Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Gastón Baquero - Noturno iluminado

O amor é como um círio a iluminar a “noite escura da alma”, sentimento que nos congratula com as belezas da natureza e os dotes do(a) amado(a), com ele(a) partilhando o mesmo pão e sorvendo os mesmos acordes de uma música que se pretende harmônica, tal que se venha a configurar como o “adorno mais belo de uma vida”.

E o enleio do amor, nos dizeres do falante, é tão arrebatador que, feito uma “criança alienada”, sequer atreve-se a abrir os olhos, nem a pronunciar qualquer palavra, com receio de que o círio e a sua luz desapareçam, tornando tudo novamente uma trilha escura, desarrimo para cegos, ou melhor, tribulação nas vias de acesso à encosta desse fastígio que é o mais sublime de todos os êxtases.

J.A.R. – H.C.

Gastón Baquero

(1914-1997)

 

Nocturno luminoso

 

Music I heard with you was more than music, and

bread I broke with you was more than bread.

Conrad Aiken

 

Como un mapa pintado de violento amarillo sobre una pared gris,

como una mariposa aparecida de súbito en médio de los niños en el aula,

inesperadamente así,

cuando es más noche la noche de los ciegos extraviados en el laberinto,

puede aparecer de pronto una figura humana que sea como un cirio dulcemente encendido,

como el sol personal, o como el recuerdo de que hay también estrellas y hermosura,

y algo bello cantando todavía entre las viejas venas de la tierra.

 

Como un mapa o como una mariposa que se queda adherida en un espejo,

la dulce piel invade e ilumina las praderas oscuras del corazón;

inesperadamente así, como la centella o el árbol florecido,

esa piel luminosa es de pronto el adorno más bello de una vida,

es la respuesta pedida largamente a la impenetrable noche:

una llama de oro, un resplandor que vence a todo abismo,

un misterioso acompañamiento que impide la tristeza.

 

Como un mapa o como una mariposa así de simple es amar.

¡Adiós a las sombras, a los días ahogados de hastío, al girovagar la Nada!

Amar es ver en otra persona el cirio encendido, el sol manuable y personal

que nos toma de la mano como a un ciego perdido entre lo oscuro,

y va iluminándonos por el largo y tormentoso túnel de los días,

cada vez más radiante,

hasta que no vemos nada de lo tenebroso antiguo,

y todo es una música asentada, y un deleite callado,

excepcionalmente feliz y doloroso a un tiempo,

tan niño enajenado que no se atreve a abrir los ojos, ni a pronunciar una palabra,

por miedo a que la luz desaparezca, y ruede a tierra el cirio,

y todo vuelva a ser noche en derredor

la noche interminable de los ciegos.

 

En: “Magias e invenciones” (1984)

 

Melodia da Noite

(Leonid Afremov: pintor israelense)

 

Noturno iluminado

 

Music I beard with you was more than music, and

bread I broke with you was more than bread. (*)

Conrad Aiken

 

Como um mapa pintado de amarelo berrante sobre uma parede cinza,

como uma borboleta que aparece de súbito no meio das crianças na classe,

assim inesperadamente

quando é mais noite a noite dos cegos extraviados no labirinto,

pode aparecer de repente uma figura humana que seja como um círio docemente aceso,

como o sol pessoal, ou como a lembrança de que há também estrelas e formosura,

e algo belo ainda cantando entre as velhas veias da terra.

 

Como um mapa ou como uma borboleta aderida a um espelho,

a doce pele invade e ilumina as pradarias escuras do coração;

assim inesperadamente, como a centelha ou a árvore florida,

essa pele luminosa é de repente o adorno mais belo de uma vida,

é a resposta pedida largamente à impenetrável noite:

uma chama de ouro, um resplendor que vence todo abismo,

um misterioso acompanhamento que impede a tristeza.

 

Como um mapa ou como uma borboleta assim tão simples é amar,

Adeus às sombras, aos dias afogados no tédio, a perambular no Nada!

Amar é ver em outra pessoa o círio aceso, o sol manejável e pessoal

que nos toma pela mão como um cego perdido no escuro,

e vai nos iluminando pelo longo e atormentado túnel dos dias,

cada vez mais radiante,

até que não vemos nada do passado tenebroso,

e tudo é uma música afinada, e um deleite calado,

excepcionalmente feliz e doloroso ao mesmo tempo,

tão criança alienada que não se atreve a abrir os olhos, nem a pronunciar uma palavra,

com medo de que a luz desapareça, e o círio caia por terra,

e tudo volte a ser noite ao redor

a noite interminável dos cegos.

 

Em: “Magias e invenções” (1984)


Nota:

(*). “A música que escutei contigo foi mais do que música, e o pão que contigo partilhei foi mais do que pão.” – excerto do poema “Bread and Music” (“Pão e Música”), do poeta norte-americano Conrad Aiken.

Referência:

BAQUERO, Gastón. Noturno luminoso / Noturno iluminado. Tradução de Ali Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. In: LEMUS, Virgilio López (Seleção, prefácio e notas). Vinte poetas cubanos do século XX. Edição bilíngue. Tradução de Ali Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. Florianópolis (SC): Ed. da UFSC, 1994. Em espanhol: p. 150 e 152; em português: p. 151 e 153.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Carlos Drummond de Andrade - Fragilidade

O poema, essa compilação de versos sempre aquém das abrangentes representações do que se nos mostra tangível, nada mais é que um arabesco, mera tentativa de se condensar o sentido último da realidade, terminantemente irredutível às limitadas possibilidades da linguagem.

O rúptil, o instável, o contingente, a impermanência, enfim, são parte desse mundo inefável traduzido em alegorias, símbolos, metáforas, repletas de beleza – é claro –, singularizadas num instantâneo que é eternidade ao espírito, mas sempre a desvanecer-se antes que o sonho nos tenha levado a adentrar os portões do paraíso.

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Fragilidade

 

Este verso, apenas um arabesco

em torno do elemento essencial – inatingível.

Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas,

e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento,

ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades

de sono se depositam sobre a terra esfacelada.

Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe

subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música

feita de depurações e depurações, a delicada modelagem

de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais

que um arabesco, apenas um arabesco

abraça as coisas, sem reduzi-las.

 

Em: “A Rosa do Povo” (1945)

 

Fim do Arabesco

(Edgar Degas: pintor francês)


Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond. Fragilidade. In: __________. A rosa do povo / Claro enigma: 2 livros em 1. Rio de Janeiro, RJ: BestBolso, 2010. p. 53. (Coleção “Saraiva Vira-Vira”; Poesia Clássica)

sábado, 29 de janeiro de 2022

Claribel Alegría - Ars Poetica

A poetisa e escritora nicaraguense não olvida que o vate, vez por outra, faça as vezes de uma “ave de mau agouro” a pressagiar azares, desditas, perdas ou más colheitas. Ainda assim, ela não se trocaria para fazer as vezes da Vênus de Milo no Louvre, em Paris (FR), admirada por milhões de turistas, mas exposta ao “tédio” e à decantação do pó, sempre à espreita.

Alegría prefere fazer jus ao próprio nome (rs), vislumbrando a cada dia a “terra prometida”, luminosa entre vales, vulcões e despojos de guerra: nada de marasmo em sua “arte poética”, pois o que a mantém viva é a luta quotidiana com as palavras e o desvendar de possibilidades insuspeitadas para essa terra onde o sol nunca se põe.

J.A.R. – H.C.

 

Claribel Alegría

(1924-2018)

 

Ars Poetica

 

Yo,

poeta de oficio,

condenada tantas veces

a ser cuervo

jamás me cambiaría

por la Venus de Milo:

mientras reina en el Louvre

y se muere de tedio

y junta polvo

yo descubro el sol

todos los días

y entre valles

volcanes

y despojos de guerra

avizoro la tierra prometida.

 

Destruição da Fortaleza - Guerra Civil Inglesa

Castelo de Scarborough, 1645

(Ivan Lapper: artista inglês)

 

Ars Poetica

 

Eu,

poeta de ofício,

condenada tantas vezes

a ser corvo,

jamais me trocaria

pela Vênus de Milo:

enquanto ela reina no Louvre,

morre de tédio

e cobre-se de poeira,

eu descubro o sol

todos os dias

e, entre vales,

vulcões

e despojos de guerra,

espreito a terra prometida.


Referência:

ALEGRÍA, Claribel. Ars poetica. In: __________. Variaciones en clave de mí: poesía. 1. ed. Madrid, ES: Libertarias/Prodhufi, sept. 1993. p. 26. (Colección ‘Libros del Egoista’)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Walt Whitman - Ouvi no fim do dia

Whitman, por duas vezes, revela estar infeliz, mesmo a despeito de que seu nome tenha sido bem recebido no Capitólio, e ainda que pondere como realizados os seus planos de vida. Mas o poeta se reconcilia com o seu fado e com a fama obtida com a obra poética que publicara, quando o seu amigo – os versos finais são inequívocos sobre a relação de companheirismo mantida com um outro homem, seu amante – veio ter com ele.

Em meio a uma imagística pastoral, o tema da sexualidade desponta como defluência de um processo natural, como se Whitman estivesse encerrando um ciclo de repressões às suas tendências eróticas invertidas. Desdobra-se daí certa confrontação entre as perspectivas de sua vida pública – celebridade, fama ou prestígio – e de sua vida privada – cujo teor, alcançando publicidade, poderia não ser bem aceito na puritana América do século XIX.

J.A.R. – H.C.

 

Walt Whitman

(1819-1892)

 

When I heard at the close of day

 

When I heard at the close of the day how my name had been receiv’d with plaudits in the capitol, still it was not a happy night for me that follow’d,

And else when I carous’d, or when my plans were accomplish’d, still I was not happy,

But the day when I rose at dawn from the bed of perfect health, refresh’d, singing, inhaling the ripe breath of autumn,

When I saw the full moon in the west grow pale and disappear in the morning light,

When I wander’d alone over the beach, and undressing bathed, laughing with the cool waters, and saw the sun rise,

And when I thought how my dear friend my lover was on his way coming, O then I was happy,

O then each breath tasted sweeter, and all that day my food nourish’d me more, and the beautiful day pass’d well,

And the next came with equal joy, and with the next at evening came my friend,

And that night, while all was still I heard the waters roll slowly continually up the shores,

I heard the hissing rustle of the liquid and sands as directed to me whispering to congratulate me,

For the one I love most lay sleeping by me under the same cover in the cool night,

In the stillness in the autumn moonbeams his face was inclined toward me,

And his arm lay lightly around my breast – and that night I was happy.

 

À espera de que o romance chegue

(Fabian Perez: pintor argentino)

 

Ouvi no fim do dia

 

Ouvi no fim do dia sobre o modo como meu nome foi recebido no capitólio, e ainda assim não foi uma noite feliz para mim aquela que se seguiu,

E mais, quando eu me diverti, ou quando meus planos foram realizados, ainda assim eu não me senti feliz,

Mas no dia em que me levantei da cama, na alvorada, com perfeita saúde, renovado, cantando, inalando o maduro sopro do outono,

Quando vi a lua cheia no Oeste crescer pálida e desaparecer na luz da manhã,

Quando vaguei sozinho pela praia e despido me banhei, rindo com as águas frescas, e avistando o nascer do sol,

E quando pensei sobre o fato de que meu amigo querido, meu amante, já estava viajando para me encontrar, ó então, senti-me feliz,

Ó então, cada sopro de minha respiração tinha um gosto mais doce, e durante todo aquele dia a minha comida foi mais nutritiva e o dia maravilhoso passou tão bem,

E o próximo veio com a mesma alegria, e na noite do próximo veio o meu amigo,

E naquela noite, quando tudo estava em silêncio, ouvi as águas rolarem vagarosamente, continuamente, sobre o litoral,

Ouvi o sibilo apressado do líquido nas areias, dirigindo-se para mim, sussurrando para me congratular,

Pois aquele a quem mais amo estava dormindo ao meu lado, embaixo da mesma coberta, na noite fresca,

No silêncio dos raios lunares outonais, sua face estava inclinada em minha direção,

E seus braços caíam levemente em torno de meu peito – e naquela noite eu estava feliz.


Referências:

Em Inglês

WHITMAN, Walt. When I heard at the close of day. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 94.

Em Português

WHITMAN, Walt. Ouvi no fim do dia. Tradução de Luciano Alves Meira. In: __________. Folhas de relva. Texto integral. Tradução e introdução de Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo (SP): Martin Claret, 2012. p. 137-138. (Série Ouro: Coleção ‘A Obra-Prima de Cada Autor’; n. 42)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Hilda Hilst - Na tua ausência

Gravadas em versos, aqui estão algumas lembranças da poetisa em relação ao seu pai, o estilo castiço como se comportava, os sonhos de transcendência e a forma pela qual o “sal da terra” – não exatamente no sentido atribuído pelas palavras de Cristo – corroeu as estruturas de uma casa que se pretendia ungida contra máculas.

Nota-se certa inflexão de um ponto de vista ascético, para não dizer religioso, a outro que subentende um despertar lúbrico, muito mais ostensivo nas obras da poetisa paulista. Compreendes-me leitor? Os ventos de castidade foram-se com o falecido pai e o que lhes sucedeu foi uma nova casa onde as contenções sobre a sexualidade deixaram de prevalecer.

J.A.R. – H.C.

 

Hilda Hilst

(1930-2004)

 

Na tua ausência

 

Na tua ausência, na casa o perfume das igrejas. O odor

Da castidade antiga dos incensos reacendeu a alegria da infância

E aspirei contigo o perfume menos casto das cerejas. Na casa,

Um ruído de contas de rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.

Os ventos te seguiram. E próxima do teu passo, eu mesma era o silêncio,

A pedra. Impossível de abraço.

Uma torre contigo caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardis,

Fibras trançadas, e aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.

 

No teu andar, um quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,

Espaçado e perdido. Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terra

Corroendo os pilares, as cruzes, a capela? E os sonhos sobre a tua fonte

É mesmo crisálida pronta para ter asas?

 

Abriram-se os portões, mas a casa era nova. A que foi nossa

Tuas filhas te disseram que, na noite, um homem e sua torre,

Com paciências guardadas, pouco a pouco a demoliram.

 

Em: Odes Maiores ao Pai – IV, Exercícios (1959-1967)

 

Meus Pais

(David Hockney: pintor inglês)


Referência:

HILST, Hilda. Na tua ausência. In: __________. Uma superfície de gelo ancorada no riso: antologia. Seleção, organização e apresentação de Luisa Destri. São Paulo, SP: Globo, 2012. p. 104.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Tishani Doshi - No Museu Rodin

Os versos deste poema decerto são cogitações que afloraram à mente da poetisa indiana – a se confiar no título do poema – durante uma visita ao Museu Rodin, em Paris (FR): transitando pelas alas do prédio, entre as peças escultóricas do artista francês, imagina-se Doshi em companhia do poeta Rilke, nascido em Praga (CZ), numa jornada transversal pelo duo espaço/tempo.

Intrigou-me o fato de que as associações tenham sido elaboradas em relação a elementos líricos presentes nos poemas de Rilke, e não exatamente em conexão com as linhas, vincos ou gestuais realistas lavrados em bronze ou mármore, tão ostensivos nas figuras humanas de Rodin – e que estavam logo ali à sua frente! Em sua beleza, poderia ele imaginar-se como modelo – e que modelo! – para emergir do bronze à eternidade, pelas mãos do artista! (rs)

J.A.R. – H.C.

 

Tishani Doshi

(n. 1975)

 

At the Rodin Museum

 

Rilke is following me everywhere

With his tailor-made suits

And vegetarian smile.

 

He says because I’m young,

I’m always beginning,

And cannot know love.

 

He sees how I’m a giant piece

Of glass again, trying

To catch the sun

 

In remote corners of rooms,

Mountain tops, uncertain

Places of light.

 

He speaks of the cruelty

Of hospitals, the stillness

Of cathedrals,

 

Takes me through bodies

And arms and legs

Of such extravagant size,

 

The ancient sky burrows in

With all the dead words

We carry and cannot use.

 

He holds up mirrors

From which our reflections fall –

Half-battered existences,

 

Where we lose ourselves

For the sake of the other,

And the others still to come.

 

Museu Rodin

(Paris - FR)

 

No Museu Rodin

 

Rilke segue-me por toda parte

Com seus ternos feitos sob medida

E sorriso vegetariano.

 

Diz ele que em razão de eu ser jovem,

Estou sempre começando,

E não posso conhecer o amor.

 

Ele vê como sou, repetidamente,

Uma enorme peça de vidro,

Tentando capturar o sol

 

Nos cantos remotos de cômodos,

Topos de montanhas, incertos

Lugares de luz.

 

Fala da crueldade

Dos hospitais, da quietude

Das catedrais,

 

Conduz-me por entre corpos,

Braços e pernas

de tamanho tão extravagante,

 

O antigo céu a encobrir-se

Com todas as palavras mortas

Que carregamos sem que as possamos usar.

 

Ele sustém espelhos dos quais

Precipitam-se nossos reflexos –

Existências meio desgastadas,

 

Em cujas sendas nos perdemos

Pelo bem do outro,

E dos demais ainda por vir.


Referência:

DOSHI, Tishani. At the Rodin museum. In: THAYIL, Jeet (Ed.). 60 indian poets. New Delhi, IN: Penguin Books India, 2008. p. 135-136.