Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Mark Strand - Comendo Poesia

Há muito de surreal e fantasioso neste poema de Strand, tendo como sítio uma biblioteca: o falante passa a “comer” poesia e os efeitos daí decorrentes perturbam a bibliotecária. Com efeito, o ente lírico se transforma num homem novo, ou melhor, num cão e começa a lamber-lhe a mão, levando-a, por sua vez, a reagir aos gritos, pois tudo lhe parece estar além do seu entendimento acerca do que sucede.

A poesia teria o condão de suscitar uma energia indômita, indomesticada, incontrolada, como a dos “cães” que habitam o “porão” do inconsciente: a tinta das páginas, onde impressos os poemas, primeiramente escorre pelos cantos da boca do poeta, logo mistura-se à saliva e, por fim, passa a denotar o amor devotado a quem possa dar um trato especial aos florilégios poéticos.

J.A.R. – H.C.

Mark Strand
(1934-2014)

Eating Poetry

Ink runs from the corners of my mouth.
There is no happiness like mine.
I have been eating poetry.

The librarian does not believe what she sees.
Her eyes are sad
and she walks with her hands in her dress.

The poems are gone.
The light is dim.
The dogs are on the basement stairs and coming up.

Their eyeballs roll,
their blond legs burn like brush.
The poor librarian begins to stamp her feet and weep.

She does not understand.
When I get on my knees and lick her hand,
she screams.

I am a new man.
I snarl at her and bark.
I romp with joy in the bookish dark.

Retrato de Henri Cordier
(Gustave Caillebotte: pintor francês)

Comendo Poesia

A tinta escorre pelas comissuras de minha boca.
Não há felicidade igual à minha.
Tenho andado a comer poesia.

A bibliotecária não acredita no que vê.
Tem os olhos tristes
e caminha com as mãos no vestido.

Os poemas desapareceram.
Tênue é a luz.
Os cães estão nas escadas do porão e sobem.

Seus globos oculares reviram-se,
as pernas fulvas ardem-lhe como sarça.
A pobre bibliotecária começa a bater os pés e a chorar.

Ela não compreende.
Ao ajoelhar-me e lamber-lhe a mão,
põe-se aos gritos.

Sou um homem novo.
Solto-lhe grunhidos e ladro.
Divirto-me alegremente em meio à penumbra livresca.

Referência:

STRAND, Mark. Eating poetry. In: ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed. New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 449.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Rupi Kaur - o novo mundo o esvaziou

Kaur, nascida na Índia, mas agora radicada no Canadá, comenta como o seu pai mudou bastante desde que deixou o país natal, a ponto de a mãe, depois de muito tempo sem vê-lo e enlevada por se juntar novamente ao esposo em seu novo lar, logo perceber que nem se parecia com a pessoa que conhecera antes de imigrar para o Novo Mundo.

 

São as dificuldades para se adaptar às mudanças impostas pelo novo ambiente, pela sociedade, pela linguagem e pela cultura que engendram contratempos aos imigrantes, mesmo que tenham a melhor das intenções – como a de prover um futuro mais promissor aos filhos, como no caso de Kaur: explica-se, por conseguinte, as razões de o poema situar-se na seção “Enraizar” da obra em referência, pois tal é o tema primordial a que diz respeito.

 

J.A.R. – H.C.

 

Rupi Kaur

(n. 1992)

 

the new world had drained him

 

for years they were separated by oceans

left with nothing but little photographs of each other

smaller than pass-port size photos

hers was tucked into a golden locket

his slipped inside his wallet

at the end of the day

when their worlds went quiet

studying them was their only intimacy

 

this was a time long before computers

when families in that part of the world

had not seen a telephone or laid their

almond eyes on a coloured television screen

long before you and i

 

as the wheels of the plane touched tarmac

she wondered if this was the place

had she boarded the right flight

should’ve asked the air hostess twice

like her husband suggested

 

walking into baggage claim

her heart beat so heavy

she thought it might fall out

eyes darting in every direction

searching for what to do next when

suddenly

right there

in the flesh

he stood

not a mirage − a man

first came relief

then bewilderment

they’d imagined this reunion for years

had rehearsed their lines

but her mouth seemed to forget

 

she felt a kick in her stomach

when she saw the shadows circling his eyes

and shoulders carrying an invisible weight

it looked like the life had been drained out of him

 

where was the person she had wed

she wondered

reaching for the golden locket

the one with the photo of the man

her husband did not look like anymore

 

O Lenhador

(Jean-François Millet: pintor francês)

 

o novo mundo o esvaziou

 

por anos eles ficaram separados pelos oceanos

não tinham nada além de pequenas fotos um do outro

menores que as fotos do passaporte

a dela ficou num broche de ouro

a dele guardada na carteira

no fim do dia

quando os dois mundos ficavam mudos

observar as fotos era o único contato íntimo

 

isso era muito antes dos computadores

e as famílias naquela parte do mundo

não tinham visto um telefone ou colocado

os olhos amendoados numa televisão colorida

era muito antes de você e eu

 

quando as rodas do avião tocaram o asfalto

ela se perguntou se o lugar era esse

será que tinha embarcado no voo certo

devia ter perguntado à comissária duas vezes

como o marido tinha sugerido

 

no caminho até a esteira da bagagem

seu coração batia tão carregado

que ela pensou que ia sair pela boca

os olhos corriam por todo canto

à procura do próximo passo

de repente

ali mesmo

em carne e osso

estava ele

não era miragem − era um homem

primeiro veio o alívio

depois o espanto

por anos sonharam com esse reencontro

tinham ensaiado os diálogos

mas a boca tinha esquecido

 

ela sentiu um chute no estômago

ao ver as sombras em volta de seus olhos

e os ombros carregando um peso invisível

parecia que tinham drenado sua vida por dentro

 

aonde a pessoa com quem casou tinha ido

ela se perguntava

procurando o broche dourado

aquele com a foto do homem

que não tinha a mesma cara do marido

 

Referências:

 

Em Inglês

 

KAUR, Rupi. the new world had drained him. In: __________. the sun and her flowers. 1st. ed. New York, N.Y.: Simon & Schuster, 2017. p. 140-141.

 

Em Português

KAUR, Rupi. o novo mundo o esvaziou. Tradução de Ana Guadalupe. In: __________. o que o sol faz com as flores. Tradução de Ana Guadalupe. 6. ed. São Paulo, SP: Planeta do Brasil, 2018. p. 140-141.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Carlos Aurélio - O que seria viver?

A poesia se revela para o falante quase que como uma terapia, capaz de o levar para além da insensatez do mundo tangível, lá onde o amor e o sentimento sejam o mar de onde provêm as ondas convertidas em palavras: memória, percepção, energia, requinte e beleza, numa linguagem evocativa muitas vezes espiralada sobre si mesma.

O transcendente é a que aspira o poeta, esperando fugir à camisa de força cerebrina, rica em insumos probantes e relações de causa e efeito: são os mistérios que dão motivos a se habitar esse páramo de imaginação, onde fluem formas mil, capazes de desafiar as leis conhecidas da dinâmica, num ritmo hipnótico que, como nenhum outro, nos ensina a melhor viver!

J.A.R. – H.C.

Carlos Aurélio Soares Cardoso
(n. 1959)

O que seria viver?

O que seria viver,
Sem a ânsia
De ir sempre além do tangível?

O que seria sonhar
Sem necessidade
De Amor
E ver flamejar
A cada carícia
A chama ascensional
Do sentimento humano
Em busca de Deus?

De que serviria tantos paraísos
Tantos versos, tantos céus,
Sem ouvidos para ouvi-los,
Sem mentes para tocá-los?

De que adiantaria
Mergulhar no desconhecido do Eu
Para trazer de lá, embriagado,
Esses poemas,
Sem corações
Para recebê-los
E protegê-los
Da insensatez do mundo?

A dança da vida
(Edvard Munch: pintor norueguês)

Referência:

CARDOSO, Carlos Aurélio Soares. O que seria viver? In: __________. Janela do nascente: poemas. Rio de Janeiro, RJ: RPQ Artes Gráficas e Editora, 1981. p. 39.

domingo, 27 de setembro de 2020

Mahmoud Darwish - Outra Trilha na Estrada

Do poeta e escritor palestino duas vezes “exilado” – primeiramente da Galileia, depois que a vila onde nascera foi arrasada pelos israelenses, em junho de 1948, posteriormente a outros países e mesmo para a Cisjordânia, onde se considerava uma desterrado −, apresento aqui uma versão ao português do belo poema em epígrafe, a partir de uma tradução ao inglês, muito embora não tão literal, pois com algum amparo no original em árabe, disponível neste endereço.

O título do poema remete à interminável jornada de alienação do povo palestino em relação às suas origens, sintetizada nos versos: “Sou daqui e sou de lá. Não estou lá, nem estou aqui”. Uma estrada interminável leva-o para longe de sua terra natal, sem, contudo, lograr romper a conexão com o patrimônio cultural de uma nação que até os dias que correm segue mantida sob opressão.  

J.A.R. – H.C.

Mahmoud Darwish
(1941-1008)

Another Road in the Road

There is yet another road in the road, another chance for migration.
To cross over we will throw many roses in the river.
No widow wants to return to us, there we have to go, north of the
neighing horses.
Have yet we forgotten something, both simple and worthy
of our new ideas?
When you talk about yesterday, friend, I see my face reflected
in the song of doves.
I touch the dove’s ring and hear flute-song in the abandoned fig tree.
My longing weeps for everything. My longing shoots back at me,
to kill or be killed.
Yet there is another road in the road, and on and on. So where
are the questions taking me?
I am from here, I am from there, yet am neither here nor there.
I will have to throw many roses before I reach a rose in Galilee.

In: “Fewer Roses” (1986)

A tempestade no mar da Galileia (detalhe)
(Rembrandt: pintor holandês)

Outra Trilha na Estrada

Na estrada há ainda uma trilha, outra chance para a migração.
Lançaremos muitas rosas no rio para podermos atravessá-lo.
Nenhuma viúva gostaria de retornar para nós, temos que ir para lá,
ao norte dos relinchos.
Não terás esquecido de alguma coisa digna para o advento de nosso
pensamento futuro?
Fala sobre ontem, meu amigo, para que eu possa ver a minha imagem
no arrulho da pomba e segurá-la pelo colar, ou encontrar
a flauta numa figueira abandonada...
Por qualquer coisa faz-me gemer a nostalgia, a pronunciar-me como
vítima ou assassino.
E ainda há outra trilha na estrada por caminhar e caminhar. Aonde
me levarão as perguntas?
Sou daqui e sou de lá. Não estou lá, nem estou aqui.
Muitas rosas lançarei antes de chegar a uma rosa na Galileia.

Em: “Menos Rosas” (1986)

Referência:

DARWISH, Mahmoud. Another road in the road. Translated from Arabic to English by Munir Akash and Carolyn Forché. In: __________. Unfortunately, it was paradise: selected poems of Mahmoud Darwish. Translated and edited by Munir Akash and Carolyn Forché with Sinan Antoon and Amira El-Zein. Berkeley and Los Angeles, CA; London, EN: University of California Press, 2003. p. 4.

sábado, 26 de setembro de 2020

Wisława Szymborska - Elogio dos sonhos

O sono, como sabemos, é uma espécie de canal para sintonizarmos o mundo dos sonhos, um estado em que o ser humano não se limita de modo algum, nem mesmo pela força da gravidade. Afinal, quem jamais terá sonhado em flutuar no ar, com toda a leveza, como se fosse um astronauta vogando pelo espaço?

Szymborska nos mostra esse quadro de possibilidades: diz pintar maravilhosamente ao modo do pintor holandês Vermeer (1632-1675), tocar piano, v.g., como o seu conterrâneo Frédéric Chopin (1810-1849), falar fluentemente o grego, ou, ainda, presenciar fatos incríveis, como ver “dois sóis” ou um pinguim sem nunca ter estado na Antártida.

E se o sonho se converter em pesadelo, colocando-nos a vida em risco, poderemos nos acordar e constatar que as cenas terríveis não são irreversíveis. Tal contraponto convalida, certamente, a comum observação de que os sonhos também representam, simbolicamente, o que tememos, em colação, por óbvio, com o que amamos e o que sentimos falta.

J.A.R. – H.C.

Wisława Szymborska
(1923-2012)

Pochwała snów

We śnie
maluję jak Vermeer van Delft.

Rozmawiam biegle po grecku
i nie tylko z żywymi.

Prowadzę samochód,
który jest mi posłuszny.

Jestem zdolna,
piszę wielkie poematy.

Słyszę głosy
nie gorzej niż poważni święci.

Bylibyście zdumieni
świetnością mojej gry na fortepianie.

Fruwam, jak się powinno,
czyli sama z siebie.

Spadając z dachu
umiem spaść miękko w zielone.

Nie jest mi trudno
oddychać pod wodą.

Nie narzekam:
udało mi się odkryć Atlantydę.

Cieszy mnie, że przed śmiercią
zawsze potrafię się zbudzić.

Natychmiast po wybuchu wojny
odwracam się na lepszy bok.

Jestem, ale nie muszę
być dzieckiem epoki.

Kilka lat temu
widziałam dwa słońca.

A przedwczoraj pingwina.
Najzupełniej wyraźnie.

In: “Wszelki wypadek” (1972)

A alegoria da pintura
(Johannes Vermeer: pintor holandês)

Elogio dos sonhos

Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente
e não só com os vivos.

Dirijo um carro
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve,
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema
debaixo d’água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.

Faz alguns anos
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim.
Com toda a clareza.

Em: “Todo caso” (1972)

Referência:

SZYMBORSKA, Wisława. Pochwała snów / Elogio dos sonhos. Tradução de Regina Przybycien. In: __________. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. Edição Bilíngue. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Em polonês: p. 125-126; em português: p. 48-49.