata-se do mesmo mal: o malfeitor materializa a ação que, em nosso íntimo, perpetramos apenas num plano mental. Mas, certamente, infratores somos todos nós!

Há de se empreender uma viagem essencial ao cerne de nossa própria existência, para descobrir-nos as motivações mais profundas, aquelas que, uma vez expressas em nossas palavras e ações, evidenciam ao próximo a forma como se dá a nossa experiência com a beleza:    

O que procuraste em ti
ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo...

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola,
essa ciência sublime e formidável,
mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular
que nem concebes mais,
pois tão esquivo se revelou
ante a pesquisa ardente em que te consumiste...

vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.

(Em A Máquina do Mundo - Carlos Drummond de Andrade)

Mas a experiência da beleza também se estende por outras dimensões do humano, servindo até mesmo para caracterizar-nos a natureza, uma vez que o belo faz parte da representação das obras de arte - e, aqui, faço explícita referência ao teor de um livro de Harold Bloom, intitulado "Shakespeare: A Invenção do Humano", em que o renomado crítico norte-americano perpassa a história das emoções humanas, retratadas nos textos do não menos famoso bardo.

Se isso não fosse pouco como referência, reproduzo o entendimento de um dos mestres da antropologia moderna sobre o mesmo tema:

Vistas na escala de milênios, as paixões humanas não se confundem. O tempo nada acrescenta e nada retira dos amores e dos ódios vividos pelos homens, dos seus compromissos, suas lutas e esperanças; antes e hoje são sempre as mesmas. Suprimir ao acaso dez ou vinte séculos de história não afetaria de maneira sensível o nosso conhecimento da natureza humana. A única parte insubstituível seria a das obras de arte que esses séculos viram nascer. Pois os homens não se diferenciam - e nem mesmo chegam a existir -, a não ser pelas suas obras. Como a estátua de madeira dada à luz por uma árvore, somente as obras proporcionam a evidência de que, no decorrer do tempo, alguma coisa realmente se passou entre os homens.

(Em Minhas Palavras - Claude Lévi-Strauss)

Entretanto, julgo que num mundo de miséria que assola grande parcela da humanidade, falar em usufruto da beleza para essas pessoas é como incidir em uma afronta acintosa. Decisões políticas equivocadas, permeadas de prepotência e arrogância, levam-nos a um convívio desigual e à manutenção de estruturas que oprimem os nossos irmãos - e digo, mesmo aqui, que irmãos são todos os outros seres humanos, para que o nosso juízo compreenda a amplitude de um amor-fraternidade-universal!

Mas, ainda nesse caso, poderemos fazer valer o belo, redigido em boa pena, para melhor elucidar a dicotomia da carência/abundância, referência tão preliminar aos economistas:

(...) A bastança e a indigência dependem, pois, da idéia que dela temos. A riqueza, como a glória e a saúde, só atrai e causa prazer na medida em que empresta prazer e atração a quem a possui. Estamos bem ou mal neste mundo segundo que pensamos: contente está quem se acredita contente e não aquele que os outros imaginam contente. Nossa crença é que faz seja ou não seja real a nossa felicidade!.

(Em Ensaios - Montaigne)

Por fim, apreciaria roubar apenas mais uma referência ao nosso poeta, para trazer à mente a principal de todas as dimensões humanas, a do amor incondicional, a daquele sentimento de que todos precisamos para alcançar a reconciliação com as coisas do universo, vivas ou não, qualquer que seja o estágio de evolução em que se encontram no momento presente:

Este o nosso destino: amor ser conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

(Em Amar - Carlos Drummond de Andrade)

Um grande abraço do sempre amigo,

J.A.R. - H.C.


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Israel e suas “Garras de Aço”

Como a delimitar com mais precisão o eufemismo empregado por George Steiner – o de que o Estado de Israel, para poder se estabelecer na modernidade, necessitou e necessita de impor-se com as suas “garras de aço” –, transcrevemos, a seguir, os ‘posts’ do recém-falecido Nobel de Literatura, o português José Saramago, a expressar indignação com as ações do referido Estado, claramente a obstruir, já vão lá seis décadas, os mais legítimos direitos dos palestinos em possuir um lugar digno para viver com dignidade e sem opressão.

As ações de Israel, para além de aéticas e carentes de normalidade jurídica – porque estão à margem do Direito Internacional, contando, para tanto, com o aval de alguns aliados ocidentais, notadamente os EUA –, são desproporcionais, deixando de convalidar os pressupostos de legítima defesa de seu território. Ademais, o poder sionista por trás de suas políticas, é permissivo quanto à ocupação de terras que pertencem à Cisjordânia, e nisso há, mais uma vez, autêntica conotação eufêmica para uma prática que, de fato, é invasiva e desrespeitadora dos direitos de terceiros.

É sob esse cenário de evidenciação de posturas ideológicas ocultadoras dos verdadeiros interesses, de comportamentos coniventes dos que detêm o poder em países ditos liberais e democráticos, do caráter antidemocrático da própria política interna do Estado de Israel – afinal, cidadãos ali somente são os judeus, estando à margem de direitos fundamentais aqueles que, também morando no espaço geográfico israelense, são como que estrangeiros, a configurar, perdoando-nos a largueza do escopo, democracia quase que à moda grega antiga –, é que nos dispomos a apresentar a indignação do ilustre escritor lusitano, entremeada com incursões contra alguns líderes cujos comportamentos lhe parecem éticos ou pouco alentadores. Que tais denúncias sirvam de argumentação mais do que suficiente em favor do estabelecimento, já, do Estado da Palestina.

Grifos nossos.

J.A.R./H.C.


George Bush, ou a idade da mentira (17.9.2008)

Pergunto-me como e por que os Estados Unidos, um país em tudo grande, tem tido, tantas vezes, tão pequenos presidentes. George Bush é talvez o mais pequeno de todos eles. Inteligência medíocre, ignorância abissal, expressão verbal confusa e permanentemente atraída pela irresistível tentação do puro disparate, este homem apresentou-se à humanidade com a pose grotesca de um cowboy que tivesse herdado o mundo e o confundisse com uma manada de gado. Não sabemos o que realmente pensa, não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), não sabemos se não será simplesmente um robô mal programado que constantemente confunde e troca as mensagens que leva gravadas dentro. Mas, honra lhe seja feita ao menos uma vez na vida, há no robô George Bush, presidente dos Estados Unidos, um programa que funciona à perfeição: o da mentira. Ele sabe que mente, sabe que nós sabemos que está a mentir, mas, pertencendo ao tipo comportamental de mentiroso compulsivo, continuará a mentir ainda que tenha diante dos olhos a mais nua das verdades, continuará a mentir mesmo depois de a verdade lhe ter rebentado na cara. Mentiu para fazer a guerra no Iraque como já havia mentido sobre o seu passado turbulento e equívoco, isto é, com a mesma desfaçatez. A mentira, em Bush, vem de muito longe, está-lhe no sangue. Como mentiroso emérito, é o corifeu de todos aqueles outros mentirosos que o rodearam, aplaudiram e serviram durante os últimos anos.

George Bush expulsou a verdade do mundo para, em seu lugar, fazer frutificar a idade da mentira. A sociedade humana atual está contaminada de mentira como da pior das contaminações morais, e ele é um dos principais responsáveis. A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade. Quando há alguns anos um primeiro-ministro português, cujo nome por caridade omito aqui, afirmou que “a política é a arte de não dizer a verdade”, não podia imaginar que George Bush, tempos depois, transformaria a chocante afirmação numa travessura ingênua de político periférico sem consciência real do valor e do significado das palavras. Para Bush a política é, simplesmente, uma das alavancas do negócio, e talvez a melhor de todas, a mentira como arma, a mentira como guarda avançada dos tanques e dos canhões, a mentira sobre as ruínas, sobre os mortos, sobre as míseras e sempre frustradas esperanças da humanidade. Não é certo que o mundo seja hoje mais seguro, mas não duvidemos de que seria muito mais limpo sem a política imperial e colonial do presidente dos Estados Unidos, George Walker Bush, e de quantos, conscientes da fraude que cometiam, lhe abriram o caminho para a Casa Branca. A História lhes pedirá contas.

Inundação (19.11.2008)

Venho da Casa do Alentejo onde participei numa sessão de solidariedade com a luta do povo palestino pela sua plena soberania contra as arbitrariedades e os crimes de que Israel é responsável. Deixei lá uma sugestão: que a partir de 20 de Janeiro, data da tomada de posse de Barack Obama, a Casa Branca seja inundada de mensagens de apoio ao povo palestino e em que se exija uma rápida solução do conflito. Se Barack Obama quer libertar o seu país da infâmia do racismo, faça-o também em Israel. Desde há sessenta anos que o povo palestino vem sendo friamente martirizado com a cumplicidade tácita ou ativa da comunidade internacional. É tempo de acabar com isto.

O golpe final (16.12.2008)

O riso é imediato. Ver o presidente dos Estados Unidos a encolher-se atrás do microfone enquanto um sapato voa sobre a sua cabeça é um excelente exercício para os músculos da cara que comandam a gargalhada. Este homem, famoso pela sua abissal ignorância e pelos seus contínuos dislates linguísticos, fez-nos rir muitas vezes durante os últimos oito anos. Este homem, também famoso por outras razões menos atrativas, paranoico contumaz, deu-nos mil motivos para que o detestássemos, a ele e aos seus acólitos, cúmplices na falsidade e na intriga, mentes pervertidas que fizeram da política internacional uma farsa trágica e da simples dignidade o melhor alvo da irrisão absoluta. Em verdade, o mundo, apesar do desolador espetáculo que nos oferece todos os dias, não merecia um Bush. Tivemo-lo, sofremo-lo, a um ponto tal que a vitória de Barack Obama terá sido considerada por muita gente como uma espécie de justiça divina. Tardia como em geral a justiça o é, mas definitiva. Afinal, não era assim, faltava-nos o golpe final, faltavam-nos ainda aqueles sapatos que um jornalista da televisão iraquiana lançou à mentirosa e descarada fachada que tinha na sua frente e que podem ser entendidos de duas formas: ou que esses sapatos deveriam ter uns pés dentro e o alvo do golpe ser aquela parte arredondada do corpo onde as costas mudam de nome, ou então que Mutazem al Kaidi (fique o seu nome para a posteridade) terá encontrado a maneira mais contundente e eficaz de expressar o seu desprezo. Pelo ridículo. Um par de pontapés também não estaria mal, mas o ridículo é para sempre. Voto no ridículo.

Gaza (22.12.2008)

A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registradas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os caminhões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente atualizado.

Israel (31.12.2008)

Não é do melhor augúrio que o futuro presidente dos Estados Unidos venha repetindo uma e outra vez, sem lhe tremer a voz, que manterá com Israel a “relação especial” que liga os dois países, em particular o apoio incondicional que a Casa Branca tem dispensado à política repressiva (repressiva é dizer pouco) com que os governantes (e porque não também os governados?) israelitas não têm feito outra coisa senão martirizar por todos os modos e meios o povo palestino. Se a Barack Obama não lhe repugna tomar o seu chá com verdugos e criminosos de guerra, bom proveito lhe faça, mas não conte com a aprovação da gente honesta. Outros presidentes colegas seus o fizeram antes sem precisarem de outra justificação que a tal “relação especial” com a qual se deu cobertura a quantas ignomínias foram tramadas pelos dois países contra os direitos nacionais dos palestinos.

Ao longo da campanha eleitoral Barack Obama, fosse por vivência pessoal ou por estratégia política, soube dar de si mesmo a imagem de um pai extremoso. Isso me leva a sugerir-lhe que conte esta noite uma história às suas filhas antes de adormecerem, a história de um barco que transportava quatro toneladas de medicamentos para acudir à terrível situação sanitária da população de Gaza e que esse barco, Dignidade era o seu nome, foi destruído por um ataque de forças navais israelitas sob o pretexto de que não tinha autorização para atracar nas suas costas (julgava eu, afinal ignorante, que as costas de Gaza eram palestinas…). E não se surpreenda se uma das suas filhas, ou as duas em coro, lhe disserem: “Não te canses, papá, já sabemos o que é uma relação especial, chama-se cumplicidade no crime”.


Cadáveres de cinco irmãs palestinas de 4 a 17 anos mortas no bombardeamento noturno israelita a uma mesquita do campo de refugiados de Yabalia jazem na morgue de um hospital - Agência France Press - Publicada em “El País” - 27-12-2008

Sarkozy, o irresponsável (6.1.2009)

Nunca apreciei este cavalheiro e creio que a partir de hoje passarei a apreciá-lo ainda menos, se tal é possível. E não deveria ser assim, se, como a internet acaba de me informar, o dito sr. Sarkozy anda em missão de paz pelas torturadas terras da Palestina, esforço louvável que, à primeira vista, só deveria merecer elogios e votos do melhor sucesso. Da minha parte tê-los-ia todos se não tivesse utilizado, uma vez mais, a velha estratégia dos dois pesos e das duas medidas. Num arranco de hipocrisia política simplesmente notável, Sarkozy acusa o Hamas de haver cometido ações irresponsáveis e imperdoáveis lançando foguetes sobre o território de Israel. Não serei eu quem absolva Hamas de tais ações, aliás, segundo leio a cada passo, castigadas pela quase total ineficácia da bélica operação que pouco mais tem conseguido que danificar algumas casas e derrubar alguns muros. Nunca as palavras doam na língua ao sr. Sarkozy, há que denunciar a Hamas. Com uma condição, porém. Que as suas justamente repreensivas palavras tivessem sido igualmente aplicadas aos horrendos crimes de guerra que vêm sido cometidos pelo exército e pela aviação israelita, em proporções inimagináveis, contra a população civil da faixa de Gaza. Sobre esta vergonha o sr. Sarkozy parece não ter encontrado no seu Larousse as expressões adequadas. Pobre França.

Das pedras de David aos tanques de Golias (8.1.2009)

Este artigo foi publicado pela primeira vez há alguns anos. O seu pano de fundo é a segunda intifada palestina, em 2000. Atrevi-me a pensar que o texto não envelheceu demasiado e que a sua “ressurreição” está justificada pela criminosa ação de Israel contra a população de Gaza. Aí vai, portanto.

Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de Salomão, ou no período imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da Babilônia. Outros estudiosos não menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da Babilônia, obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o trabalho dos redatores foi realizado após terem regressado os judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns quinhentos anos, mais mês, menos mês.

Esta preocupação de exatidão temporal tem como único propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno David e o gigante filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há vinte ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado David. Tal desigualdade, enorme segundo todas as aparências, era compensada, e logo revertida a favor do israelita, pelo fato de David ser um mocinho astucioso e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir enfrentar-se ao filisteu, apanhou na margem de um regato que havia por ali perto cinco pedras lisas que meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se apercebeu de que David vinha armado com uma pistola. Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de fato não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias não teve sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos com o conto maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até a margem direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.

Continuação (9.1.2009)

Também não as usa agora. Nestes últimos cinquenta anos cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos fatos, que se tornou num novo Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar com pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a “poética” mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestino para depois negociar com o que deles restar. Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores do passado e dos medos de hoje, todas as ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que sofreram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronômio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel quer que nos sintamos culpados, todos nós, direta ou indiretamente, dos horrores do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de fato: a impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração nazis, esses que foram trucidados nos pogroms, esses que apodreceram nos guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos atos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o fato de terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.

As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.

Com Gaza (11.1.2009)

As manifestações públicas não são estimadas pelo poder, que não raro as proíbe ou as reprime. Felizmente não é esse o caso de Espanha, onde se têm visto sair à rua algumas das maiores manifestações realizadas na Europa. Honra seja feita por isso aos habitantes de um país em que a solidariedade internacional nunca foi uma palavra vã e que certamente o expressará no ato multitudinário previsto para domingo em Madrid. O objeto imediato desta manifestação é a ação militar indiscriminada, criminosa e atentatória de todos os direitos humanos básicos, desenvolvida pelo governo de Israel contra a população de Gaza, sujeita a um bloqueio implacável, privada dos meios essenciais à vida, desde os alimentos à assistência médica. Objeto imediato, mas não único. Que cada manifestante tenha em mente que já levam sessenta anos sem interrupção a violência, a humilhação e o desprezo de que têm sido vítima os palestinos por parte dos israelitas. E que nas suas vozes, nas vozes da multidão que sem dúvida estará presente, irrompa a indignação pelo genocídio, lento mas sistemático, que Israel tem exercido sobre o martirizado povo palestino. E que essas vozes, ouvidas em toda a Europa, cheguem também à faixa de Gaza e a toda a Cisjordânia. Não esperam menos de nós os que nessas paragens sofrem cada dia e cada noite. Interminavelmente.

Imaginemos (12.1.2009)

Imaginemos que, nos anos trinta, quando os nazis iniciaram a sua caça aos judeus, o povo alemão teria descido à rua, em grandiosas manifestações que iriam ficar na História, para exigir ao seu governo o fim da perseguição e a promulgação de leis que protegessem todas e quaisquer minorias, fossem elas de judeus, de comunistas, de ciganos ou de homossexuais. Imaginemos que, apoiando essa digna e corajosa ação dos homens e mulheres do país de Goethe, os povos da Europa desfilariam pelas avenidas e praças das suas cidades e uniriam as suas vozes ao coro dos protestos levantados em Berlim, em Munique, em Colônia, em Frankfurt. Já sabemos que nada disto sucedeu nem poderia ter sucedido. Por indiferença, apatia, por cumplicidade tática ou manifesta com Hitler, o povo alemão, salvo qualquer raríssima exceção, não deu um passo, não fez um gesto, não disse uma palavra para salvar aqueles que iriam ser carne de campo de concentração e de forno crematório, e, no resto da Europa, por uma razão ou outra (por exemplo, os fascismos nascentes), uma assumida conivência com os carrascos nazis disciplinaria ou puniria qualquer veleidade de protesto.

Hoje é diferente. Temos liberdade de expressão, liberdade de manifestação e não sei quantas liberdades mais. Podemos sair à rua aos milhares ou aos milhões que a nossa segurança sempre estará assegurada pelas constituições que nos regem, podemos exigir o fim dos sofrimentos de Gaza ou a restituição ao povo palestino da sua soberania e a reparação dos danos morais e materiais sofridos ao longo de sessenta anos, sem piores consequências que os insultos e as provocações da propaganda israelita. As imaginadas manifestações dos anos trinta seriam reprimidas com violência, em algum caso com ferocidade, as nossas, quando muito, contarão com a indulgência dos meios de comunicação social e logo entrarão em ação os mecanismos do olvido. O nazismo alemão não daria um passo atrás e tudo seria igual ao que veio a ser e a História registrou. Por sua vez, o exército israelita, esse que o filósofo Yeshayahu Leibowitz, em 1982, acusou de ter uma mentalidade “judeonazi”, segue fielmente, cumprindo ordens dos seus sucessivos governos e comandos, as doutrinas genocidas daqueles que torturaram, gasearam e queimaram os seus antepassados. Pode mesmo dizer-se que em alguns aspectos os discípulos ultrapassaram os mestres. Quanto a nós, continuaremos a manifestar-nos.

A outra crise (16.1.2009)

Crise financeira, crise econômica, crise política, crise religiosa, crise ambiental, crise energética, se não as enumerei a todas, creio ter enunciado as principais. Faltou uma, principalíssima em minha opinião. Refiro-me à crise moral que arrasa o mundo e dela me permitirei dar alguns exemplos. Crise moral é a que está padecendo o governo israelita, doutra maneira não seria possível entender a crueldade do seu procedimento em Gaza, crise moral é a que vem infectando as mentes dos governantes ucranianos e russos condenando, sem remorsos, meio continente a morrer de frio, crise moral é a da União Europeia, incapaz de elaborar e pôr em ação uma política externa coerente e fiel a uns quantos princípios éticos básicos, crise moral é a que sofrem as pessoas que se aproveitaram dos benefícios corruptores de um capitalismo delinquente e agora se queixam de um desastre que deveriam ter previsto. São apenas alguns exemplos. Sei muito bem que falar de moral e moralidade nos tempos que correm é prestar-se à irrisão dos cínicos, dos oportunistas e dos simplesmente espertos. Mas o que disse está dito, certo de que estas palavras algum fundamento hão de ter. Meta cada um a mão na consciência e diga o que lá encontrou.

Israel e os seus derivados (22.1.2009)

O processo de extorsão violenta dos direitos básicos do povo palestino e do seu território por parte de Israel tem prosseguido imparável perante a cumplicidade ou a indiferença da mal chamada comunidade internacional. O escritor israelita David Grossmann, cujas críticas, em todo o caso sempre cautelosas, ao governo do seu país têm vindo a subir de tom, escreveu num artigo publicado há algum tempo que Israel não conhece a compaixão. Já o sabíamos. Com a Torah como pano de fundo, ganha pleno significado aquela terrível e inesquecível imagem de um militar judeu partindo à martelada os ossos da mão a um jovem palestino capturado na primeira intifada por atirar pedras aos tanques israelitas. Menos mal que não a cortou. Nada nem ninguém, nem sequer organizações internacionais que teriam essa obrigação, como é o caso da ONU, conseguiram, até hoje, travar as ações mais do que repressivas, criminosas, dos sucessivos governos de Israel e das suas forças armadas contra o povo palestino. Visto o que se passou em Gaza, não parece que a situação tenda a melhorar. Pelo contrário. Enfrentados à heróica resistência palestina, os governos israelitas modificaram certas estratégias iniciais suas, passando a considerar que todos os meios podem e devem ser utilizados, mesmo os mais cruéis, mesmo os mais arbitrários, desde os assassinatos seletivos aos bombardeamentos indiscriminados, para dobrar e humilhar a já lendária coragem do povo palestino, que todos os dias vai juntando parcelas à interminável soma dos seus mortos e todos os dias os ressuscita na pronta resposta dos que continuam vivos.

Adof Eichmann (5.1.2009)

No princípio da década de 60, quando trabalhava numa editorial de Lisboa, publiquei um livro com o título de Seis milhões de mortos em que era relatada a ação de Adolf Eichmann como principal executor da operação de extermínio de judeus (seis milhões foram) levada a cabo de modo sistemático, quase científico, nos campos de concentração nazis. Crítico como tenho sido sempre dos abusos e repressões exercidos por Israel sobre o povo palestino, o meu principal argumento dessa condenação foi e continua a ser de ordem moral: os inenarráveis sofrimentos infligidos aos judeus ao longo da História e, em particular, no quadro da chamada “solução final”, deveriam ser para os israelitas de hoje (dos últimos sessenta anos para maior exatidão) a melhor das razões para não imitarem na terra palestina os seus carrascos. Do que Israel necessita realmente é de uma revolução moral. Firme nesta convicção nunca neguei o Holocausto, somente me permiti estender essa noção aos vexames, às humilhações, às violências de todo o tipo a que o povo palestino tem estado submetido. É o meu direito e os fatos se têm encarregado de me dar razão.

Sou um escritor livre que se exprime tão livremente quanto a organização do mundo que temos lho permite. Não disponho de tanta informação sobre este assunto como aquela que está ao alcance do papa e da Igreja Católica em geral, o que conheço destas matérias desde o princípio dos anos 60 me basta. Parece-me, portanto, altamente reprovável o comportamento ambíguo do Vaticano em toda esta questão dos bispos de obediência Lefebvre, primeiro excomungados e agora limpos de pecado por decisão papal. Ratzinger nunca foi pessoa das minhas simpatias intelectuais. Vejo-o como alguém que se esforça por disfarçar e ocultar o que efetivamente pensa. Em membros da Igreja não é procedimento raro, mas a um papa até um ateu como eu tem o direito de exigir frontalidade, coerência e consciência crítica. E autocrítica.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Brasileirão 2012 - Projeções Depois da 30ª Rodada

Mais abaixo vão as projeções para o final do campeonato, finda já a 30ª rodada do Brasileirão 2012. Novos e antigos pontos podem ser levantados a partir da dimensão metafísica do Modelo Esotérico-Matemático (MEM), quais sejam:

a) o modelo “enlouqueceu” completamente e agora projeta o São Paulo como vice-campeão – se considerado o histórico dos jogos do segundo turno (onze partidas) ou o das últimas dez rodadas (o melhor, entre todos os quatro históricos empregados) –; e como campeão, se consideradas apenas as últimas cinco partidas (o menos aderente entre todos os históricos);

b) mais uma projeção polêmica, meio metafísica, meio especulativa: caso o Fluminense tivesse menos 7 (pontos) pontos – um total que equivale ao número de pontos que teria sido agraciado pela arbitragem contra Ponte Preta (3), Náutico (2) e Botafogo (2) –, o MEM projetaria o São Paulo como campeão, no histórico de dez rodadas;

c) tal como na anterior projeção (ao final da 28ª rodada), o Internacional permanece estático, na 6ª posição, qualquer que seja o histórico de partidas empregado;

d) idem, o Vasco da Gama na 5ª posição; e

e) lá no Z4, tudo muito uniforme, apenas em ordens distintas, a depender do histórico: Palmeiras, Sport, Figueirense e Atlético-GO a navegar pelas águas profundas da Segundona, no ano que vem.

Um abração a todo(a)s e até a próxima projeção, na segunda-feira seguinte (final da 32ª rodada).

J.A.R./H.C.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A Desumanização dos Palestinos nos Livros Didáticos de Israel


O vídeo abaixo retrata longa exposição de Nurit Peled-Elhanan, pacifista israelense e professora de Literatura Comparada da Universidade Hebraica de Jerusalém, sobre a forma como os livros didáticos em Israel retratam - ou deixam de retratar de um modo mais aderente aos fatos históricos - o povo palestino e suas lutas.

Trata-se de excerto de documentário no qual a autora, que perdeu uma filha de treze anos num atentado suicida em 1997, tece considerações bem ponderadas acerca da forma obtusa como os alunos, pouco antes  de prestarem o serviço militar - obrigatório em Israel -, são como que "doutrinados" de modo tendencioso em relação ao "problema palestino", engendrando perspectivas de tensões que incitam a manutenção de um estado de coisas mutuamente desrespeitoso entre os povos envolvidos.



Um impactante libelo contra essa disputa insana!

J.A.R./H.C.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Brasileirão 2012 - Fim do Primeiro Turno

Findo o primeiro turno do Brasileirão 2012, o Atlético-MG, com campanha fantástica, continua à frente no batalhão do G4. Mas, neste momento, apresentamos as projeções de nosso Modelo Esotérico-Matemático, para o final do campeonato, a partir de três históricos, a considerar as equipes que disputam o certame: (i) todas as partidas do primeiro turno; (ii) as últimas dez partidas; e (iii) as últimas cinco partidas.
Consignamos que, tendo em vista o ocorrido até aqui nos campeonatos de pontos corridos, temos observado que a melhor métrica ainda continua a ser a das últimas dez partidas. Ela responde com melhor aderência à realidade do que efetivamente acontece ao final.
Aqui vão algumas conclusões a partir dos números por ora obtidos: 

a) em nenhum dos três históricos o Atlético-MG aparece como campeão ao final (muito estranho, para o ótimo futebol que vem demonstrando ao longo deste campeonato!); 

b) o Flamengo, pelo desempenho nas últimas cinco rodadas, promete chegar ao topo; tanto é que, para tal histórico, o modelo projeta-o como campeão; 

c) o Fluminense aparece como campeão, neste momento, naquele que é o mais aderente dos históricos aos fatos, vale dizer, o das últimas dez partidas de cada time; 

d) seja como for, Fluminense e Grêmio são os únicos times que sempre aparecem, nas três projeções consideradas, entre os quatro primeiros; e

e) entre os rebaixados, Sport e Figueirense são nomes reiterados nas projeções em apreço.
Vejamos as próximas rodadas.

Um abração a todos.

H.C. - J.A.R. 

sexta-feira, 15 de junho de 2012

"A Montanha Mágica" – Crítica II: Christiane Zschirnt

Eis outro comentário à obra A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Desta feita, mais convencional em relação aos padrões costumeiros de crítica literária...

H.C./J.A.R.


ZSCHIRNT, Christiane. Livros: tudo o que você não pode deixar de ler. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Globo, 2006. p. 261-266.

Hans Castorp, o filho de 23 anos de uma família de comerciantes de Hamburgo, visita seu primo tuberculoso Joachim Ziemseen no sanatório Berghof, em Davos. As três semanas previstas da estada transformam-se em sete anos. E, gradualmente, Hans Castorp vai se entranhando no isolado mundo dos Alpes suíços, no qual nada é igual à sua casa em Hamburgo, e onde Castorp deveria iniciar sua carreira de engenheiro. Ele se afunda no mar do tempo – da mesma maneira que o sanatório Berghof afunda nas massas de neve, que a cada ano duram mais e que transformam A Montanha Mágica em um reino congelado onde os enfermos febris aguardam a morte.

A ideia para o romance veio em 1912, durante uma visita Davos, onde Katia, a mulher de Thomas Mann, recebeu durante alguns meses tratamento para tuberculose. Quando o marido ficou resfriado, os médicos o aconselharam a curar a infecção no sanatório Mann, entretanto, deixou o sanatório e começou, de volta ao lar a registrar em forma de narrativa as impressões que tinha tido da viagem. Nos sete anos seguintes essa história cresceu e tornou-se um dos romances mais bonitos do modernismo.

A Montanha Mágica é o romance sobre o fim da sociedade burguesa antes da Primeira Guerra Mundial. A imagem que Mann encontrou para a morte da sociedade europeia enraizada em tradições é o mundo do sanatório. Ali, nas alturas da montanha, onde o ar se torna rarefeito, reúnem-se enfermos abastados de toda a Europa. Eles vêm da Inglaterra, da Itália, da Rússia ou da Alemanha a fim de se curar da tuberculose, observam a decadência de outros pacientes e intuem que, num futuro próximo, o mesmo destino lhes baterá à porta. Mesmo quem não está desenganado passa a maior parte do tempo na horizontal, ou seja, no tratamento de repouso. E se assemelha a um morto.

O cotidiano no sanatório restringe-se essencialmente a quatro itens: comer, conversar, repousar deitado e receber tratamentos médicos (mais ou menos nessa sequência, embora o interesse primário pela alimentação ou por conversas possam se inverter de acordo com as necessidades individuais). Para as cinco fartas refeições, os hóspedes reúnem-se no refeitório em volta de sete mesas. A distribuição dos lugares é determinada pela administração do sanatório e produz encontros de sutis diferenças — como, por exemplo, aquela entre as mesas russas “boas” e “ruins”. Ou acontecem combinações de pessoas sensíveis de diversos níveis de instrução — como entre Hans Castorp e a sra. Stör, com sua blusa escocesa de lã, e que tem a mania de usar palavras estrangeiras sem saber seu significado.

A vida na montanha mágica é esperar. Espera-se pela próxima refeição, pela notícia redentora dos médicos sobre a alta, ou pela morte. Os poucos ruídos que interrompem o silêncio mortal do afastado lugar de montanha são as tosses enfermiças dos doentes que vão esmorecendo. Até a primavera, o Berghof está envolto numa gigante coberta de neve, e o sanatório transforma-se num mundo à parte. Bem abaixo da superfície das geladas massas de neve, somente o ânimo dos pacientes permanece febril e tenso: todos eles estão ocupados em vigiar suas temperaturas corporais. A montanha mágica é um mundo intermediário entre a vida e a morte, simultaneamente explosivo e frio.

O herói Hans Castorp prolonga sua estada também por causa da presença da russa Clawdia Chauchat. Numa noite de Carnaval ela o inicia nas artes do amor. O capítulo (metade escrito em francês) alude à montanha das bruxas de Fausto, de Goethe, com o título de “Noite de Valpúrgis”. Quando madame Chauchat vai embora, Castorp fica com a radiografia do tórax da moça tomado pela tuberculose como consolo.

Ao lado de madame Chauchat, o mórbido mundo do sanatório exerce uma atração irresistível sobre Castorp. Para poder ficar em Berghof, ele acaba desenvolvendo, surpreendentemente, uma leve sintomatologia de tuberculose.

Enquanto madame Chauchat apresentou o amor a Hans Castorp, outro hóspede, o italiano Settembrini, ocupa-se de diversos aspectos do desenvolvimento de sua personalidade. Settembrini, de aparência um tanto desleixada, compensa seu aspecto exterior com a riqueza de sua erudição. Ele acredita no uso da razão de acordo com o espírito do Iluminismo e advoga princípios democráticos básicos. Em conversas intermináveis, explica os grandes temas da civilização ocidental. Castorp bebe as palavras de seu mestre.

Na medida em que A Montanha Mágica descreve as transformações intelectuais de seu jovem e ingênuo herói, o romance se encaixa na tradição do romance de formação do século XVIII. No romance de formação clássico, a educação representa “a formação moral e intelectual do ser humano, a formação de sua personalidade”. Trata-se do gradual aprendizado de um jovem, guiado por seu mestre; no final, surge a própria capacidade de entendimento e o ingresso no mundo. No caso de Hans Castorp, porém, a formação de sua personalidade não é completa, pois apenas alguns dos discursos inflamados de Settembrini trazem-lhe um entendimento real.

Depois de algum tempo, Settembrini recebe a companhia de um opositor intelectual: Leo Naphta. Jesuíta de origem judaica e de notável feiúra, Naphta advoga, ao contrário das posições burgueso-democráticas de Settembrini, uma postura complicada entre a filosofia medieval e a ditadura do povo. As inflamadas conversas dos dois eruditos sobre filosofia, história do mundo e política mundial, nas quais Hans Castorp é simples ouvinte, geram mais confusão do que esclarecimento ao rapaz. Em geral, Castorp concorda ora com um, ora com outro dos galos de rinha. (O filósofo e crítico Georg Lukács serviu de modelo vivo ao personagem Naphta, embora ele não se reconhecesse no papel).

O reaparecimento de madame Chauchat, em companhia do comerciante holandês de café Mynheer Peeperkorn, também traz confusão. Com seu rosto vermelho e sua presença jovial, o massudo Peeperkorn, ao contrário de ambos os delicados intelectuais Settembrini e Naphta, é a personificação da vitalidade. Ele bebe quantidades imensas de café e de vinho, bate com o punho na mesa e fala por meio de frases entrecortadas, enérgicas. Depois de superado o ataque de ciúme, Castorp encontra no desintelectualizado, afável, mas despótico Peeperkorn um novo modelo.

Peeperkorn se suicida quando percebe que sua vitalidade foi atacada pela doença. (Thomas Mann inspirou-se no dramaturgo Gerhart Hauptmann para compor Peeperkorn. Hauptmann foi autor, entre outros, de Die Weber [Os Tecelões]). A violência dos duelos verbais entre Settembrini e Naphta faz com que aconteça um duelo real, no qual Naphta se mata.

No final do romance, o fragor da Primeira Guerra irrompe na espera e no silêncio da montanha mágica. O grande final acontece nas trincheiras. Foi para lá que Hans Castorp foi arrastado após sete anos na montanha mágica.

O fim do romance não revela se Hans Castorp morre como soldado ou não. Sua pista se perde no tumulto da guerra. Esse epílogo diferencia o romance de formação de Thomas Mann de seus clássicos antepassados. Enquanto nestes últimos há sempre um herói que no final sabe quem é, e cuja personalidade está moldada, nada resta de Hans Castorp. A última visão do herói do livro assemelha-se a uma imagem cada vez menos nítida, que acabou perdendo todos os seus contornos. Com o final da sociedade burguesa, cuja morte se iniciou na montanha mágica, some também o sujeito burguês.

Thomas Mann definiu A Montanha Mágica como um “romance contemporâneo”. De um lado, o livro é a descrição de determinado período (ou seja, um romance de época); do outro, é um romance sobre a vivência individual da dimensão do tempo. A estrutura do romance aparece mais uma vez na utilização dupla do conceito de tempo, que mostra a decadência de toda uma cultura (na imagem do sanatório) e a desaparição do sujeito burguês (no exemplo de Hans Castorp).

A primeira significação do conceito de tempo é facilmente compreendida: Mann descreve o final histórico da sociedade burguesa, une é a sociedade doente do sanatório. A segunda significação é um pouco mais complicada. Trata-se de como o tempo é percebido. Na montanha mágica, lá, onde chega a nevar também no começo do verão e onde anos são passados entre o refeitório e o repouso, o tempo ganha uma dimensão totalmente nova. Já no primeiro dia, Castorp descobre irritado que lá em cima é necessário mais tempo que nos outros lugares: três semanas no sanatório equivalem a um dia nas “terras baixas”. Mas quanto mais ele vive na montanha mágica, mais perde o próprio sentido do tempo. Não lê mais jornais e se esquece cada vez mais frequentemente de dar corda no relógio à noite. Essa atemporalidade é a expressão de que a montanha mágica é um reino intermediário único, no qual o indivíduo vai perdendo gradualmente todos os pontos de orientação.

Certa vez, vivendo no Berghof há mais de um ano, Castorp faz um passeio de esqui. O inverno aterrou a montanha sob imensas quantidades de neve, e continua nevando. Nessa silenciosa caída da neve, a paisagem desaparece no nada neblinoso, os contornos do pico se dissolvem. Não há mais caminhos, o mundo é um caos de escuridão branca. Não há pontos de orientação. Equipado com uma barra de chocolate e uma pequena garrafa de vinho do Porto, Castorp penetra nessa paisagem fantasmagórica. Ele entra numa tempestade de neve, movimenta-se em círculos e passa a correr risco de vida. Meio congelado, exausto e levemente bêbado, Castorp procura abrigo numa cabana. Começa a sonhar, esquece do tempo e acaba num fantasioso cenário fronteiriço: em algum lugar entre a vida e a morte, o estar acordado e o sonhar, a cultura e a natureza, temporalidade e atemporalidade. Esse episódio do famoso capítulo “Neve” de A Montanha Mágica é o ponto central do romance. Aqui estão reunidos todos os temas importantes: o isolado mundo do sanatório; a confusão do herói, que procura por orientação; a dissolução das formas; a proximidade entre a vida e a morte; e a perda do conceito de tempo como indício da incessante dissolução de uma forma de existência.

"A Montanha Mágica" – Crítica I: Harold Bloom

Iniciamos, neste momento, a transcrever algumas das principais críticas que logramos obter sobre a obra de onde se extraiu o nome do personagem que dá título a este bloguinho. Começamos com uma análise da pena do famoso crítico literário norte-americano, de origem judaica, Harold Bloom.

Nota-se em Bloom uma forma meio idiossincrática de perceber a obra – e não apenas esta, senão, de uma forma geral, os livros que lhes caem aos olhos calejados pela leitura de tantas páginas –, algo à margem dos padrões de análise firmados pelos cânones da crítica literária. Mas nada que invalide a pletora de cotejos e informações que oferece ao leitor atento e ávido pelo prazer do aprendizado.

Exercício interessante é também contemplar a obra de Mann pela ótica de vários de seus comentadores. E é exatamente isso que pretendemos oferecer aos leitores destas paragens. Quem oferecerá a melhor análise da obra-prima do escritor alemão? A cada um a decisão que melhor lhe pareça!

Aqui vai a primeira mirada sobre o livro em destaque...

H.C./J.A.R.


BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 180-186.

Quando eu era menino (e começava a ler vorazmente), há cerca de sessenta anos, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, era universalmente considerada uma obra de ficção moderna quase comparável ao Ulisses, de Joyce, e a Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Acabo de reler A Montanha Mágica (1924), após um intervalo de quinze anos, e me apraz ter redescoberto o prazer e a força perenes do romance. Longe de ser obra datada, o livro continua a propiciar uma experiência de leitura atual e intensa, ainda que alterada pelo tempo.

Infelizmente, nos últimos trinta anos, Mann tem sido um tanto ofuscado, por não ser, em absoluto, um romancista da contracultura. A Montanha Mágica não é obra que possa ser encaixada entre Na Estrada e um exemplar de cyberpunk. O romance representa a alta cultura hoje em dia posta em xeque, pois trata-se de um livro que pressupõe considerável erudição e reflexão. O protagonista, Hans Castorp, jovem engenheiro alemão, vai ao encontro de um primo internado em um sanatório de tuberculosos nos Alpes suíços, para o que seria uma rápida visita. Uma vez constatado que ele próprio sofre de tuberculose, Castorp permanece sete anos na Montanha Mágica, para ser curado, e para prosseguir em seu Bildung, ou formação, educação cultural.

A princípio, Mann descreve Hans Castorp como um “jovem singelo”, mas isso constitui uma ironia. Castorp não é um jovem comum, mas tampouco é, essencialmente, propenso a buscas espirituais, pelo menos, não no início do romance. Em todo caso, não é um “jovem singelo”. Infinitamente capaz de assimilar ensinamentos, imensamente suscetível a colóquios profundos e ao estudo, Castorp é submetido a um extraordinário e sofisticado processo educacional na Montanha Mágica, principalmente, ao interagir com professores antitéticos: primeiro, e prioritariamente, temos Settembrini, humanista liberal italiano, discípulo do poeta e livre-pensador Carducci; mais tarde, na metade do romance, surge Naphta, reacionário radical, jesuíta judeu, marxista-niilista, opositor da democracia, defensor da síntese religiosa medieval e crítico da perda de fé observada na Europa. Os debates entre Settembrini, defendendo a Renascença e o Iluminismo, e Naphta, apóstolo da Contra-Reforma, são sempre implacáveis, chegando a um ponto crucial quando Naphta verbaliza uma profecia que haveria de triunfar na Alemanha uma década após a publicação de A Montanha Mágica:

– Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do Eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror (MANN, 1980, p. 445).

Naphta e Settembrini obtêm, igualmente, a atenção do leitor, mas apenas Settembrini, apesar da infinita ironia de Mann, conquista o nosso apreço. A ironia é, ao mesmo tempo, o recurso mais marcante de Mann e, talvez, a sua maior fraqueza (como ele bem o sabia). O protesto do escritor, em 1953, contra os que o criticavam permanece útil:

Fico sempre um tanto entediado quando os críticos restringem a minha obra definitiva e inteiramente ao campo da ironia, e me consideram um ironista inveterado, sem, ao mesmo tempo, levar em conta a questão do humor.

A ironia tem diversos significados na literatura, e a ironia de uma época, raramente, será a mesma de outra. Do meu ponto de vista, a criação literária sempre contém um certo grau de ironia, e por isso Oscar Wilde fez a advertência de que toda poesia ruim é sincera. Mas a ironia não é uma condição precípua da linguagem literária, e o significado nem sempre é um andarilho exilado. No sentido mais amplo do termo, “ironia” implica dizer algo cujo real significado difere do conteúdo óbvio, às vezes chegando mesmo a sugerir o oposto do que é dito. Muitas vezes, a ironia de Mann é uma forma sutil de paródia, mas o leitor que estiver aberto à interpretação de A Montanha Mágica encontrará um romance dotado de uma seriedade meiga e altiva, em última análise, uma obra que encerra grande paixão, intelectual e emocional.

Hoje em dia, a fascinante história de Mann, primeiramente, não traduz ironia nem paródia, mas a carinhosa visão de uma realidade que não mais existe, de uma alta cultura europeia perdida para sempre, a cultura de Goethe e Freud. No ano 2000, A Montanha Mágica é vista como um romance histórico, monumento de um humanismo perdido. Publicado em 1924, o romance retrata uma Europa prestes a se despedaçar na Primeira Guerra Mundial, catástrofe que faz Hans Castorp descer da sua Montanha Mágica. Grande parte da cultura humanística sobreviveu à Grande Guerra, mas Mann, profeticamente, prenuncia o terror nazista que se instalaria no poder não mais que uma década depois do surgimento do romance. Embora Mann talvez pretendesse criar uma carinhosa paródia da cultura europeia, as contra-ironias do tempo, bem como das mudanças e da destruição, fazem de A Montanha Mágica, no ano 2000, um estudo da nostalgia, imensamente tocante.

O próprio Hans Castorp hoje me parece um personagem mais sutil e simpático do que na primeira leitura que fiz do romance, há mais de cinquenta anos. Ainda que Mann veja Castorp como um indivíduo em busca de algo, não considero crucial ao protagonista do romance a questão da busca. Castorp não busca um objeto sagrado, nem um ideal. Figura de um distanciamento admirável, Castorp é capaz de ouvir, com igual satisfação, o racionalista Settembrini, o terrorista Naphta, ou o estranho vitalista Mynheer Peeperkorn, que chega à Montanha, tardiamente, em companhia da sensual e bela eslava Claudia Chauchat, com quem Castorp, apaixonado, passa apenas uma noite de prazer. O distanciamento erótico de Hans Castorp parece um tanto extraordinário; apaixonado por Claudia, só depois de passados sete meses, ele desfruta de um único momento de plenitude sexual, em seguida, retraindo-se ao longo dos sete anos de sua estada na Montanha, e tampouco sente muito ciúme, quando Claudia ressurge em companhia de Peeperkorn. Castorp é órfão desde os sete anos de idade e, na adolescência, vivenciara um intenso fascínio homoerótico por um colega de escola, de origem eslava, Przibislaw Hippe, predecessor de Claudia. O amor de Castorp por Claudia faz renascer a paixão reprimida que ele sentira por Hippe, e, de um modo bastante místico, a paixão dupla produz no jovem os sintomas da tuberculose, e o mantém na Montanha por um período de sete anos, uma formação, no espírito de um humanismo agonizante.

Que o amor seja visto como uma enfermidade, como tuberculose, é unia convincente fantasia da parte de Mann, sem dúvida, reflexo do próprio homossexualismo (a duras penas) reprimido do autor, cuja grande expressão será sempre a novella intitulada Morte em Veneza. O leitor se detém na Montanha Mágica porque Castorp se apaixona por Claudia à primeira vista. Seja qual for a realidade clínica da doença de Castorp, o leitor é enfeitiçado à medida que a história se desenrola, uma vez que a experiência universal, no que tange à mudança de planos, de local ou de condição psíquica quando se está apaixonado, é integrada, sagazmente, à iniciação do leitor no mundo da Montanha Mágica. Tenho dúvidas se o público leitor (masculino ou feminino), necessariamente, apaixona-se pela sinuosa e enigmática Claudia, mas a identificação com Castorp, indivíduo dotado de infinita boa vontade e distanciamento sexual, é difícil de ser evitada, considerando-se o esmero da arte de Mann. Nem sempre vemos, sentimos ou pensamos como Hans, mas estamos sempre ao seu lado. A exceção de Poldy, meu homônimo no Ulisses de Joyce, não há na ficção moderna personagem mais atraente do que Castorp. As tentativas de Joyce no sentido de promover distanciamento não foram bem-sucedidas, e Leopold Bloom espelha muitas das qualidades pessoais mais cativantes de Joyce. O parodista irônico Thomas Mann, apesar de seus esforços conflitantes, não consegue se separar de Castorp.

Atualmente, está em voga na crítica literária negar tanto a realidade do autor quanto a do personagem; no entanto, conforme todos os modismos, esse há de passar, e insisto que o leitor não se furte ao prazer da identificação com seus personagens mais queridos, pois os autores não têm conseguido resistir a essa satisfação. A minha exortação tem limite: Cervantes não é Dom Quixote, Tolstoi não é Anna Karenina (embora a amasse), em Operação Shylock, Philip Roth não é “Philip Roth” (nenhum dos dois!). Contudo, de modo geral, os romancistas, por mais irônicos, identificam-se com seus protagonistas; o mesmo se dá com os dramaturgos. Kierkegaard, filósofo religioso dinamarquês que escreveu O Conceito da Ironia, observou que Shakespeare é o grande mestre da ironia – noção indiscutível. Entretanto, mesmo o mais irônico dos autores encontrava-se, de modo mais autêntico e misterioso, no personagem de Hamlet, conforme proponho adiante. Por que ler? Porque só podemos conhecer, intimamente, algumas poucas pessoas, e talvez porque, na verdade, jamais as conheçamos. Após ler A Montanha Mágica, conhecemos Hans Castorp profundamente, e como vale a pena conhecê-lo!

Relendo A Montanha Mágica, chego à conclusão de que a maior ironia de Mann (talvez involuntária) é iniciar o livro com uma referência a Hans Castorp, dizendo que “o leitor em breve [o] conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático” (MANN, 1980, p. 9). Sou professor universitário há quarenta e cinco anos, e posso afirmar: Castorp é o aluno ideal outrora proclamado pelas universidades (antes da autodegradação a que tais instituições ora se submetem), e jamais encontrado. Castorp tem imenso interesse em tudo, em tudo que é conhecimento, mas no conhecimento como um bem em si mesmo. Para Castorp, conhecimento não significa, absolutamente, poder, seja sobre terceiros ou sobre ele próprio; conhecimento nada tem de faustiano. Hans Castorp é extremamente valioso para leitores no ano 2000 (e posteriormente), por encarnar um ideal hoje arcaico, mas sempre relevante: o cultivo do desenvolvimento pessoal, de modo a possibilitar a completa realização do potencial do indivíduo. A avidez de confrontar ideias e personalidades está aliada, em Hans, a uma notável energia espiritual; jamais meramente cético, ele, tampouco, se deixa arrebatar (exceto no auge da paixão pela dúbia Claudia). A eloquência humanística de Settembrini, as exortações terroristas de Naphta, o balbuciar dionisíaco de Peeperkorn inundam Castorp, mas jamais o afogam.

A insistência de Mann quanto à palidez de Castorp se torna uma espécie de piada, pois o jovem engenheiro naval tem afinidade com experiências místicas e até mesmo ocultas. Chegara à Montanha Mágica trazendo consigo o livro Vapores Oceânicos, mas se torna leitor incansável de obras sobre as ciências da vida, especialmente psicologia e fisiologia, e, com base nas mesmas, embarca em contínuas “viagens culturais”. Qualquer noção que ainda perdure (apenas como resultado da ironia de Mann) da suposta “singeleza” de Hans Castorp dissolve-se no maravilhoso capítulo intitulado “Neve”, pouco antes do final da sexta seção, de um total de sete em que o romance é dividido. Preso em uma tempestade de neve, durante uma solitária excursão em que saíra a praticar esqui, Hans quase não sobrevive, e é acometido de uma série de visões. Quando estas desaparecem, ele admite que “a morte é uma grande força”, mas afirma: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (MANN, 1980, p. 552).

Daí em diante, A Montanha Mágica inicia a sua própria dança da morte, à medida que se aproxima a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Naphta desafia Settembrini a um duelo com pistola; Settembrini atira para o ar, e o enfurecido Naphta mata-se com um tiro na cabeça. O pobre Settembrini cai em depressão e sua pedagogia humanística é estancada. O dionisíaco Peeperkorn, defensor da personalidade e do culto ao sexo, confronta a própria senilidade e impotência, e também se mata. Hans Castorp, patrioticamente, engaja-se na luta armada, em defesa da Alemanha, e Mann diz que, embora as chances de o jovem sobreviver não sejam grandes, a questão permanecerá em aberto.

O leitor, quase que a despeito de Thomas Mann, considera as chances de Castorp bem mais promissoras, pois este tem algo de mágico, um encantamento absolutamente à margem do tempo. Castorp pode parecer a apoteose do homem comum, mas é, nitidamente, demoníaco e, na verdade, não precisa da infinda instrução cultural que recebe (embora a mesma lhe traga benefícios). Hans Castorp tem a Bênção, assim como o José, de Mann, mais tarde, na tetralogia José e seus Irmãos. Despedindo-se do protagonista, Mann diz que a importância de Castorp decorre do seu “sonho de amor”. Hoje em dia, no ano 2000, e no futuro, é grande a importância de Castorp, pois o leitor, tentando compreendê-lo, perguntar-se-á: qual é o meu sonho de amor, ou a minha ilusão erótica, e como esse sonho ou essa ilusão afeta as minhas possibilidades de crescer ou desabrochar?

Referência

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução de Herbert Caro. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Belém do Pará – A Sujeira em Cada Canto!



A cada vez que visito a minha cidade natal fico mais desencantado: quanta sujeira nas ruas – e não há que se contestar a pesquisa mais ou menos recente veiculada em “O Fantástico”, da Rede Globo, de a capital paraense estar entre as três mais sujas do país, atrás somente de Salvador e de Fortaleza.

Vejam que no vídeo, abaixo indicado, ainda aparece uma figura política tentando jogar toda a culpa em cima da população, que, a seu ver, vandaliza as lixeiras que estão instaladas pela cidade!


Mas o fato é que as causas são múltiplas, respeitada a seguinte ordem lexicográfica de importância:

(i) a prefeitura de Belém que, efetivamente, não instala há décadas quaisquer receptores qualificados de lixo pela cidade, porquanto o que se vê, ainda, são lixeiras instaladas pelo então prefeito/governador Hélio Gueiros, combinações inadequadas de madeira e de ferro, para coleta num meio ambiente superúmido e chuvoso como o da capital;

(ii) a própria população, mal-educada, que joga qualquer coisa em qualquer lugar, sendo mesmo o caso de se perguntar se faria de modo similar quando no lar; e

(iii) eventual depredação das lixeiras instaladas, por vândalos.

Parece que Belém ficou à margem de qualquer processo civilizatório que faça referência, por exemplo, a coletas seletivas, pois isso é quase um luxo em seu espaço urbano!

E a pichação em prédios públicos e privados?... Nem se fale!

Que pena, pois essas coisas apenas deploram o nome da cidade, afugentando mais e mais os potenciais turistas!

Acorda, Belém, para o futuro!

H. C. / J. A. R.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Condição de Ser Judeu - Parte III

Foram as medidas ferozes e hipócritas do cristianismo que reduziram à usura os judeus medievais e renascentistas. E que fizeram um tipo da figura de Shylock. Mas há um elemento suplementar. A intimidade dos judeus com o dinheiro é, em certo sentido, visceral. Remonta aos múltiplos motivos e prescrições fiscais com que deparamos no livro de Moisés. Como talvez em nenhuma outra mitologia, o dinheiro desempenha um papel canônico nas narrativas da boa sorte e da traição. O vendedor ambulante habilidoso é identificado muitas vezes com o judeu errante. Acedendo a uma categoria superior, aquele tornar-se-á negociante avisado, mercador que atravessa as fronteiras, banqueiro e corretor do capitalismo. Independentemente das bases que possa ter no protestantismo, a evolução do capitalismo moderno e a crítica que inspirou encontram um quadro natural e adaptativo no interior das comunidades de judeus. Os Rothschild substituem Shylock. Dos finais do século XIX em diante, a assiduidade e o engenho dos judeus nos mercados financeiros, nos bancos de investimento, nos capitais de risco e nas bolsas foram praticamente dominadores. A aristocracia judaica, a dos Bleichröder, dos Rothschild, dos Warburg e Lazard foi uma aristocracia da alta finança. Companhias como a Goldman Sachs ou a Lehman Brothers, alquimistas individuais como George Soros, foram atores decisivos nos mecanismos fiscais do Ocidente. A economia das multinacionais mobilizou em seu proveito os instintos itinerantes e cosmopolitas dos judeus. E “naturaliza” a sua condição. É assim que, hoje, uma percentagem significativa da finança global se encontra sob a gestão de judeus. Os talentos analíticos e matemáticos revelados pelos lógicos e cientistas judeus afirmaram-se brilhantemente nos domínios, ao mesmo tempo hiper-racionais e demoníacos, do dinheiro. Daqui a consonância entre a Diáspora e os impulsos econômicos exuberantes que movem a vida americana. Mas igualmente na Rússia pós-comunista, muitos dos barões-salteadores, dos empresários multimilionários, parecem ter surgido como cogumelos do interior de uma minoria durante muito tempo desprezada e perseguida.
O reverso dialético da medalha é igualmente impressionante. Foi do interior do judaísmo, de Amos a Marcuse, que provieram as denúncias mais radicais e exaltadas da busca e da idolatria da riqueza. O mais intenso ódio frente ao Bezerro de Ouro. Todas as variedades de socialismo e de comunismo foram penetradas, tanto em termos de doutrina como de história, pelos valores e participação dos judeus. A retórica profética e acusatória de Karl Marx, a inspiração e a iconografia bíblicas das suas páginas são entranhadamente judaicas. Os judeus pululavam nas organizações mencheviques e bolcheviques. Considerando a figura tradicional de Mamona, os judeus radicais, socialistas, marxistas, de temperamento pragmático ou utópico, levantam-se contra os detentores da riqueza. O movimento de esquerda que implantou o kibbutz visava abolir por completo o regime governado pelo dinheiro e o seu sistema de remuneração e incentivos pecuniários. Em termos fulgurantes, Amos advoga a marcha dos habitantes do deserto ascéticos e sem dinheiro sobre as cidades corruptas e afogadas em riqueza. (Teria Mao lido estas páginas?) O Messias não trará uma moeda consigo.
No entanto, a partir do interior do próprio capitalismo, os judeus deram provas de criatividade, explorando, por assim dizer, o seu sucesso financeiro. Contribuíram muito mais do que qualquer outro grupo étnico para obras de assistência, para fundações de ensino e educação, para instituições culturais, para centros de investigação e de prestação de serviços médicos. Nos Estados Unidos, os melhores estabelecimentos de ensino superior, hospitais, museus e orquestras sinfônicas são significativamente financiados pela liberalidade dos judeus. À falta das generosas contribuições dos judeus, muitas vezes de origem imigrante, a situação financeira das artes e da investigação no Reino Unido seria ainda mais inquietante do que já é. Também a este nível, os ideais e critérios mobilizadores são de raiz bíblica. As escrituras hebraicas abundam em exortações à caridade, ao socorro dos desfavorecidos e dos estrangeiros. O excedente deve ser redistribuído, ainda que pelos ceifeiros moabitas. “Nesse ano de júbilo, a cada um de vós será restituída a sua propriedade” (Levítico 25, 13).
Forçados por uma pressão hostil, mas também por uma capacidade profundamente enraizada, ao exercício dos seus dons financeiros e comerciais exuberantes, os judeus alimentaram sempre o sentimento premente da existência de critérios e laços sociais anteriores ao dinheiro e que este não podia contaminar. Desfaziam-se, pois, do dinheiro como se este sujasse os dedos a que se prendia. Que haverá de mais judaico do que a invocação por Marx, nos Manuscritos de 1844, de uma sociedade na qual o amor fosse trocado pelo amor, a confiança pela confiança, em vez de o dinheiro por dinheiro? Há uma velha máxima judaica que diz que morrer rico é ao mesmo tempo uma derrota e uma loucura.
Poderiam também existir outros traços distintivos resultantes da ação simultânea do meio e de uma forma de hereditariedade ainda não descodificada. O humor judaico é um capítulo volumoso. Tem um sal próprio, uma espécie de desespero revigorante. A sua auto-ironia documenta uma resistência sortílega frente ao sofrimento e frente à exclusão. Não é por acaso que os dois únicos escritos filosóficos de primeira grandeza sobre os ditos de espírito se devem a Freud e a Bergson. Todos os povos acarinham os seus filhos. No judaísmo, a atenção de que são objeto mostra-se muitas vezes incomparável. Deste ponto de vista, Jesus de Nazaré é judeu num grau supremo. No clima ansioso dos dias que correm, os criminologistas referem que os casos de pedofilia e abuso de crianças são singularmente raros entre os judeus. As regras alimentares, originalmente higiênicas e terapêuticas, legaram aos judeus, onde quer que hoje os encontremos, certas aversões características. Estas conferiram aos judeus o seu lugar à parte, no que se refere às distinções antropologicamente fundamentais estabelecidas entre o puro e o impuro. A circuncisão é hoje largamente praticada. Terá este uso, a par de outros tabus, conferido um teor peculiar à sexualidade dos judeus? As questões não param de multiplicar-se.
Entre elas, a mais premente e intratável é a da constância do antissemitismo.
Será possível desenredar as suas causas subjacentes? Deverá durar para sempre?
As tentativas visando explicar este cancro são muitas. Os historiadores citam traços de ódio ao judeu na Antiguidade Mediterrânica. Detectam na Roma Imperial certas atitudes destinadas a persistir. A singularidade dos judeus alimentava suspeitas, e coisas ainda mais graves. A recusa por parte dos judeus de observarem as formalidades razoavelmente benignas estipuladas para as cerimônias cívicas e imperiais exasperava os governantes e os vizinhos. Parecia haver uma presunção teocrática irritante na base da sua recusa da assimilação. Numa atmosfera de ecumenismo sincrético, o Deus de Israel desprezava a companhia das outras divindades, e os conquistadores romanos de Jerusalém recuaram perante o vazio sem rosto do Santo dos Santos no templo saqueado. A abstração do que se supunha serem as crenças judaicas (de fato, o monoteísmo irrompera noutros lugares) e a ausência de imagens públicas engendravam inquietações malevolentes. Eis uma minoria intratável, um elemento de ruptura entre as nações, cm contacto com esferas ocultas e fontes secretas de poder.
No conjunto, todavia, a hostilidade frente à Judeia, ainda quando tomava uma forma violenta, era de ordem política e territorial, mais do que ideológica. É esse reflexo que encontramos documentado em Tácito.
Tudo mudou com o advento e o triunfo do cristianismo pauliniano, a mais ativa e carregada de consequências das formas de ódio de si da história do judaísmo. Seguiu-se a canonização das passagens incriminadoras dos judeus nos Evangelhos Sinópticos. O cristianismo não podia perdoar, nunca esqueceu a recusa por parte dos judeus de entrarem por sua livre vontade na ecclesia. Sob certos aspectos, essa recusa, que segundo a teologia pauliniana mantém na condição de refém a humanidade inteira, continua a ser de fato um enigma quando pensamos nas esperanças messiânicas e em certas predições apocalípticas do Antigo Testamento (talvez, segundo uma observação sarcástica de Scholem, os judeus tenham esperado uns quinze dias a partir da suposta ressurreição de Jesus, antes de concluírem que absolutamente nada mudara). A fúria dos Padres da Igreja e do clero nascente perante os que não queriam reconhecer em Cristo o prometido, o Messias ressuscitado, desencadeou milênios de ódio e de perseguições. O antissemitismo persistiu no seu avanço venenoso até uma “solução final”. As continuidades talvez sejam tortuosas e nalguns casos subterrâneas, mas são também inegáveis.
Não há documentos que possam prestar justiça a este prolongado horror. São famosos certos episódios, certos períodos de particular perseguição. Aí se incluem os massacres no tempo das Cruzadas, os pogroms na Europa Central e Oriental que da Idade Média se estendem até aos tempos modernos, a expulsão de Espanha e os seus atrozes efeitos inquisitoriais subsequentes, os inumeráveis casos de chacina desencadeados pelos pretensos “crimes rituais” (cuja bestialidade é ainda honrosamente comemorada nos meios rurais austríacos do século xxi). Mas não são estas explosões de terror a substância essencial da história: é a condição quotidiana do judeu num mundo cristão. Para além do calculável, como a “matéria negra” da cosmologia, há o ostracismo social, as extorsões, a discriminação judicial, a humilhação a que as judias e os judeus estavam expostos até mesmo no interior de comunidades relativamente liberalizadas e formalmente tolerantes. Não é possível listar as ocasiões em que as crianças se viram perseguidas nas ruas (desporto que conheço em primeira mão), cobertas de escarros ou maltratadas quando iam a caminho da escola; as situações, públicas e profissionais, em que os seus pais eram tratados com condescendência, injuriados ou postos na rua. Os judeus carregam consigo, desde a infância, o suor do medo. Talvez só os ciganos tenham suportado uma crônica de rejeição comparável. A loucura da Shoah, muito para além do inteligível ou narrável, teve a sua lógica – como é muitas vezes o caso da loucura. Só a aniquilação total podia pôr termo ao “problema judeu”. O assassínio tinha de ser ontológico. O que significa que tinha de eliminar o fato de existirem judeus. Não se podia permitir que o feto judeu viesse ao mundo. Devia ser abatido juntamente com a sua mãe grávida. No matadouro nazi, o pecado original do judeu, a lepra com que ameaçava o gentio de contágio, era a simples existência. As discussões sobre a possível unicidade Shoah são superficiais e degradantes. Estaline levou à morte muito mais seres humanos do que Hitler. Milhões de entre os chamados cúlaques e as suas famílias foram deliberadamente mortos de fome pelo crime de serem cúlaques. Os armênios, os indonésios e as populações da Somália foram massacrados em massa. De que relatos fiáveis dispomos no que se refere à eliminação dos aborígenes australianos, ao genocídio no Congo Belga (os historiadores situam o número das vítimas algures entre os cinco e os dez milhões). O Homo sapiens é uma criatura propensa ao homicídio, equipada para o sadismo. Estatisticamente, o Holocausto, quase sem margem para dúvidas, não terá sido o pior capítulo. A nossa Terra está semeada de campos de morte. E, contudo, há uma diferença. Que bem poderá ser decisiva. Nenhuma ideologia além do hitlerismo definiu e proclamou a existência e a sobrevivência como criminosas. Nenhuma outra ideologia e nenhum outro programa político proclamou abertamente que os seus fins não poderiam ser alcançados enquanto um judeu, apesar de não passar de um verme, pusesse em perigo, nos termos desta ou daquela patologia, a existência do não-judeu. Porque a persistência desse destroço longamente abominado poderia infectar o sangue e a alma dos seus companheiros de humanidade. Assim, dos massacres da Renânia e das piras da Inquisição às câmaras de gás, foi percorrida uma via sinuosa. Mas que podemos cartografar. Os amenos sentimentos de penitência de algumas declarações recentes do Vaticano são em grande medida cosméticos. A imagem do judeu como pária tem raízes profundas: “Erravam como cegos pelas ruas, manchados de sangue, ninguém podia tocar as suas vestes [...] espiavam os nossos passos, e proibiam-nos as nossas ruas” (Lamentações 4, 14-18).
Haverá uma explicação convincente? Para o fato de os japoneses, que quase nunca terão visto um judeu, serem tenazes editores e difusores desse livro inteiramente fraudulento, mas assassino, que é Protocolos dos Sábios de Sião? Para o incansável ódio aos judeus que, se mantém na Polônia, na Áustria, hoje mesmo, quando não subsistem praticamente judeus nesses países? Para o ressurgimento de um antissemitismo acerbo na Rússia pós-comunista e, de fato, em diferentes núcleos dispersos pela Europa Ocidental? Passar-se-á uma noite sem que um cemitério judeu seja vandalizado, até mesmo na tolerante Grã-Bretanha? “O tumulto dos teus inimigos cresce a cada momento” (Salmos 74, 23).
Por quê?
As teorias históricas, sociológicas e econômicas abundam. Devida tanto a fatores internos como à imposição do exterior, a singularidade do judeu, o seu isolamento, a sua recusa, na longa duração, de se fundir na humanidade comum, irritou e enfureceu o gentio. Foi uma espinha atravessada na sua garganta. O exclusor sentia-se excluído – combinação de papéis explosiva. A abstenção de proselitismo característica dos judeus, os obstáculos que levanta aos que possam querer participar no seu pacto – impulso excêntrico, mas não desconhecido –, agravaram o sentimento de ostracismo recíproco aqui em causa. Só a eliminação, ainda que por meio de um epitáfio pavoroso, poderia resolver esta intuição persistente de uma espécie de arrogância transcendental no judeu. No plano econômico, os judeus emprestavam dinheiro, embora desempenhassem com probidade e forçados esse papel. Matemo-lo, incendiemos a sua casa e os seus livros de contas, e as nossas dívidas serão anuladas. Este factor teve, sem dúvida, a sua importância nos pogroms, no entusiasmo posto na expulsão dos judeus da região. Com a fortuna próspera que os judeus conheceram, como já lembrei, no capitalismo avançado, a inveja do que pareciam capacidades ocultas de manipulação e previsão tendeu a intensificar-se. O antissemitismo conseguiu a proeza de caracterizar os judeus ao mesmo tempo como bolcheviques e plutocratas. Esta dupla figura ocupa um vasto lugar nos mitos nazis.
O ódio de si, esse emaranhado compósito, contribuiu com o seu vírus particular para agravar a situação do judeu. Encontramo-lo entre os mais dotados – em Marx, em Weininger, em certas passagens de Wittgenstein e, num grau feroz, em Simone Weil. Se judeus tão destacados podiam ironizar sobre a sua herança e repudiá-la, porque não faria o mesmo o gentio? A tudo isto devem acrescentar-se hoje os dilemas introduzidos pelo sionismo, pela instauração de um Estado militante em Israel. O judeu da Diáspora atual é inevitavelmente assombrado pelo conflito potenciai de duas lealdades. É membro da comunidade gentia em que vive, mas, voluntária e conscientemente ou não, está também ligado a Israel. Que pátria interior será, em última instância, a sua? Para sobreviver, Israel teve de se tornar uma sociedade nacionalista, e por vezes agressiva e repressiva. Fez-se chauvinista movida pela necessidade de enfrentar obstáculos tremendos. Voltarei a este aspecto . Mas o que se torna hoje patente é a utilização do antissionismo – opção defensável em si própria – para absorver e mascarar todos os matizes de antissemitismo. Torna-se cada vez mais difícil separar uma posição da outra. Em que medida a condenação de Israel pela (velha e nova) esquerda acabará por traduzir o que é fundamentalmente um ódio do judeu e um ódio de si (vejam-se as denúncias destemperadas que Noam Chomsky proclama do “fascismo israelita”)? Que ironia mórbida faz com que Israel receba os apoios da direita fanática, dos protonazis franceses ou das congregações fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos? Numa perspectiva mais generalizada, que fundamento atribuir à convicção, popular ou cultivada, de que o nosso mundo geopolítico não terá tranquilidade, não chegará a um entendimento com o islão, enquanto o destino de Israel desestabilizar não só o Médio Oriente, mas elementos importantes da Diáspora, como na ex-União Soviética? Que “besta feroz”, segundo a intuição de Yeats, “avança sobre Belém”?
Todos estes fatores e as suas conjunções são importantes. No seu todo, teceram uma teia sufocante. O nó torna--se duplo, e depois triplo, à medida que as reações dos judeus à sua interminável condição de párias reforçam precisamente os principais traços que desencadeiam o antissemitismo. Trata-se de uma espiral de inferno. Mas, ainda que combinados e analisados racionalmente, estes aspectos, materiais e psíquicos, do quadro das circunstâncias permitem um diagnóstico adequado? Poderão, repito a pergunta, explicar o antissemitismo em países onde não houve judeus ou dos quais os judeus foram completamente varridos?
Penso que não. Daí que recorra agora a conceitos vulneravelmente metafóricos e de raiz teológica.
Um antissemitismo teológico, cristológico, foi decisivo no início do cristianismo. A “cegueira” recairá sobre Israel devido à sua rejeição do Cristo crucificado. Não poderá haver Segunda Vinda, salvação última, enquanto os judeus se não tiverem convertido, lapso de tempo que Andrew Marvell, numa equação célebre, fazia corresponder à eternidade. Embora atenuada pelo agnosticismo contemporâneo, a polêmica mortal prossegue. Aparentemente impotente, disperso, desprezado, incapacitado, talvez duradouramente pela Shoah, o judaísmo mantém a sua grande heresia e assim mantém cativo o cristianismo, seu herdeiro. A Epístola aos Romanos 11 não deixa margem para dúvidas: só quando um Deus cristão “enxertar de novo os judeus”, a humanidade ferida acederá à paz universal. E, contudo, que sinais há desta integração abençoada? Entre todos os apóstolos, pelo nome e pelo aspecto físico, pela sua associação ao dinheiro, é Judas o arquijudeu. Dois mil anos de pregação e propaganda cristãs, de iconografia cristã, tornaram esse ponto definitivo. É ele o traidor imperdoável, com os seus cabelos ruivos, o seu nariz adunco e as suas moedas de prata.
Tentei levar esta ordem de ideias um pouco mais longe.
Em e por si própria, a acusação de deicídio que, ao longo dos séculos, o cristianismo infligiu ao judaísmo, é uma acusação demente. Como podem os homens matar Deus (embora talvez haja, na Eucaristia, uma prática repugnante para a sensibilidade judaica, vestígios de ritos do canibalismo)? Mas, apesar de insensata, a acusação segundo a qual os judeus “mataram Deus” na pessoa do seu filho nazareno, atravessou as eras. Proclamada pelo uivo das turbas cheias de ódio, glosada por teólogos entre os quais se incluiu Lutero, esta obscenidade ajudou a precipitar milhares de judeus, homens, mulheres e crianças, nas mortes mais atrozes. Num livro anterior, sugeri que esta denúncia dos judeus dissimulava de fato a verdadeira acusação. Graças a uma inversão que a mitologia e a psicanálise nos tornaram familiar, a acusação de deicídio representa exatamente o seu contrário. O judeu é odiado não porque matou Deus, mas porque O inventou e criou.
O monoteísmo, nos termos em que se desenvolveu a partir de Abraão e da revelação do Monte do Sinai, impôs ao homem um fardo moral e psicológico insuportável. O judaísmo primitivo insurgiu-se com frequência contra esse peso intolerável. O politeísmo, tanto nas suas formas pagãs como na sua versão de compromisso trinitária, gratifica necessidades e exigências imaginárias fundamentais da humanidade. Daí o encanto imperecível da mitologia clássica. A ideia de um Deus inimaginável, inatingível, inominável, vazio como o ar do deserto, declarando como injúria qualquer representação sensorial ou sequer alegórica, como que repugna, ao mesmo tempo que a repele, à sensibilidade humana comum. E, no sentido literal, “indizível”. E, todavia, dessa realidade infinita e sem rosto emanam mandamentos éticos, imperativos rígidos de conduta, exigências de justiça nas esferas privada e social que vão muito para além do que alcança a vasta maioria da humanidade. Omnipresente, omnipotente, implacável, o Deus do Sinai e do sopro do vento é uma crítica sem resposta do homem natural. O golpe de gênio sedutor do cristianismo pauliniano foi convidar os seres humanos a entrarem numa casa de Deus disposta ao perdão, cheia de amor, ricamente colorida, através da mediação sacrificial de Cristo. Reconhecer no homem “a criatura nua e bifurcada” que ele é, santificando ao mesmo tempo a sua enfermidade. O culto de Maria, o populoso panteão dos santos intercessores, as mediações da arte e da música, tudo coisas vedadas ao judaísmo iconoclasta, tornaram as relações com uma divindade trina como que familiares. Nada disto tem seja o que for em comum com as abstrações humildes, controversas, interminavelmente exigentes do monoteísmo judaico. Duas vezes mais, o judaísmo ou os seus derivados imediatos confrontaram os homens com a chantagem do absoluto, com ideais morais e sociais estranhos à natureza e às capacidades humanas. O Sermão da Montanha é em larga medida a transposição de uma citação do livro dos Profetas. Quando Jesus intima os seus seguidores a não pensarem nas suas vidas, a perdoarem os seus inimigos, a não julgarem para não serem julgados, a amarem os seus próximos como a si mesmos, está a reformular os ensinamentos de Isaías, as admoestações de Jeremias. O altruísmo e o desprendimento do mundo que implicam as exigências que Jesus impõe aos judeus são uma condenação sublime da existência terrena, do egocentrismo que move o nosso comportamento natural. A frase que remata o Sermão reza: “Sede pois perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu”. Nada menos. Esta prescrição não anda longe, para o dizermos moderadamente, de ser monstruosa. Um punhado de santos, de ascetas encerrados na sua solidão fanática, ter-se-ão esforçado por cumprir tal mandamento.
A mulher e o homem normais fingem aceitá-lo: não vivem, não podem viver os seus trabalhos e os seus dias a esta luz ofuscante. Mas essa incapacidade alimenta um ressentimento psicológico feroz.
O terceiro caso de exigência ética judaica é o do socialismo utópico, nomeadamente sob a versão messiânica do marxismo. Uma vez mais, é pedido,  ou, melhor, ordenado à humanidade que seja melhor do que é, que liquide a sua cupidez e os seus prazeres mesquinhos em nome de uma partilha sem distinções com outrem, fundindo-se o egoísmo de cada um dos seus membros no destino de uma coletividade disciplinada. O comunismo honrou os homens com uma esperança imensa. Expressando-se nalguns gestos revolucionários sacrificiais, nalgumas comunidades radicais, impôs uma diminuição espartana do eu, um empenhamento visionário que negava as nossas fraquezas. Mas era ao mesmo tempo sentido como um ideal, lançando as bases da justiça numa terra explorada e em vias de autodestruição.
Nada alimenta um rancor mais profundo do que as exigências que não somos capazes de cumprir, mas nas quais reconhecemos, ainda que intermitente ou subconscientemente, uma verdade irrefutável. É este rancor, este ressentimento, segundo creio, que subjaz ao ódio pelo judeu e o perpetua. Hitler dizia que a consciência era uma invenção dos judeus. Eu diria antes: “a má consciência”.
Continuo a acreditar na pertinência substancial desta explicação e etiologia do antissemitismo em termos morais e psicológicos. Mas hoje dou por mim a interrogar-me sobre a provocação que lança ao mundo dos gentios o simples fato (esse “escândalo”) da sobrevivência dos judeus. No que respeita aos chineses, o seu número esmagador proporciona uma justificação que leva a admitir a sua permanência. A insignificância demográfica das coletividades dos judeus e o modo como estas escaparam repetidamente à aniquilação são uma “estranheza” e uma “enormidade” aos seus próprios olhos. Sobre o não-judeu, produzem o efeito de uma irritação subcutânea. Há uma impertinência selvagem na sobrevivência judaica. É difícil definir a configuração social e psíquica das suas condições. E, contudo, descubro-me a perguntar de novo, movido por um caráter de urgência crescente, o que poderá tornar plausível, o que poderá justificar o fato decididamente fantástico que suscitou a interrogação inicial deste capítulo: Porque continuam a existir judeus?
O Estado de Israel fornece uma resposta triunfante, e por vezes triunfalista. Uma fênix renasce das suas cinzas, mas com garras de aço. O seu nascimento, a sua sobrevivência perante um cerco de inimigos mortais são um milagre. Do mesmo modo que o desbravamento da terra, pedra a pedra, a fundação de uma comunidade moderna, democrática e com padrões de instrução elevados, a sua capacidade de integrar hostes sucessivas de imigrantes. Cada judeu tem hoje na terra um lugar de refúgio assegurado. Tudo isto são prodígios sem paralelo efetivo em toda a história. Israel assinala um milagre ao mesmo tempo antigo e sem precedentes no destino dos judeus, e nas suas possibilidades de sobrevivência. Mas, para existir, Israel teve de regenerar capacidades e valores adormecidos desde o livro de Josué. Teve de cultivar e de glorificar os talentos militares e a sua feição implacável. Os custos internos foram consideráveis. A sociedade israelita é por necessidade militante e muitas vezes chauvinista. Nem sempre dispõe – como poderia fazê-lo? – do tempo, do espaço ou dos meios econômicos requeridos pelas atividades culturais, científicas e estéticas que enfeitam a Diáspora. Não é em Israel que os prêmios Nobel ou a criação filosófica medram com pujança. Mas ainda é cedo, e também não é este o problema de fundo.
Essencialmente sem poder durante cerca de dois mil anos, os judeus no exílio, nos ghettos, rodeados pela tolerância equívoca das sociedades gentias, não estavam em posição de perseguir outros seres humanos. Não podiam, fosse por que justa causa fosse, torturar, humilhar ou deportar outros homens e mulheres. Tal foi a nobreza singular dos judeus, uma nobreza que me parece muito maior do que qualquer outra. Para mim é uma verdade axiomática que seja quem for que torture outro ser humano, ainda que sob a pressão da necessidade militar e política, seja quem for que sistematicamente humilhe ou deixe sem o seu lar outro homem, mulher ou criança, degrada o núcleo essencial da sua própria humanidade. O imperativo da sobrevivência, as ambiguidades éticas da instalação no que era a Palestina (por meio de que sofística um israelita não-crente e não-praticante se autoriza a invocar a promessa de Deus a Abraão?) forçaram Israel a torturar, a humilhar, a expropriar – ainda que muitas vezes em menor medida do que os seus inimigos árabes e islâmicos. O Estado vive a coberto das suas muralhas. Armado até aos dentes. Conhece o racismo. Em resumo: transformou os judeus em homens comuns. A verdade é que a demografia ameaça esta normalidade contaminada. Em breve haverá mais árabes do que judeus no interior de Israel. Só uma catástrofe no mundo exterior poderia desencadear uma nova vaga de imigrantes. Parece mais do que verossímil que o colapso de Israel poderia produzir uma crise psicológica e espiritual irreparável na Diáspora. Mas não é certo. E muito possível que o judaísmo seja maior do que Israel, que nenhum revés histórico possa extinguir o mistério da sua persistência. O cristianismo talvez fosse mais forte nas catacumbas. Pura e simplesmente, são coisas que não sabemos. Entretanto, todavia, Israel está a reduzir o judeu à condição comum do homem nacionalista. Enfraqueceu essa singularidade moral e essa aristocracia da não-violência frente aos outros que foram a sua glória trágica.
Sei o preço inumano que esta impotência omnipotente implica. Sei como é fácil, como é gratuito criticar Israel quando se não quer compartilhar os seus fardos e perigos constantes. Mas foi sentir o enfraquecimento em causa que me impediu de ser sionista, de fazer a minha vida e a dos meus filhos em Israel. Os sionistas de salão são uma variedade tão desprezível como os companheiros de jornada que entoavam loas à União Soviética, mas tinham o cuidado de nunca pôr os pés dentro das suas fronteiras.
A própria Diáspora vive ameaçada. Referi-me às perdas constantes causadas pela assimilação e pelos casamentos mistos. Mas creio intensamente que para o judeu fora de Israel, para uma certa proporção de judeus fora de Israel, a sobrevivência se apresenta como uma missão. Em vários pontos fundamentais da lei mosaica e da exegese talmúdica, o judeu é ensinado a dar as boas-vindas ao estrangeiro. Nunca deverá esquecer que ele próprio foi um estrangeiro, um estranho na terra do Egito. Que também ele foi um sem eira nem beira e um refugiado numa terra que o recebia sem hospitalidade. A minha convicção é que o judeu da Diáspora deve sobreviver a fim de ser um hóspede entre os homens. Todos nós somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje estamos a tomar sombriamente consciência de que somos hóspedes de um planeta vandalizado. A menos que aprendamos a ser hóspedes uns dos outros, a humanidade sucumbirá na destruição mútua e no ódio sem tréguas. Um hóspede aceita as leis e usos do seu anfitrião, mas pode esforçar-se por reformá-las. Aprende as línguas dos que o acolhem, mas pode tentar falá-las melhor. Acima de tudo, se partir, livremente ou compelido a fazê-lo, procura deixar a morada do seu anfitrião mais limpa e mais bela do que a encontrou. Esforçar-se-á (é o conatus de Espinosa) a acrescentar alguma coisa de valor, de ordem intelectual, ideológica ou material, ao que encontrou quando bateu à porta.
A arte de ser hóspede é muitas vezes quase impossível de praticar. O preconceito, a inveja, os atavismos territoriais do anfitrião instauram uma ameaça constante. Por mais calorosas que tenham sido as boas-vindas, o judeu deve manter discretamente as malas feitas. Se for forçado a retomar a sua errância, não considerará essa experiência como uma punição lamentável. Ela é também uma oportunidade. Não há língua que não valha a pena aprender. Nem nação ou sociedade que não valha a pena conhecer. Não há cidade que não valha a pena deixar, se sucumbir à injustiça. Somos cúmplices do que nos deixa indiferentes. A senha do judaísmo é Exodus, impelindo a novos começos, apontando a estrela da manhã. Hitler falava sarcasticamente de Luftmenschen, dos judeus como “criaturas do ar”. Mas o ar pode ser um reino de liberdade e de luz. “Tornai-vos uma força de fertilidade entre os homens”, insistia um dos fundadores de Israel, “porque confinados num só país podeis converter-vos em estrume”. O nacionalismo, do qual Israel se tornou necessariamente figura emblemática, o apelo tribal, parece-me não só estranho ao gênio interior do judaísmo e ao enigma da sua sobrevivência: viola também o imperativo o Baal Shem Tov, mestre do hassidismo: “A verdade está sempre no exílio”. Esta máxima é a minha oração da manhã.
Compreendo inteiramente que uma condição de peregrino não convém a todos. Que os riscos que acarreta são extremos. A Shoah talvez tenha tornado ridícula a minha convicção. Mas repito: sobrevivamos, se sobrevivermos, como hóspedes entre os homens, como hóspedes da própria existência. A sua mesa dos dias de festa, a família do judeu deixa sempre um lugar vazio para o estrangeiro que poderá bater à porta. Talvez seja um mendigo, talvez um mensageiro velado de Deus. A entrada nunca lhe deverá ser recusada. Ser anfitrião é também ser hóspede. Tal é o sentido que define a Diáspora, a sua justificação.
Tinha pensado desenvolver estas teses numa obra de corpo inteiro. Faltou-me a visão clara necessária.
E o hebraico.
(FIM)

H.C./J.A.R.