Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Bloom, Blake & Outros

Em complemento à postagem precedente, trago aos leitores algumas considerações ainda atinentes ao grande poeta visionário William Blake, assim como a outros autores, desta feita em metacomentário aos assentamentos de Harold Bloom, em seu livro “Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura”. 

ESTRUTURA DA OBRA
Antes de qualquer coisa, apreciaria desenvolver um rápido escólio sobre a forma como o crítico norte-americano estruturou o mencionado livro: sendo ele de origem judaica, empregou o arcabouço da Cabala, para distribuir os 100 autores pelos 10 Sefirot (plural de Sefirah), sendo que, para cada Sefirah, alocam-se dois grupos (ou lustros) de cinco escritores ou pensadores.
Segundo Bloom (2003, p. 13-14), os dez Sefirot da Cabala são emanações que se encontram no cerne de Deus ou do Homem Divino, ou por outra, são atributos do gênio de Deus:
Os Sefirot são metáforas tão abrangentes que se tornam, em si, poemas, ou mesmo poetas. [...] É possível entender os Sefirot como luzes, textos ou estágios da criação. Neste livro, os 100 gênios estão classificados em meus breves ensaios segundo os Sefirot que me parecem, respectivamente, mais pertinentes, mas duas almas jamais concordarão sobre o que lhes será mais pertinente (BLOOM, 2003, p. 14).
Ainda no preâmbulo da obra, constam alguns considerandos sobre o Sefirah denominado Yesod, onde foram aglutinados autores tão diferentes quanto o mencionado Blake e, por exemplo, o italiano Ítalo Calvino:
Em Yesod, o nono Sefirah [o singular de Sefirot], às vezes traduzido por “origem”, constata-se uma postura que remete ao antigo significado latino da palavra “gênio”, força geradora. Sob a égide de Yesod inclui, primeiramente, uma série de mestres da narrativa erótica: Flaubert, o português Eça de Queirós, o afro-brasileiro Machado de Assis, o argentino Borges e o fabulista moderno italiano, Ítalo Calvino. Aqui, uma segunda série é constituída por cinco vitalistas heroicos: o profeta-poeta William Blake, o romancista profético D. H. Lawrence, o grande dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, fortemente influenciado por Lawrence e Hart Crane, e dois poetas modernos originais, o austro-germânico Rilke e o italiano Montale (BLOOM, 2003, p. 16).
Já muito mais à frente, exatamente no exórdio do Lustro 17 do mesmo Yesod, Bloom volta a explicar-se:
Yesod, traduzido livremente como “fundação”, encerra dois significados afins: o impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos processos naturais. No primeiro lustro de Yesod, agrupei cinco mestres da ficção que, a exemplo de outros anteriormente arrolados, podem ser considerados ironistas trágicos, iniciando em Flaubert, o artista dos artistas, especialmente em Madame Bovary (BLOOM, 2003, p. 667).
E, por fim, no Lustro 18, idem do Sefirah em foco, acrescenta:
Yesod é a base da vida apaixonada e, neste segundo Lustro, reuni cinco visionários, ao mesmo tempo diferentes entre si e aliados, em termos de intensidade e força transformadora (BLOOM, 2003, p. 707).
 
PONDERAÇÕES
Começo por observar que Bloom, como que a reconhecer o caráter altamente subjetivo de seus agrupamentos e respectivas disposições nos Sefirot da Cabala, antecipa-se às críticas, formulando a ideia de que o julgamento de pertinência dificilmente logra obter consenso.
E é isso mesmo, se assim lhe parece! Será que a obra de Machado de Assis, por exemplo, tem um componente erótico acentuado para merecer essa qualificação pelo crítico americano? Será que uma história especulativa de traição, tal como “Dom Casmurro”, poderia ser qualificada como tal? Não há muito mais do que isso em Machado que se associe ao lascivo! Caso afirmativo, por que será que o crítico não juntou ao grupo o grande Liev Tolstói, o maior dos autores sobre o tema, com o seu “Anna Karenina”? Por que deixar Flaubert e Machado órfãos de companhia na descontrução – ou seria destruição? – da imagem feminina? (rs).
Na melhor das hipóteses, como em Eça de Queirós, pode-se falar em um estado latente de sensualidade na obra em prosa de Machado, mas nunca explícito, como seria o caso, v.g., em Philip Roth!
E se já fui tão longe nesta trilha digressiva, julgo que “erótico” seja exatamente isso: uma explicitude nas descrições que evidenciem os intentos, tal como ocorre em “Complexo de Portnoy” ou “Teatro de Sabbath”, mas sem descambar para a pornografia barata.
Se o mote do livro de Bloom não fosse a criatividade, poderia sugerir até mesmo os escritos do Marquês de Sade, porque para ser irrefutavelmente criativo no sexo, só se esmerando nas inúmeras posições do “Kama Sutra”: que maravilha aqueles templos todos lá na milenária Índia, fazendo a apologia do sexo explícito e maravilhando a muitos, inclusive ao Nobel Octavio Paz, que lá esteve em missão diplomática! (rs)...
Retomando o argumento: talvez o atributo mais acertado para escritores como Machado e Eça seja o de “ironistas”, o primeiro quando decompõe com fino trato o comportamento humano mais descalibrado, e o segundo ao incutir um viés antirreligioso em muitas de suas obras. Em ambos, como em Flaubert, percebe-se, ademais, o perfil mais terra-a-terra de seus temas.
Mas o que fazem no mesmo Sefirot as obras de Borges e de Calvino? De fato, são trabalhos mais imaginativos, no ramo do fantástico, não na mesma linha visionária de Blake, autor que, Bloom reconhece, mais se parece com Dante ou Milton.
Em suma: há uma heterogenia nos agrupados de Yesod, que se materializa na escolha de autores que ou bem estão nas imediações da experiência humana mais profana, ou bem, sem os pés no chão, compaginam-se em enciclopédias de experiências quiméricas.
Blake é um destes últimos: sua capacidade de criar “metáforas conceituais” configura, para Bloom, a essência de sua poesia (BLOOM, 2003, p. 716). “A essência do gênio de Blake é a exuberância, a autonomia, a coragem de repensar e rever tudo através de uma perspectiva pessoal” (BLOOM, 2003, p. 716), arremata.
E uma vez que se empregou o vocábulo “exuberância”, resgato um dos “Provérbios do Inferno”, da pena de Blake em pessoa: “Exuberância é beleza” (BLAKE, 2011, p. 25). E isso representa muito do que a sua poesia efetivamente é, sob quaisquer prismas em que se a avalie.
E devo confessar que, embora tenha lido poucas obras de Blake, todas me impressionaram pelo mesmo efeito: o poder das imagens formuladas, nas quais de todo modo, ratifico, capturar as propriedades do “élan vital” somente teria sentido se a experiência expressasse alguma similaridade, por exemplo, ao êxtase de Tereza D’Ávila: intérpretes há que nele veem certa dimensão erótica!
Leia com atenção o trecho abaixo, já transcrito no “post” anterior:
Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e, quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita e corrompida.
E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual (BLAKE, 2011, p. 30).
O trecho em negrito, digam-me, não tem forte correlação com a experiência mística de Tereza?
Mas vá lá: contemporizemos com Bloom. Há suficiente amplitude naquilo que se pode considerar como erótico, desde a paixão oculta ou platônica até a mais explícita relação sexual a céu aberto. E muito do que configura os fatos é objeto das mais diversificadas formas de interpretação. Interpretação e superinterpretação, diria Umberto Eco.
Mas será mesmo que todas as interpretações são possíveis? Ou como entende Eco, há limites à interpretação?!
Com você, leitor, o veredito! Leia o livro de Bloom e conclua por si mesmo: Bloom tem ampla cultura literária e você, certamente, usufruirá de um texto belamente escrito. Trata-se de um lídimo esteta da palavra, a alçar, como se disse alhures, a metaliteratura ou a crítica literária ao mesmo nível da própria literatura!
J.A.R. – H.C.
Referências:
BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
BLAKE, William. Uma visão memorável. In: O casamento do céu e do inferno & Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM, 2011.
❁❁

domingo, 23 de fevereiro de 2014

William Blake – O Infinito e o Divino


Em interpretação livre de uma das visões memoráveis – exatamente a segunda –, a compor o famoso opúsculo “O Casamento do Céu e Inferno”, do poeta britânico William Blake (1757-1827), o não menos notável mitólogo norte-americano Joseph Campbell, do alto de sua erudição sobre o tema das crenças que habitam o imaginário humano, assim a sintetiza:

Remove os querubins do portal e verás que tudo é infinito. Limparás o desejo e o medo de teus olhos e contemplarás tudo como uma revelação do Divino [1].

No original:

“Remove the cherubim from the gate, and you will see that everything is infinite. You will clean desire and fear from your eyes and will behold everything as a revelation of the Divine”. [2]


A visão completa de Blake, como se nota a seguir, rompe de fato a ancoragem do real, por intermédio de um diálogo imaginário, travado pelo próprio Bakle com os profetas bíblicos Isaías e Ezequiel:

Uma Visão Memorável [3]

Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo. Perguntei-lhes como se atreviam a afirmar que Deus falava com eles; e se não achavam que isto os tornava incompreendidos e passíveis de perseguição.

Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e finita; meus sentidos descobriram o infinito em cada coisa, e como desde então estivesse convicto e recebesse o sinal que a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às consequências escrevi”.

Então perguntei: – “A firme convicção de que uma coisa é, assim pode torná-la?”.
Ele respondeu: – “Todos os poetas têm a certeza disto e em épocas de imaginação esta fé inquebrantável moveu montanhas. No entanto, poucos conseguem ter essa firme convicção de qualquer coisa”.

Ezequiel retrucou: “A filosofia do Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana. Algumas nações adotaram um princípio para a origem. Outras criaram versões distintas para explicá-la. Nós, de Israel, ensinamos que o Gênio Poético (como agora o denominam) foi o princípio básico e os demais não passam de meras derivações. Esta é a razão de nosso desprezo pelos Filósofos e Sacerdotes de outros países. Profetizamos, e disto não resta dúvida, que todos os Deuses são originários do nosso e tributários do Gênio Poético. Foi precisamente isto que nosso grande poeta, o Rei Davi, desejava mais fervorosamente e evocou de forma tão enternecedora, exprimindo que é assim que triunfa-se sobre os inimigos e governa-se os reinos. Tanto amamos nosso Deus que em seu nome desdenhamos todas as deidades das nações vizinhas, afirmando que elas haviam se rebelado: Daí advém que o vulgo acabasse por acreditar que todas as nações seriam submetidas pelos judeus”.

“Isto” disse ele, “como todas as firmes convicções, está prestes a se realizar já que todas as nações acreditam no código judaico e veneram o Deus dos judeus. Que maior sujeição poderia haver?”.

Ouvi assombrado e não pude deixar de confessar minha própria convicção. Terminado o jantar, pedi a Isaías que regalasse o mundo revelando suas obras perdidas. Ele respondeu que nenhuma obra de valor se perdera. Das suas obras, Ezequiel afirmou o mesmo.

Também perguntei a Isaías o que levara-lhe a vagar desnudo por três anos. Ele respondeu: – “O mesmo que impeliu nosso amigo Diógenes, o Grego”.

Perguntei então a Ezequiel por que deglutira esterco e permanecera por tanto tempo deitado de lado direito e esquerdo. Ele respondeu: – “Para elevar os homens à percepção do infinito. As tribos norte-americanas também utilizam esta prática e poder-se-ia dizer honesto aquele que, resistindo a seu gênio ou consciência, os troca pelo bem-estar e a satisfação Imediata?”.

A antiga crença de que o mundo será consumido pelo fogo ao cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas do Inferno.

Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e, quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita e corrompida.

E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual.

Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis e terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes oculto.

Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita.

Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.

Contudo, a visão de Blake não levou a outras associações de cunho profético-religioso de mesma envergadura, mas, sobretudo, a dois inesperados encaminhamentos, quase que inter-relacionados: primeiramente, à menção de seu penúltimo parágrafo como epígrafe ao livro “As Portas da Percepção”, de Aldous Huxley, e depois, pela via indireta, à adoção do designativo “The Doors”, por uma banda californiana de rock, em referência à mesma passagem.

Como a psicodelia era a “moda” na virada dos anos 60/70, obviamente que a experiência não poderia passar sem provas que envolvessem drogas psicotrópicas: nomeadamente, a mescalina, na obra de Huxley, e o uso de um mix de álcool e heroína pela banda, ou melhor, por seu líder, Jim Morrison, que, em última instância, acabou por levá-lo prematuramente ao fim. Ou seria mesmo ao infinito? (rs).

Mas a obra de Blake não é a única que mereceu a detida atenção de Joseph Campbell: seu interesse é difuso, o que o leva a deambular por muitos domínios, um dos quais a alta literatura, sempre em busca de apreender as propriedades que os mitos incorporam e os modos pelos quais os artistas as externalizam em suas criações.


Com efeito, “Mitologia Criativa”, o último volume de sua tetralogia “As Máscaras de Deus”, contém, entre outras, análises minuciosas e precisas sobre as obras de James Joyce e Thomas Mann. É a leitura do momento. Em breve, espero postar aqui uma resenha sobre o referido volume.

Abraços.

J.A.R.-H.C.

Referências:

[1]. CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. Tradução Edson Bini. São Paulo: Landy, 2002. p. 114.

[2]. CAMPBELL, Joseph. Thou art that. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2014. p. 80.

[3]. BLAKE, William. Uma visão memorável. In: O casamento do céu e do inferno & Outros escritos. Tradução de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 28-30.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sete Mares



Na Dor

Transito pelas ruas sem perscrutar os passos.
Em estado de vigília salto de esquina a esquina.
Vejo tudo, ausculto tudo, num voo intrusivo
pelos sete mares dos volteios mentais.
E ali, terceiros não vejo: nos outros é que me frequento!

Sobressaltos, esgares, cismas rivalizam
como consortes do circunavegante,
num despir sem dó das verdades fingidas.
Contenda que se espraia pelos confins do tempo,
para a apreensão da quintessência do ser.

Porque nesse domínio não há autogoverno,
para quê as garantias de viagem?
Pela porta dos fundos entra involuntário,
o que pela da frente expulsamos
em consciente exercício da razão.

E sob pulsões, reféns de associações carbonárias,
velejamos de improviso a estuários de felicidade:
para além de um céu encoberto,
constelamos tantos acepipes e quimeras
que só de fruí-los nos basta, ainda que na dor.

Autoria própria.

J.A.R. – H.C.
÷ø

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Uma Homenagem Francesa

Ao compulsar uma seleta de poesias do francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), deparei com um inesperado poema em homenagem ao navegador português Vasco da Gama (c.1469-1524). Nele, as alusões náuticas e os paralelos onomatopaicos são palpáveis, assim como a referência aos intentos e aos contratempos vividos pelo lusitano, em sua empreitada “por mares nunca dantes navegados”.

Os arranjos das estrofes estão tal como na edição que me serviu de referência, apesar de parecer que a continuidade das ideias no poema fique algo comprometida com a disposição assim proposta pelo autor. Mas uma pergunta: quem sou eu para me indispor contra o poeta francês? (rs).

Seja como for, uma homenagem bem merecida, não?!

J.A.R./H.C.


Hommage a Vasco da Gama

Au seul souci de voyager
Outre une Inde splendide et trouble
– Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double

Comme sur quelque vergue bas
Plongeante avec la caravelle
Écumait toujours en ébats
Un oiseau d'annonce nouvelle

Qui criait monotonement
Sans que la barre ne varie
Un inutile gisement
Nuit, désespoir et pierrerie

Par son chant reflété jusqu'au
Sourire du pâle Vasco.
  

Homenagem a Vasco da Gama

Somente no afã de viajar
Mais além de uma Índia esplêndida e sombria
– Esta saudação seja o mensageiro
Do tempo, cabo que tua popa dobra

Como sobre alguma verga baixa
Mergulhando com a caravela
Sempre a espumar com as batidas
Um pássaro de nova anunciação

Que gritava monotonamente
Sem que o leme oscilasse
Uma inútil jazida
Noite, desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

Referência:

Mallarmé, Stéphane. Poesía. Versión de Frederico Gorbea. Barcelona: Plaza & Janés, 1982. p. 140.

Post scriptum: Já há algum tempo, um internauta endereçou um comentário acerca desta postagem, alertando-me sobre a existência de duas traduções, uma delas poética, do poema em referência de Mallarmé, comentário que, inadvertidamente, acabei por excluir quando, de fato, desejava inseri-lo na postagem, tudo por efeito da posição em que as duas opções (Incluir e Excluir) encontravam-se à época (tanto quanto agora).

Seja como for, as traduções ali mencionadas eram as de autoria de Augusto de Campos e de Mário Faustino, a seguir transcritas:

TRADUÇÃO DE AUGUSTO DE CAMPOS

À só tenção de ir além de

À só tenção de ir além de
Uma Índia em sombras e sobras
− Seja este brinde que te rende
O tempo, cabo que ao fim dobras

Como sobre a vela da nave
Mergulhando com a caravela
Espumante a ávida ave
Da novidade sempre vela

A cantar com monotonia
Sem jamais volver o timão
Uma jazida ali à mão
Noite demência e pedraria

Que se reflete pelo casco
Ao riso pálido de Vasco.

Disponível neste endereço.

TRADUÇÃO DE MÁRIO FAUSTINO (*)

Com a única inquietação de viajar

Com a única inquietação de viajar
Para além de uma Índia esplêndida e perturbada (1)
Seja esta saudação o mensageiro do tempo
Cabo que tua popa dobra

Como certa verga baixa
Mergulhante (2) junto com a caravela
Espumava sempre em folguedos
Um pássaro de nova anunciação

Que apregoava monotonamente
Sem que variasse a cana do leme
Um inútil jazigo (3)
Noite desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

(*) Tradução inserta no corpo do ensaio “Poesia não é brincadeira”, entre as páginas 159-181 da seguinte obra:

FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia: fontes e correntes da poesia ocidental. Pesquisa e organização de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.

Notas:

(1) Como a tradução de Mário Faustino é literal e tentativa, uma “tradução-traição” segundo ele próprio, à palavra “perturbada” o autor sugere ainda, alternativamente, “turva” ou “obscura”;

(2) O tradutor grafa o adjetivo mergulhante entre aspas;

(3) Ou jazida de minerais, conforme Faustino.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Jung e Freud – Cinema e Texto


Há um tanto na teoria psicanalítica de Jung a extrapolar o meramente racional, núcleo que teria levado Freud a adverti-lo no sentido de que a Psicanálise – que àquela altura já sofria os embates dos questionamentos se seria ou não uma vertente científica dos processos da mente –, poderia ser alvo de objeções letais, caso suas investigações migrassem para dimensões, digamos assim, algo ocultistas. Mas isso não deteve o autor suíço e, inclusive, parece haver sido um dos motivos do rompimento entre os dois psicanalistas – embora não o principal.

A propósito, não faz muito tempo, assisti a um bom filme de David Cronemberg, “Um Método Perigoso” (A Dangerous Method – 2011), em que tais contendas foram tratadas pedagogicamente: a famosa passagem do “desmaio” de Freud, depois da disputa que teria engendrado o seu rompimento com Jung, ali assoma para as mais diversas interpretações. Uma delas, de natureza autogenamente psicanalítica, vê a síncope como consequência de um autêntico “parricídio” – o discípulo ou afilhado intelectual a eliminar o mestre ou pai orientador.

Aliás, o tema do parricídio foi tratado por Freud inúmeras vezes em seus escritos. O mais famoso deles faz referência à obra “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, trama na qual um dos irmãos assassina faticamente o próprio pai, embora outro assuma o parricídio a partir de sua supremacia e influência intelectual sobre os demais.

Contudo, Freud vai mais longe em seu exame dos acontecimentos narrados, ao produzir vastas laudas sobre as facetas da personalidade do autor russo que emergem de sua biografia e produção artística: o criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Logo, para quem aprecia a produção de Freud, vai aqui a sugestão de leitura do mencionado artigo (“Dostoiévski e o Parricídio”), que consta no Vol. XXI de suas “Obras Completas”, editada no Brasil pela Imago.

E já que fui tão longe nessa digressão freudiana, poderia sugerir outros dois ensaios, esplêndidos igualmente, e que são como provas contundentes de que Freud teria sido um grande escritor, se médico não houvesse se tornado: “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen” (Vol. IX) e “Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância” (Vol. XI).

Neste último, Freud faz especulações soberbas no afã de “provar” a natureza sexual invertida do artista da Renascença, hoje mais do que consabida, mas o que, ao derradeiro, soçobra não são suas conclusões – afinal, inferências sedimentadas em especulações, sob quaisquer hipóteses, não resultam em conclusões irrefutáveis –, senão um texto com tantas qualidades, que faria inveja mortal a muitos “imortais” da Academia Brasileira de Letras! (rs).

Mas agora girando a metralha do comento em direção oposta suplementar, para retomar a linha de seu escopo introdutório, transcrevo passagem do mesmo Jung sobre um tema tão caro aos humanos – exatamente o amor, que lhes permite a reprodução ad eternum da vida, em oposição ao decesso – recolhida em sua famosa autobiografia “Memórias, Sonhos e Reflexões”, de 1955.

Antes, observo que Jung parece haver percebido melhor que Freud a dimensão não racional e não explicável do universo. Afinal, a ciência não é capaz de apreender todos os fenômenos que permeiam o existir do cosmos, sejam eles racionais, irracionais ou não racionais, pois à sua mirada, eminentemente racional, escapam amplos espectros da realidade que não podem ser ignorados, porquanto conformam o “ambiente” a que os seres humanos se sujeitam ou no qual operam, em primeira escala, como agentes.

J.A.R. – H.C.
 

Últimos Pensamentos – III

Aqui se impõe uma outra realidade: ao lado do campo da reflexão, há outro domínio, pelo menos tão vasto quanto ele, ou talvez ainda mais vasto, onde a compreensão racional e a descrição dificilmente encontram algo que possam captar. É o domínio do Eros. Na Antiguidade, este era considerado como um deus cuja divindade ultrapassava as fronteiras do humano e que, portanto, não podia ser nem compreendido nem descrito. Eu poderia tentar abordar, como tantos outros o fizeram antes de mim, esse daimon, cuja eficácia se estende das alturas infinitas do Céu aos abismos tenebrosos do Inferno; mas falta-me a coragem de procurar a linguagem capaz de exprimir adequadamente o paradoxo infinito do amor. Eros é um kosmogonos, um criador, pai e mãe de toda consciência. A fórmula condicional de São Paulo: “... se eu não tiver amor...” parece-me ser o primeiro de todos os conhecimentos e a própria essência da divindade. Qualquer que seja a interpretação erudita da frase “Deus é amor” (João IV, 816), seu próprio enunciado confirma a divindade como complexio oppositorum – complementaridade, convivência dos opostos.

Tanto minha experiência médica como minha vida pessoal colocaram-me constantemente diante do mistério do amor e nunca fui capaz de dar-lhe uma resposta válida. Como Jó, tive que tapar a boca com a mão: “Prefiro tapar a boca com a mão. – Falei uma vez... não repetirei; – duas vezes... eu... nada acrescentarei”. Trata-se do que há de maior e de mais ínfimo, do mais longínquo e do mais próximo, do mais alto e do mais baixo e nunca qualquer um desses termos poderá ser pronunciado sem o seu oposto. Não há linguagem que esteja à altura deste paradoxo. O que quer que se diga, palavra alguma abarcará o todo. Ora, falar de aspectos particulares, onde só a totalidade tem sentido, é demasiado ou muito pouco. O amor (a caridade) “desculpa tudo, acredita em tudo, espera tudo, suporta tudo” (I Coríntios XIII, 7). Nada se poderá acrescentar a esta frase. Pois nós somos, no sentido mais profundo, as vítimas, ou os meios e instrumentos do “amor” cosmogônico. Coloco esta palavra entre aspas para indicar que não entendo por ela simplesmente um desejo, uma preferência, uma predileção, um anelo, ou sentimentos semelhantes, mas um todo, uno e indiviso, que se impõe ao indivíduo. O homem, como parte, não compreende o todo. Ele é subordinado a ele, está à sua mercê. Quer concorde ou se revolte, está preso ao todo, cativo dele. Depende dele, e sempre tem nele seu fundamento. O amor, para ele, é luz e trevas, cujo fim nunca pode ver. “O amor (a caridade) nunca termina”, quer o homem “fale pela boca dos anjos” ou prossiga com uma meticulosidade científica, nos últimos recantos, a vida da célula. Poderá dar ao amor todos os nomes possíveis e imagináveis de que dispõe; afinal, não fará mais do que abandonar-se a uma infinidade de ilusões. Mas se possuir um grão de sabedoria deporá as armas e chamará ignotum per ignotius (uma coisa ignorada por uma coisa ainda mais ignorada), isto é, pelo nome de Deus. Será uma confissão de humildade, de imperfeição, de dependência, mas ao mesmo tempo será o testemunho de sua liberdade de escolha entre a verdade e o erro.

Referência:
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Reunidas e editadas por Aniela Jaffé. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 305-306.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

"A Montanha Mágica" – Um Romance Filosófico


Ao ler a obra “The Novel 100”, encontrei a seguinte análise, do literato norte-americano Daniel S. Burt, sobre o título de referência deste blog. A tradução é minha e por ela me responsabilizo pelos seus erros e acertos. Como não há quaisquer referências no texto de Burt em conexão com as passagens que menciona, procurei indicá-las nesta versão, nos pontos específicos em que as encontrei (quando as encontrei!). As notas que apresento, ao final da resenha de Burt, são de minha autoria.

Boa Leitura.

J.A.R – H.C.

Referências:

BURT, Daniel S. The novel 100: a ranking of the greatest novels of all time. Revised edited. New York, USA: Facts on File, 2010. p. 39-43.

MANN, Thomas. Der Zauberberg. Stuttgart; Hamburg; München: Deutschen Bücherbund GmbH & Co., 1952.

MANN, Thomas. The Magic Mountain. Translated by H. T. Lowe-Porter. New York: Vintage Books, 1969.

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução Herbert Caro. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 



Thomas Mann – A Montanha Mágica (1924)

“Der Zauberberg” (“A Montanha Mágica”) é a mais complexa criação de Thomas Mann. É a suma de sua vida, pensamento e realização técnica à idade de cinquenta anos. É sua autobiografia, confissão e apologia espiritual, uma intrincada alegoria, uma espécie de romance histórico, uma análise do homem e uma declaração de princípio do humanismo prático.

– T. J. Reed, Thomas Mann: Os Usos da Tradição

“A Montanha Mágica” é o grande romance filosófico do Século XX. Nele, Thomas Mann empreende uma renovação e reformulação radical do “bildungsroman” – termo alemão empregado para o romance de aprendizagem e de formação –, bem como um alongamento expressivo do assim chamado “conte philosophique” (conto filosófico), de Voltaire. No romance de Mann, um confronto de ideias se move para o primeiro plano de um drama intelectual, que consegue ser emocionalmente cativante, ao mesmo tempo que investiga o significado da cultura ocidental. Junto com outras grandes realizações romanescas do modernismo europeu – “Em Busca do Tempo Perdido”, “O Homem sem Qualidades”, “Os Sonâmbulos” e “Ulysses” –, “A Montanha Mágica” ajudou a redefinir o que o romance poderia ser. Todos, de diferentes modos, expandiram a tradição épica e traçaram uma busca experimental de relevo. O impacto cultural do romance de Mann, em particular, tem sido imenso. Como o crítico alemão Arthur Eloesser bem o observou em 1925, “com este romance o povo alemão aprendeu a ler novamente” e, em certo sentido, nós continuamos a aprender o modo e o motivo pelos quais “A Montanha Mágica” deve ser lido: como um desafio para a nossa mais ampla e completa consideração acerca do mistério da existência.

A gênese de “A Montanha Mágica” remonta ao verão de 1912, quando Mann visitou sua esposa, em Davos, onde estava sendo tratada de um acesso de tuberculose num sanatório. De forma similar ao ocorrido com o personagem central de seu romance, Hans Castorp, Mann tornou-se um paciente em potencial: depois de dez dias, Mann pegou um resfriado e consultou o especialista do sanatório, que descobriu uma mancha úmida em seu pulmão e pediu-lhe para permanecer em tratamento. Ele se recusou. Como recordou mais tarde: “Se eu tivesse sido Hans Castorp, a descoberta poderia ter mudado todo o curso da minha vida. O médico me garantiu que eu deveria agir com sabedoria, para lá permanecer por seis meses e obter a cura. Se eu tivesse seguido o seu conselho, quem sabe, eu poderia ainda estar lá! Em vez disso, escrevi ‘A Montanha Mágica’” (MANN, 1969, p. 487) [1]. Perto de concluir sua novela “Morte em Veneza”, quando partiu para Davos, Mann concebeu a ideia de converter as experiências de que lá usufruísse numa “reunião de companheiros bem-humorados”, como uma “peça satírica depois da tragédia”. Seria um complemento satírico à sua representação de destruição fatal do escritor Aschenbach, o que se deveu, segundo o diagnóstico de Mann, “ao fascínio da ideia de morte, o triunfo da embriagada desordem sobre as forças da vida consagrada à regra e à disciplina” (MANN, 1969, p. 488). Tal como a sua visão de Veneza, Mann adjetivou seu sanatório suíço como simbólico e sintomático, um “círculo encantado de isolamento e invalidez”. Ironicamente, na visão de Mann, além de oferecer cura à tuberculose, o sanatório poderia “alhear totalmente um jovem de uma vida real e ativa”, a tal ponto que “depois dos seis primeiros meses, a pessoa jovem não terá nenhuma outra ideia que esteja a salvo do flerte e do termômetro sob a língua. E depois de um ano, na maioria das vezes, chegará a perder a capacidade de ponderar sobre quaisquer outras ideias. Virá a tornar-se completamente incapaz de viver na planície”. Em sua concepção original, Mann descreveu Hans como um “herói simplório, em conflito entre o decoro burguês e a aventura macabra” (MANN, 1969, p. 488). A dedicação à história, que se expandiu na mente do escritor como um “complexo de ideias perigosamente rico”, foi interrompida pela Primeira Guerra Mundial. Mann sentiu-se compelido a defender a entrada da Alemanha na guerra com o polêmico “Reflexões de um Homem Não Político”. Em sua óptica, tanto a guerra em si, quanto a sua luta pelas ideias e valores subjacentes ao conflito, preparam-no para um projeto artístico amplamente expandido e com “conteúdo enriquecido de forma inimaginável”. Publicado em 1924, “A Montanha Mágica” solidificou a reputação internacional de Mann como o maior escritor alemão desde Goethe. Como romancista, Mann, em seu primeiro romance, “Os Buddenbrooks” (1901), teria produzido o que alguns veem como o maior romance alemão com características realistas; com o seu terceiro trabalho, revitalizou o “bildungsroman” clássico como um romance simbólico a redefinir radicalmente o tempo, a caracterização e a ação dramática em um construto intelectual e estético sem precedentes. “O Trabalho Como uma Obra de Arte”, tal como especula Theodore Ziolkowski, “aproxima-se da perfeição em grau raramente atingido numa escala tão monumental”.

Nos moldes de um romance convencional de iniciação e desenvolvimento, transmutado em busca de aventuras espiritualizadas, “A Montanha Mágica” introduz Hans Castorp, um engenheiro naval recém-graduado de Hamburgo, numa “estranha mistura de morte e vertigens”, num cenário remoto de uma montanha com atmosfera rarefeita, onde se encontra o elegante Sanatório Internacional Berghof. As três semanas de visita a seu primo Joachim, concebidas por Hans como férias antes de dar início à sua carreira, transforma-se numa estadia de sete anos, que se protrai de 1907 até o início da Primeira Guerra Mundial. A refletir a noção propalada por Mann de “doença e morte como via necessária para o conhecimento, a saúde e a vida”, o romance prescreve a Castorp uma “terapia” paralela à cura médica do sanatório; “na hermética e febril atmosfera da montanha encantada, o material comum de que ele é feito passa por um processo de intensificação que o torna capaz de aventuras nas esferas sensual, moral e intelectual, jamais sonhadas na ‘planície’” (MANN, 1969, p. 490). Castorp resvala pela rotina inalterável do sanatório, em companhia de sua coleção internacional de pacientes. Tal como o protagonista Ulrich de Robert Musil, em “O Homem sem Qualidades”, que opta por “sair da vida” para reavaliar as formas mais eficazes de viver, Hans Castorp troca a planície e sua entorpecente rotina pela liberdade e diversão oferecidas por esse refúgio na montanha, onde a temporalidade dá espaço ao atemporal e a ação é substituída pelo embate de modos antitéticos de compreensão da experiência humana e da natureza, em face da ameaça onipresente da doença e da morte. Na descrição oferecida por Mann, Castorp é um “neófito curioso típico [...] que, voluntariamente, muito voluntariamente, abraça a doença e a morte, porque o seu primeiro contato com elas oferece-lhe a promessa de esclarecimento extraordinário e ousado avanço, em conexão, obviamente, com os riscos correspondentes de maior monta” (MANN, 1969, p. 492). Assim como outros heróis que são o encanto do “bildungsroman”, Castorp é ainda informe, um questionador maleável que, nas palavras de Hermann J. Weigland, “evolui de um jovem simples a um gênio no campo da experiência”. A sua iniciação reverbera internamente, como efeito de uma lídima aventura na formação da personalidade e de uma visão de mundo firmada com o auxílio de uma variedade de mentores. Eliminando virtualmente qualquer ação externa, povoando o cenário com personagens que são “nada mais do que eles mesmos, – com efeito, não sendo importantes, não deixam de ser expoentes, representantes, emissários do mundo, principados, domínios do espírito”, Mann habilmente convoca o leitor para os confrontos dialéticos do romance. Como Henry Hatfield veio a observar: “É um tributo ao livro o fato de que raramente se ouvem críticas contra ele como ‘nada acontece’, ‘não há um verdadeiro herói’, ou ainda ‘não há personagens credíveis’”.

Uma das primeiras amizades de Castorp no sanatório é o humanista italiano Settembrini, cuja defesa do racionalismo ocidental entra em conflito com a atração do jovem pela sensual Chauchat Clavdia. Mais tarde Settembrini enreda-se com o seu oponente intelectual, o jesuíta e comunista de origem judaica Naphta, numa série de deslumbrantes duelos verbais. As posições opostas de ambos os homens - razão contra a fé, disciplina contra destruição, nacionalismo contra anarquia –, de fato anulam-se mutuamente e, no final, Castorp resiste a qualquer pretensa dominação de um mentor. A quarta influência é o hedonista holandês Mynheer Peeperkorn, que, como Madame Chauchat, oferece a emoção como alternativa ao intelectualismo de Settembrini e Naphta, a quem Peeperkorn desdenhosamente rejeita como “tagarelas”, caracterizando a conversa como “Cerebrum, cerebral!” (MANN, 2000, p. 809). Nenhuma ideologia permanece não testada ou sem oposição na sinfonia irônica de conflitantes pontos de vista, elaborada por Mann, e cada contraparte, em última análise, revela-se decepcionante. Naphta, havendo desafiado Settembrini a um duelo, dirige a arma contra si mesmo, num acesso de raiva frustrada, depois que o italiano atira para cima; Settembrini, o defensor do envolvimento comprometido, retira-se então para a sua cama; Peeperkorn, o representante da força de vida sensual, vital, comete suicídio quando seu vigor físico falha, e Clavdia Chaucat, o símbolo da receptividade passiva, simplesmente se afasta. Em resumo: nenhuma ideologia, tampouco uma simples atitude perante a vida, presidem o desenvolvimento espiritual de Castorp; antes, tudo contribui para uma filosofia evolutiva fundamentada na intensa exposição aos muitos juízos contraditórios que o romance encarna, por meio de seus cativantes personagens. Tal filosofia, uma visão das possibilidades humanas que não privilegia qualquer sistema único de crenças, permite que Hans Castorp, finalmente, quebre o encanto da montanha mágica e se reintegre à vida da planície.

A epifania crucial de Castorp ocorre no capítulo intitulado “Neve”, em que sai sozinho com os seus esquis, deixando para trás o abrigo do sanatório, e vê-se envolto numa tempestade de neve ofuscante, desorienta-se e corre risco de morte por expor-se ao “branco, girando no nada”. É quando então Castorp tem um sonho no qual à visão de um paraíso terrestre vêm conjugar-se imagens de horror destrutivo e de sacrifício humano; nos termos empregados por Nietzsche, o apolíneo em contrapeso ao dionisíaco, numa síntese criativa que nem Settembrini nem Nafta poderiam alcançar. “A deserção da morte está encerrada na vida”, admite Castorp; “sem ela não haveria vida” (MANN, 2000, p. 677). Reconhecendo que “Mann é o senhor das contraposições”, Castorp resolve opor-se às insolúveis antinomias da vida e da morte:

O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano [2], na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e “reger” bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos (MANN, 2000, p. 678).

Embora a realização do sonho comece imediatamente a se desvanecer assim que Castorp retorna à segurança do sanatório, é dele a consciência essencial, expressa no romance, de que a morte não pode ser ignorada, mas pode ser combatida. Para tanto, Castorp há de descer da montanha mágica, obtendo o discernimento final de que a liberdade e o alívio que o seu mundo hermético oferece é um tipo de morte por estagnação. O ímpeto para quebrar o feitiço é, ironicamente, a guerra que engolfa a planície, a que Castorp adere voluntariamente. O leitor recebe um vislumbre final de Hans Castorp no meio do sacrifício de sangue real, em plena frente ocidental, e Mann termina o romance com uma pergunta sem resposta acerca de Castorp e o destino da raça humana: “Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de ‘rei’, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?” (MANN, 2000, p. 986).

O romance impele Hans Castorp e o leitor à “compreensão de uma humanidade que, na verdade, não ignora racionalisticamente a morte, tampouco despreza o lado obscuro e misterioso da vida, mas leva em conta tais aspectos, sem permitir que alcancem o controle da mente” (MANN, 1969, p. 491). A questão maior acerca do que dimanará de tal visão é deixada sem resposta. A um grupo de estudantes de uma escola secundária americana, que consultou o romancista sobre o que veio a ocorrer com Hans Castorp, Mann respondeu que caso tenha sobrevivido à guerra, “certamente terá permanecido o aluno, o ouvinte, testando, rejeitando, escolhendo, não como escravo de si mesmo, mas como amigo de todos os bons homens”. A predição de Mann é, substancialmente, uma análise apropriada do método e da intenção de “A Montanha Mágica”: não é uma filosofia de vida, mas uma projeção imaginativa para o alcance da filosofia, pela apreciação mais plena de como a vida humana pode ser apreendida.

Notas:

[1]. Esta passagem pertence à própria nota do autor, intitulada “The Making of ‘The Magic Mountain”, a constar em (MANN, 1969, p. 485-494).

[2]. A tradução para o inglês, transcrita por Burt, apresenta o termo “human intercourse”, ou seja, “relações humanas”, algo bem distante do que Herbert Caro traduz por “Estado humano”. Considerando que tais termos não são plenamente convergentes – haja vista que o primeiro remete à ideia de recesso ao convívio entre pares, e o segundo a uma forma política bem definida –, entendemos por bem transcrever as passagens em inglês e em alemão, para que possam ser avaliadas pelo leitor mais habilitado:

Love stands opposed to death. It is love, not reason, that is stronger than death. Only love, not reason, gives sweet thoughts. And from love and sweetness alone can form come: form and civilization, friendly, enlightened, beautiful human intercourse − always in silent recognition of the blood sacrifice. Ah, yes, it is well and truly dreamed. I have taken stock. I will remember. I will keep faith with death in my heart, yet well remember that faith with death and the dead is evil, is hostile to humankind, so soon as we give it power over thought and action. For the sake of goodness and love, man shall let death have no sovereignty over his thoughts (MANN apud BURT, 2010, p. 42).

Die Liebe steht dem Tode entgegen, nur sie, nicht die Vernunft, ist stärker als er. Nur sie, nicht die Vernunft, gibt gütige Gedanken. Auch Form ist nur aus Liebe und Güte: Form und Gesittung verständig-freundlicher Gemeinschaft und schönen Menschenstaats - in stillem Hinblick auf das Blutmahl. Oh, so ist es deutlich geträumt und gut regiert! Ich will dran denken. Ich will dem Tode Treue halten in meinem Herzen, doch mich hell erinnern, daß Treue zum Tode und Gewesenen nur Bosheit und finstere Wollust und Menschenfeindschaft ist, bestimmt sie unser Denken und Regieren. Der Mensch soll um der Güte und Liebe willen dem Tode keine Herrschaft einräumen über seine Gedanken (MANN, 1952, p. 625).