Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Roberto Bolaño - Bólido

Um carro preto em alta velocidade carrega uma leva de literatos para além da curva do ser (interprete-se, os umbrais da morte) – a exemplo do poeta nicaraguense Beltrán Morales (1945-1986), do chileno Juan Luis Martínez (1942-1993) e do escritor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982) –, e o poeta vislumbra a sua própria partida, ao adentrar a esplanada onde presume-se mover o aludido automóvel.

Terá sido um sonho ou, de fato, um pressentimento que veio ao autor em estado de plena consciência? O fato é que Bolaño faleceu muito prematuramente, aos cinquenta anos, deixando-nos, seja como for, uma obra meritória, especialmente no domínio do romance, com destaque para “Os detetives selvagens” (1998) e “2666” (2004).

J.A.R. – H.C.


Roberto Bolaño

(1953-2003)

 

Bólido

 

El automóvil negro desaparece

en la curva del ser. Yo

aparezco en la explanada:

todos van a fallecer, dice el viejo

que se apoya en la fachada.

No me cuentes más historias:

mi camino es el camino

de la nieve, no del parecer

más alto, más guapo, mejor.

Murió Beltrán Morales,

o eso dicen, murió

Juan Luis Martínez,

Rodrigo Lira se suicidó.

Murió Philip K. Dick

y ya sólo necesitamos

lo estrictamente necesario.

Ven, métete en mi cama.

Acariciémonos toda la noche

del ser y de su negro coche.

 

Porsche 356

(Yuriy Shevchuk: artista ucraniano)

 

Bólido

 

O automóvel preto desaparece

na curva do ser. Eu

apareço na esplanada:

todos hão de morrer, diz o velho

encostado à fachada.

Não me contes mais histórias:

meu caminho é o caminho

da neve, não o de parecer

mais alto, mais bonito, melhor.

Beltrán Morales morreu,

ou assim o dizem,

Juan Luis Martínez morreu,

Rodrigo Lira suicidou-se.

Philip K. Dick morreu

e agora só necessitamos

do que é estritamente necessário.

Vem, mete-te em minha cama.

Acariciemo-nos toda a noite

do ser e de seu carro preto.


Referência:

BOLAÑO, Roberto. Bólido. In: __________. Poesía reunida. Prólogo de Manuel Vilas. 1. ed. Madrid, ES: Alfaguara, 2018. p. 617.

domingo, 30 de maio de 2021

Konstantinos Kaváfis - Num velho livro

O achado do autor, nomeadamente uma apócrifa aquarela entre as páginas de um velho livro, levou-o a detalhar nos infratranscritos versos a bela conformação física do efebo nela caracterizado, devotado a apelos deveras luxuriosos, ou seja, seus atrativos direcionados àqueles cuja moral corrente adjetiva como “depravados”.

Consigne-se que os pormenores biográficos de Kaváfis revelam a sua natureza invertida, sua homossexualidade. Daí porque o leitor não há de julgar inusitada a forma como minudencia a beleza dos olhos e dos lábios, enfim, do rosto do jovem e do seu corpo galante, certamente, sentindo-se também atraído pelos atributos que nele se revelam.

J.A.R. – H.C.

 

Konstantinos Kaváfis

(1863-1933)

 

Σ’ ένα βιβλίο παλιό

 

Σ’ ένα βιβλίο παληό – περίπου εκατό ετών –

ανάμεσα στα φύλλα του λησμονημένη,

ηύρα μιάν υδατογραφία άνευ υπογραφής.

Θάταν το έργον καλλιτέχνου λίαν δυνατού.

Έφερ’ ως τίτλον, “Παρουσίασις του Έρωτος”.

 

Πλήν μάλλον ήρμοζε, “– του έρωτος των άκρως αισθητών”.

 

Γιατί ήταν φανερό σαν έβλεπες το έργον

(εύκολα νοιώθονταν η ιδέα του καλλιτέχνου)

που για όσους αγαπούνε κάπως υγιεινά,

μες στοπωσδήποτε επιτετραμμένον μένοντες,

δεν ήταν προωρισμένος ο έφηβος

της ζωγραφιάς με καστανά, βαθύχροα μάτια·

με του προσώπου του την εκλεκτή εμορφιά,

την εμορφιά των ανωμάλων έλξεων·

και τα ιδεώδη χείλη του που φέρνουνε

την ηδονή εις αγαπημένο σώμα·

με τα ιδεώδη μέλη του πλασμένα για κρεββάτια

που αναίσχυντα ταποκαλεί η τρεχάμενη ηθική.

 

(1922)

 

Efebo

(Fernando Vento Gutiérrez: artista peruano)

 

Num velho livro

 

Num velho livro – velho de quase cem anos –,

encontrei, entre as suas folhas esquecida,

uma aquarela em que não constava assinatura.

Tinha por título “Apresentação do Amor”.

 

Melhor conviria “– do amor dos sensuais extremados”.

 

Pois era manifesto, ao contemplar-se o quadro,

(e facilmente se entendia o propósito do artista)

que não para os que amam de modo salutar,

restringindo-se assim ao permitido,

é que estava destinado aquele efebo

do quadro – com os seus olhos de um castanho escuro

e a requintada beleza do seu rosto,

beleza dos pendores anômalos;

com os seus lábios ideais que levam

a volúpia ao corpo amado;

com os seus membros ideais, criados para leitos

que a moralidade vulgar tem por infames.

 

(1922)

 

Nota:

(*) Vê-se, no original em grego, a presença de um quinto verso na primeira estrofe (“Θάταν το έργον καλλιτέχνου λίαν δυνατού. algo como Seria obra de um artista bastante poderoso (ou habilidoso / talentoso). , não se sabe por qual motivo, ausente na tradução ao português.

Referências:

Em Grego

CAVAFY, C. P. Σ’ ένα βιβλίο παλιό. In: __________. The collected poems. A bilingual edition: Greek x English. Translated by Evangelos Sachperoglou. Oxford, EN: Oxford University Press, 2007. p. 138 and 140.

Em Português

KAVÁFIS, Konstantinos. Num velho livro. In: __________. Poemas. Seleção, estudo crítico, notas e tradução por José Paulo Paes. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1982. p. 158. (Coleção ‘Poiesis’)

sábado, 29 de maio de 2021

Paulo Henriques Britto - Três Lamentos (III)

Para o poeta e tradutor carioca, o estado em que se está vazio de tudo – mãos, cabeça, estômago desimpedidos, ou superadas quaisquer sensações – é exatamente aquele nos quais sucedem os mais imprevistos extremos – a descoberta da verdade, os grandes crimes, os mais sublimes gestos, ou nada absolutamente.

A exemplo das serpentes, os poemas mais sintéticos, moderados e sem asperezas – “os que menos coisas dizem” – são os que destilam o mais perfeito “veneno”: capturam o leitor pelos seus efeitos “entorpecedores” ou “paralisantes”, cativando-o pela brevidade de sua disposição gráfica, muito embora, vezes sem conta, deles se possa esgrimir uma pletora de comentos ou de ensaios analíticos.

J.A.R. – H.C.

 

Paulo Henriques Britto

(n. 1951)

 

Três Lamentos

 

III

 

Nada nas mãos nem na cabeça, nada

no estômago além da sensação vazia

de haver ultrapassado toda sensação.

 

É em estado assim que se descobre a verdade,

que se cometem os grandes crimes, os gestos

mais sublimes, ou então não se faz nada.

 

É como as cobras. As mais silenciosas,

de corpo mais esguio, de cor esmaecida,

destilam o veneno mais perfeito.

 

Assim também os poemas. Os mais contidos

e lisos, os que menos coisa dizem,

destilam o veneno mais perfeito.

 

Homem pensando

(Moris Manes: pintora israelense)


Referência:

BRITTO, Paulo Henriques. Três lamentos (III). In: __________. Liturgia da matéria. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira,1982. p. 30. (Coleção ‘Poesia Hoje’; v. 59)

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Diane di Prima - Três Lamentos

Di Prima, poetisa da ‘beat generation’, satiriza a marginalização das mulheres na comunidade literária novaiorquina e, por extensão, norte-americana: apesar do inegável talento, seu devotamento à poesia sofre contratempos, mesmo os mais triviais, como o de somente encontrar cadeiras duras na biblioteca que frequentava – certamente uma ironia à asserção de William Burroughs (1914-1997), de que para ser um grande poeta é preciso sentir-se confortável, sentado sozinho em uma cadeira.

A poetisa desafia com bom-humor os roteiros então vigentes da prática poética, empregando um vocabulário minimalista e conciso, às vezes ambivalente, com gírias incidentais, para demarcar o seu inconformismo com toda a indiferença e desapreço que lhe são dirigidos – contexto que a machuca em seu orgulho, em seu amor próprio, levando-a a entrar em estado de “ruminação”.

J.A.R. – H.C.

 

Diane di Prima

(1934-2020)

 

Three Laments

 

1

 

Alas

I believe

I might have become

a great writer

but

the chairs

in the library

were too hard

 

2

 

I have

the upper hand

but if I keep it

I’ll lose the circulation

in one arm

 

3

 

So here I am the coolest in New York

what dont swing I dont push.

In some Elysian field (1)

by a big tree

I chew my pride

like cud.

 

(1958)

 

Na biblioteca

(Édouard Vuillard: pintor francês)

 

Três Lamentos

 

1

 

Pobre de mim

acredito

que poderia haver-me tornado

uma grande escritora

mas

as cadeiras

da biblioteca

eram muito desconfortáveis

 

2

 

Tenho

a mão dominante

mas se assim a conservo

perderei a circulação

em um dos braços

 

3

 

Então eis-me aqui a mais incrível em Nova York

a não dar impulso ao que não balança.

Em algum campo Elísio

junto a uma grande árvore

rumino o meu orgulho

como vianda regurgitada.

 

(1958)


Nota:

(1) Na mitologia grega e romana, os Campos Elíseos eram o local de descanso final das felizes almas de pessoas virtuosas. (AXELROD; ROMAN; TRAVISANO, 2012, f.n. n. 1, p. 286)

Referência:

PRIMA, Diane di. Three laments. In: AXELROD, Steven Gould; ROMAN, Camille; TRAVISANO, Thomas (Eds.). The new anthology of american poetry. Vol. 3: Postmodernisms 1950-Present. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2012. p. 286.