Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sidney Keyes - Elegia para Mme. Virginia Woolf

O poeta Sidney Keyes, que morreu ainda jovem, em combates da 2GM, escreveu esta bela elegia, dedicada à renomada escritora inglesa Virginia Woolf, sua conterrânea. Virginia, como se sabe, suicidou-se nas águas do rio Ouse, e é a esse fato que o poema de Keyes faz explícita referência.

Ironia das ironias, Keyes faleceu apenas dois anos depois de Woolf. Logo, igual tempo, ou mesmo menos do que isso, antes de haver escrito esta elegia.

Se não for impróprio fazer menção aqui, para os que amam o cinema como nós, fazemos a sugestão do filme “As Horas” (2002), baseado na obra homônima do escritor norte-americano Michael Cunningham. A partir do enredo do romance “Mrs. Dalloway”, de Woolf, contam-se histórias entrecortadas de três mulheres que tiveram de lidar com o suicídio em suas vidas. Música de Philip Glass, como sempre, bastante aderente ao tema da película.

J.A.R. – H.C.

Sidney Keyes
(1922-1943)

Elegy for Mrs. Virginia Woolf

Unfortunate lady, where white crowfoot binds
Unheeded garlands, starred with crumpled flowers,
Lie law, sleep well, safe from the rabid winds
Of war and argument, our hierarchies and powers.

Let the clear current spare you, once
A water spirit, spare your quiet eyes;
Let worm and newt respect your diffidence −
And sink, tired lovely skull, beyond surprise.

Over mar head, chose small distinguished bones
Hurry, young river, guard their privacy;
Too common, by her grave the willow leans
And trails its foliage fittingly.

In time’s retreat, a stickleback’s
Most complicated house, she lies:
Colours and currents tend her; no more vex
Her river-mind our towns and broken skies.

Virginia Woolf
(1882-1941)

Elegia para Mme. Virgínia Woolf

Desventurada madame, onde o ranúnculo branco enfeixa
Discretas guirlandas, adornadas com flores amassadas,
Jaze íntegra, dorme bem, a salvo dos ventos rabiosos
De guerras e de disputas, nossas hierarquias e poderes.

Que a clara corrente te poupe os olhos tranquilos
Uma vez que foste espírito das águas;
Que o verme e a lagartixa respeitem tua timidez –
E imerge, adorável e extenuado crânio, além da surpresa.

Com a cabeça submersa, presto, o jovem rio acolhe os
Nobres e pequenos ossos, protegendo-te a privacidade;
Tão comum, por sobre teu jazigo o salgueiro se inclina
E, como amiúde ocorre, roça a sua folhagem.

Num retiro do tempo, na mais intricada casa
De um peixinho de rio, ela descansa:
Cores e correntes dela cuidam; nossas cidades
E céus rompidos não mais afligem a tua mente-rio.

Referência:

KEYES, Sidney. Elegy for Mrs. Virginia Woolf. In: MANENT, M. (Selección, prólogo y traducción al español). La poesía inglesa: los contemporáneos. Edición bilingüe. 2. ed. Barcelona, ES: Ediciones Lauro, 1948. p. 422 e 424.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Dante Milano - Descobrimento da Poesia

Descobrir a poesia é, para o poeta carioca Dante Milano, algo como um passeio sadio ao nosso infantil interior, aquele espaço inspirador do qual sempre lançamos mão quanto a vida sofre o perigo de peregrinar pelas veredas do tédio.

Vê-se no poema de Milano a verve plenipotenciária da poesia, que é capaz de estar ali onde o pensamento é um simples vagar, ou melhor, um vácuo de palavras, um sentimento puro e não racionalizável, ininteligível, embora pleno de expressividade.

J.A.R. – H.C.

Dante Milano
(1899-1991)
      
Descobrimento da Poesia

Quero escrever sem pensar.
Que um verso consolador
Venha vindo impressentido
Como o princípio do amor.

Quero escrever sem saber,
Sem saber o que dizer,
Quero escrever urna coisa
Que não se possa entender,

Mas que tenha um ar de graça,
De pureza, de inocência,
De doçura na desgraça,
De descanso na inconsciência.

Sinto que a arte já me cansa
E só me resta a esperança
De me esquecer do que sou
E tornar a ser criança.

(“Boletim de Ariel, RJ, 1933)

O Poeta Favorito
(Sir Lawrence Alma-Tadema: pintor holandês)

Referência:

MILANO, Dante. Descobrimento da poesia. In: KOPKE, Carlos Burlamarqui. Antologia da poesia brasileira moderna: 1922-1947. São Paulo, SP: Clube de Poesia de São Paulo, 1953. p. 147.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Herman Hesse - O Poeta

Literalmente um “lobo na estepe”, Hesse, o reputado escritor alemão – naturalizado suíço –, incorpora o poeta em estado de quase alheamento, um “contemplativo marginal”.

O poeta entrou em comunhão com a natureza e com os homens e, fixado em seu passamento, já não sente mais falta de um futuro, ponto de encontro de todas as utopias de plenitude do mundo.

Apesar de suas muitas glórias, mensuráveis pelas inúmeras coroas que lhe arrumaram no túmulo, não há como sua memória escapar do trabalho erosivo do tempo, “esse grande escultor”, como diria Marguerite Yourcenar.

J.A.R. – H.C.

Hermann Hesse
(1877-1962)

O Poeta

Somente para mim, o solitário,
murmura a fonte de pedra sua canção de magia;
só para mim, só para o solitário,
errantes nuvens passam arrastando
sombras de cores como sonhos sobre o campo.
Nem ofício me é dado,
nem casa, nem lavoura, nem pomar:
é meu somente o que a ninguém pertence
– é meu o arroio que coleia atrás do véu da mata,
meu é o fecundo mar,
meu é o trinado de pássaros das crianças que brincam,
a tristeza e o pranto do apaixonado a sós no entardecer,
Meus são também os templos dos deuses, meu é
o venerável horto do passado.
Minha pátria é não menos
a abóbada celeste com a luz do amanhã;
muitas vezes nas asas da saudade arroja-se minha alma
para o alto,
a olhar o glorioso porvir da humanidade,
o amor acima da lei, o amor de povo a povo.
Volto a encontrá-los todos nobremente mudados:
o camponês, o rei, o comerciante, a ativa marujada,
o jardineiro e o pastor, todos
agradecidos celebrando a festa mundial do porvir.
Falta apenas o poeta
– ele, o contemplativo marginal,
a imagem pálida e o portador do anseio da humanidade,
a quem o futuro, a plenitude do mundo,
já não faz falta: murcham
numerosas coroas em seu túmulo,
mas a memória dele está apagada. 


Referência:

HESSE, Hermann. O poeta. In: __________. Andares: antologia poética. Tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1976. p. 59-60.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Antônio Girão Barroso - Último poema

O derradeiro poema, do poeta cearense Antônio Girão, apenas por palavras se parece a tantos outros que brilham no campo da literatura. Mas não só: o que o torna singular é a substância que o compõe, da mesma tessitura da própria vida, do homem, da sua pequenez à sua grandeza.

 

Um longo apito de uma locomotiva, um passeio vespertino de bonde: notemos o quanto fugaz é essa experiência, que fende a seta do tempo. Um nada, no breve interregno em que a massa de uma ampulheta flui de cima a baixo de seus dois cones invertidos.

 

Mas uma experiência que deixa os seus efeitos sobre a memória dos que lhe são contemporâneos ou que virão depois. Um apito que tem o dom de, em sua fugacidade, perdurar no tempo!

 

J.A.R. – H.C.

 

Antônio Girão Barroso

(1914-1990)

 

Último poema

 

O que está por trás do poema e da poesia do poema

é o homem e sua vida

sua sobrevida

sua suada subvida

o homem e suas circunstâncias

plantado no espaço

no tempo que vai

p a s s a n d o

O homem e suas (in)finitudes

um olhar breve – e vão

um apito – longo – de locomotiva

um passeio à tarde – de bonde

 

O último poema

(Claude Raguet Hirst: artista norte-americano)

 

Referência:

 

BARROSO, Antônio Girão. Último poema. In: PINTO, José Nêumanne (Sel.). Os cem melhores poetas brasileiros do século. São Paulo, SP: Geração, 2001. p. 71.

domingo, 26 de abril de 2015

Charles Bukowski - olhando os colhões do gato

Voltemos a um tema velho conhecido: os gatos. Regressemos a um autor consabidamente amante dos gatos: Charles Bukowski. E aproveitemos um poema traduzido de sua coletânea recentemente traduzida ao português, “As pessoas parecem flores finalmente” (“The people look like flowers at last”).

Como sempre, os poemas de Bukowski são desvestidos de um tratamento mais próximo ao dos cânones literários convencionais. São como confabulações do autor com os seus leitores, para os quais o poeta dirige comentários nada tradicionais, tais como o do próprio título do poema em epígrafe.

Note-se que suas palavras traçam um inconfundível paralelo entre a caçada noturna do bichano por sexo, com a sua própria vida mundana, a correr atrás de mulheres e bebidas. Felino e poeta se compreendem e se merecem mutuamente!

J.A.R. – H.C.

Charles Bukowski
(1920-1994)

looking at the cat’s balls

sitting here by the window
sweating beer sweat
mauled by the summer
I am looking at the cat’s balls.

it’s not my choice.
he sleeps in an old rocker
on the porch
and from there he looks at me
hung to his cat’s balls.

there’s his tail, damned thing,
hanging out of the
way so I can
view his furry storage tanks but
what can a man think about
while looking at a cat’s nuts?
certainly not about the sunken navy after a
great sea battle.
certainly not about a program to save the
poor.
certainly not about a flower market or a dozen
eggs.
certainly not about a broken light switch.

balls iz balls, that’s all,
and most certainly that’s true about
a cat’s balls.
my own are rather soft and mushy and
I’m told by my current lady
quite large:
“you’ve got big balls, Chinaski!”
but the cat’s balls:
I can’t figure whether he’s hung to them
or whether they’re hung to him.
you see, there is this almost nightly battle for
the female
and it doesn’t come easy for either of us.

look:
a piece is missing from his left ear.
once I thought one of his eyes had been
clawed out
but when the dried
blood peeled away
a week later
there was his pure
gold-green eye
looking at me.

his entire body is scarred from bites
and the other day,
attempting to pet his head
he yowled and almost bit me −
the skin on his skull
had been split to reveal the bone.
it certainly doesn’t come easy for any of us,
poor fellow.

he sleeps
now dreaming
what?
a fat mockingbird in his mouth?
or surrounded by female cats in heat?
he dreams his daydreams
and we’ll find out
tonight.

good luck, old fellow,
it doesn’t come easy,
hung to our balls we are, that’s it,
we’re captive to our balls,
and I should use a little restraint myself
when it comes to the ladies.
meanwhile I will
watch their eyes and lead with the left jab
and run like hell
when it just isn’t any use
anymore. 


olhando os colhões do gato

sentado aqui junto à janela
suando suor de cerveja
atormentado pelo verão
estou olhando para os colhões do meu gato.

não é por minha escolha.
ele dorme em uma velha cadeira de balanço
na varanda
e dali ele me olha
dependurado em seus colhões de gato.

aí está seu rabo, coisa danada,
dependurada de lado
de modo que eu possa
ver seus felpudos reservatórios mas
em que pode um homem pensar
enquanto olha para as bolas de um gato?
certamente não sobre a nave naufragada após uma
grande batalha naval.
certamente não sobre um programa para salvar os
pobres.
certamente não sobre um mercado de flores ou uma dúzia de
ovos.
certamente não sobre um interruptor de luz quebrado.

colhões são colhões, é isso aí,
e com muita certeza isso é verdade a respeito
dos colhões de um gato.
os meus são bem moles e macios e
diz-me minha atual mulher
bem grandes:
“você tem colhões enormes, Chinaski!”
mas os colhões do gato:
eu não consigo entender se ele está dependurado neles
ou se eles estão dependurados nele.
você vê, há essa batalha de atravessar quase toda a noite
pela fêmea
e isso não é nada fácil para nenhum de nós.

veja:
falta um pedaço da sua orelha esquerda.
certa vez pensei que um de seus olhos tinha sido
arrancado
mas quando o sangue seco
descascou
uma semana depois
aí estava seu puro
olho verde-dourado
me encarando.

todo o seu corpo está coberto de escaras de mordidas
e no outro dia,
tentando acariciar sua cabeça
ele gemeu e quase me mordeu –
a pele do seu crânio
havia sido rasgada até o osso.
com certeza não é fácil para nenhum de nós,
pobre coitado.

ele dorme
e agora sonha
o quê?
um gordo pardal em sua boca?
ou rodeado por gatas com tesão?
ele sonha seus sonhos diurnos
e nós saberemos o que é
esta noite.

boa sorte, velho camarada,
a vida não é fácil,
estamos dependurados em nossos colhões, é assim que
estamos, ou seja,
estamos no cativeiro de nossos colhões,
e eu deveria me conter um pouco
quando se trata de mulheres,
enquanto isso
olharei seus olhos e me defenderei com jabs de esquerda
e correrei como do diabo
quando nada mais
adiantar.

Referências:

BUKOWSKI, Charles. looking at the cat’s balls. In: __________. The people look like flowers at last: new poems. Edited by John Martin. HarperCollins e-books. New York, NY: HarperCollins Publishers Inc., 2008. p. 244-246.

BUKOWSKI, Charles. olhando os colhões do gato. In: __________. As pessoas parecem flores finalmente. Tradução de Cláudio Willer. 1. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. p. 240-242.
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sábado, 25 de abril de 2015

Lêdo Ivo - A Chuva Sobre a Cidade

Como este bloguinho preza pela beleza, o que mais poderíamos trazer senão mais do mesmo, sob a forma de poesia?! E mais uma poesia de Lêdo Ivo, o poeta que também veio das Alagoas de Graciliano Ramos e chegou à Academia Brasileira de Letras, com os méritos de sua aclamada obra.

Mesmo a apresentar um tema corriqueiro, prosaico até – a chuva sobre a cidade –, o poema homônimo é capaz de extrair poesia dos eventos que o fluxo da água engendra: a fuga dos pássaros, os relâmpagos, os barquinhos infantis de papel.

E incita os leitores – amorosamente chamados por “meu irmão” e “minha irmã” –, a deixarem-se envolver pela singularidade de um momento que, invariável em sua ocorrência, jamais se exibe de forma idêntica à que passou.

Como reconhece o poeta, amanhã poderemos nos reconciliar com os grandes temas poéticos. Apreciemos, por ora, a chuva que rola aos borbotões, deliciosamente...

J.A.R. – H.C.

Lêdo Ivo
(1924-2012)

A chuva sobre a cidade
(A Lêda)

Chove sobre a cidade
e a chuva inunda o asfalto, difunde o desastre e o desencontro
e procura abater as palmeiras que do fim da tarde
queriam apenas – graça plena – as estrelas.

Os trovões reboam, espantando os pássaros
que vieram refugiar-se no meu quarto.
Os relâmpagos, fotógrafos do absoluto, iluminam as pessoas que passam
– são outros rostos, minha irmã, são as faces
revoltadas porque as divindades impossibilitaram os idílios,
a chegada pontual a uma casa, o já adiado trespasse com o inefável.

As sarjetas recebem finalmente a Poesia. Como são belos
e nítidos os barcos de papel
que navegam buscando os reinos fantásticos, os inacessíveis!

A chuva tem uma canção. Jamais uma elegia
para saudar sua gentileza. Jamais uma ode,
um himeneu, uma écloga deploratória.

Meu irmão, deixa que a goteira molhe tuas últimas
poesias. Pouco importa que amanhã te reconcilies com os grandes temas poéticos.

O amanhã é inconsumível. A chuva te ensina
a ser invariável sem se repetir.

Velejando
Rachelle Anne Miller: artista canadense

Referência:

IVO, Lêdo. A chuva sobre a cidade. In: __________. Os melhores poemas de Lêdo Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1990. p. 112-113. (Os Melhores Poemas, n. 2)

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Emily Dickinson - A esperança é coisa com plumas

Com aquela sua costumeira forma de grafar as poesias – nas quais o único meio de pontuação empregado consiste em pródigos travessões, singular forma de forçar o leitor a pausas mais pronunciadas –, a poetisa norte-americana Emily Dickinson, no poema nº 254, datado de 1861, nos brinda com uma síntese do que seja a “esperança”.

Num estilo notoriamente homilético, o poema metaforiza a esperança na figura de um “pequeno pássaro”, que fica a mercê das borrascas da vida. E é o seu canto melodioso que nos “mantém aquecidos” ante os nossos mais comezinhos infortúnios, o nome explícito para as tempestades a que se refere a autora.

J.A.R. – H.C.

Emily Dickinson
(1830-1886)

“Hope” is the thing with feathers

“Hope” is the thing with feathers −
That perches In the soul −
And sings the tune Without the words −
And never stops − at all −

And sweetest − in the Gale − is heard −
And sore must be the storm −
That could abash the little Bird
That kept so many warm −

I’ve heard it in the chillest land
And on the strangest Sea −
Yet, never, in Extremity,
It asked a crumb − of Me.

Esperança
Elzbieta Mozyro: artista polonesa

A esperança é coisa com plumas

A esperança é coisa com plumas
Que pousa na alma,
Entoa melodias sem palavras,
E não se detém por nada,

Ressoando ainda mais doce no vendaval.
Agitada há de ser a tormenta
Capaz de abater o pequeno pássaro
Que mantém aquecidos a muitos.

Tenho-o escutado na terra mais gélida
E no mais estranho mar;
Mas jamais, mesmo no infortúnio,
Arriscou-se a pedir-me uma só migalha.

Referência:

DICKINSON, Emily. “Hope” is the thing with feathers. In: __________. The complete poems of Emily Dickinson. Edited by Thomas H. Johnson. Boston, MA: Little, Brown and Company, 1960. p. 116.