Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Carlito Azevedo - Poesia

Com versos diretos, o poeta declina um rol de possibilidades para o que se poderia entender por poesia – suas adjetivações e atributos, jurisdições e pontos de encontro, tantas as hipóteses por meio das quais resulta abordada –, muito embora ela, realmente, pertença a tão poucos, a julgar pelo arremate de Carlitos no último verso.

 

Com tão limitado número de leitores sobrevive a poesia, em parte porque quase desaparecida da mídia e das livrarias, aqui como alhures; as editoras, por outro lado, não se dispõem a publicá-la pela fragilidade da demanda.

 

Outro ponto, também de notória ocorrência, é que raras são as obras poéticas contemporâneas que ascendem às alturas, ainda que muito se produza, o que teria levado, porventura, a poetisa Muriel Rukeyser (1913-1980) a afirmar em “In our time” (“Em nosso tempo”): “Por agora, dizem que há liberdade de expressão. Que não há pena imputável aos poetas, pois não há pena em se escrever poemas. Isto muito se diz, mas tal é a pena em si.” (RUKEYSER, 2000, p. 123)

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlito Azevedo

(n. 1961)

 

Poesia

 

Descanso para os beletristas

labuta para os concretistas

sã: dizem os árcades

vã: gravam nas lápides

sonho dos surrealistas

fúria dos dadaístas

(recitam ginasianos

a dos parnasianos)

azul para os simbolistas

“azar dos verdamarelistas”

está no Cântico dos Cânticos

absinto dos românticos

brasão dos ufanistas

Brasil dos modernistas

labirinto dos barrocos

 

(eles tantos e ela de tão poucos)

 

Vaidade dos Ancestrais

(Kurt L. Seligmann: pintor suíço-americano)

 

Referências:

 

AZEVEDO, Carlito. Poesia. In: __________. Collapsus linguae. 2. ed. revista. Rio de Janeiro, RJ: Sette Letras, 1998. p. 33.

 

RUKEYSER, Muriel. Out of silence: selected poems. Edited by Kate Daniels. 3rd print. Evanston, IL: TriQuarterly Books; Northwestern University Press, 2000.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Ángel González - O Futuro

O poeta espanhol inicia este poema com uma inflexão a opor o futuro ao porvir – aliás, tema de outra ode –, neste último caso, a sugerir uma espécie de aguardo pelo futuro desde o momento presente, pressentido como lancinante pelo sujeito lírico, por aglutinar “esperanças e decepções”, metaforizado, por fim, como a “pátria sombria da ilusão e do pranto”.

 

“Mas o futuro é outra coisa”: as especulações do falante nos trazem a ideia de que o futuro corresponde a um abrir caminhos entre as ondas, sulcando os mares pelos quais optamos, denotando com isso um certo zelo deliberado para o transformar naquilo a que nos propomos, com a robustez de nossa vontade, e não apenas aquilo “que Deus quiser”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ángel González

(1925-2008)

 

El Futuro

 

Pero el futuro es diferente

al porvenir que se adivina lejos,

terreno mágico, dilatada esfera

que el largo brazo del deseo roza,

bola brillante que los ojos sueñan,

compartida estancia

de la esperanza y de la decepción, oscura

patria

de la ilusión y el llanto

que los astros predicen

y el corazón espera

y siempre, siempre, siempre está distante.

 

Pero el futuro es otra cosa, pienso:

tiempo de verbo en marcha, acción, combate,

movimiento buscado hacia la vida,

quilla de barco que golpea el agua

y se esfuerza en abrir entre las olas

la brecha exacta que el timón ordena.

 

En esa línea estoy, en esa honda

trayectoria de lucha y agonía,

contenido en el túnel o trinchera

que con mis manos abro, cierro, o dejo,

obedeciendo al corazón, que manda,

empuja, determina, exige, busca.

 

¡Futuro mío...! Corazón lejano

que lo dictaste ayer:

no te avergüences.

Hoy es el resultado de tu sangre,

dolor que reconozco, luz que admito,

sufrimiento que asumo,

amor que intento.

 

Pero nada es aún definitivo.

Mañana he decidido ir adelante,

y avanzaré,

mañana me dispongo a estar contento,

mañana te amaré, mañana

y tarde,

mañana no será lo que Dios quiera.

 

Mañana gris, o luminosa, o fría,

que unas manos modelan en el viento,

que unos puños dibujan en el aire.

 

En: “Sin esperanza, con convencimiento” (1961)

 

O caminho para o futuro

(Salome Makharashvili: pintora georgiana)

 

O Futuro

 

Mas o futuro é diferente

do porvir que se adivinha distante,

terreno mágico, dilatada esfera

que o longo braço do desejo roça,

bola brilhante que os olhos sonham,

estância compartilhada

pela esperança e pela decepção, sombria

pátria

da ilusão e do pranto

que as estrelas predizem

e o coração espera

e sempre, sempre, sempre está distante.

 

Mas o futuro é outra coisa, penso:

tempo de verbo em marcha, ação, combate,

buscado movimento em direção à vida,

quilha de barco que golpeia a água

e se esforça em abrir entre as ondas

a brecha exata que o timão ordena.

 

Nessa linha estou, nessa funda

trajetória de luta e agonia,

contido no túnel ou trincheira

que com minhas mãos abro, fecho, ou deixo,

obedecendo ao coração, que manda,

empurra, determina, exige, busca.

 

Oh meu futuro...! Coração distante

que o ditaste ontem:

não te envergonhes.

Hoje é o resultado de teu sangue,

dor que reconheço, luz que admito,

sofrimento que assumo,

amor que intento.

 

Mas nada é ainda definitivo.

Amanhã terei decidido ir adiante,

e avançarei,

amanhã me disponho a estar contente,

amanhã te amarei, de manhã

e de tarde,

amanhã não será o que Deus quiser.

 

Manhã cinzenta, ou luminosa, ou fria,

que algumas mãos modelam ao vento,

que alguns punhos desenham no ar.

 

Em: “Sem esperança, com convicção” (1961)

 

Referência:

 

GONZÁLEZ, Ángel. El futuro. In: __________. Palabra sobre palabra. Poesía completa: 1956-2001. 1. ed. aumentada. Barcelona, ES: Seix Barral, 2004. p. 94-95. (“Los Tres Mundos”)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Hannah Arendt - Verão Tardio

Num tom pesaroso e desencantado, os versos deste poema nos levam a supor que Arendt nos fala do rompimento do relacionamento de amor que mantinha com o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que àquela altura, em meados da segunda metade dos anos 20, já era casado com Elfrid Petri, com quem veio a ter dois filhos.

 

Separar-se da esposa para se juntar a uma estudante de origem judaica de dezoito anos, decerto, foi uma hipótese que Arendt, a muito peso, descartou em Heidegger: menos pior que ela foi capaz de, com esse infausto desate, reorientar a sua vida e extrair significados para a experiência do amor segundo as reflexões de Santo Agostinho, tema de sua tese de doutorado, concluída em 1929, sob a orientação de Karl Jaspers (1883-1969).

 

J.A.R. – H.C.

 

Hannah Arendt

(1906-1975)

 

Spätsommer

 

Der Abend hat mich zugedeckt

So weich wie Samt, so schwer wie Leid.

 

Ich weiss nicht mehr wie Liebe tut

Ich weiss nicht mehr der Felder Glut

Und alles will entschweben

Um nur mir Ruh zu geben.

 

Ich denk an ihn und hab ihn lieb

Doch wie aus fernen Landen

Und fremd ist mir das Komm und Gieb

Kaum weiss ich was mich bangt.

 

Der Abend hat mich zugedeckt

So weich wie samt so schwer wie Leid

Und nirgends sich Empörung reckt

Zu neuer Freud und Traurigkeit.

 

Und alle Weite die mich rief

Und alles Gestern klar und tief

Kann mich nicht mehr betören.

 

Ich weiss ein Wasser gross und fremd

Und eine Blume die keiner nennt

Was soll mich noch zerstören?

 

Der Abend hat mich zugedeckt

So weich wie Samt, so schwer wie Leid.

 

Verão Tardio

(Leo Putz: pintor tirolês)

 

Verão Tardio

 

A noite me cobriu

Tão suave como veludo, tão pesada como a dor.

 

Não sei mais como age o amor

Não sei mais dos campos o ardor

E tudo quer se desprender

A fim apenas de quietude oferecer.

 

Penso nele e tenho por ele carinho de coração

Mas como a partir de uma terra distante.

E estranha é para mim a vinda e a doação

Quase não sei o que se me mostra fascinante.

 

A noite me cobriu

Tão suave como veludo, tão pesada como a dor.

E em parte alguma a voz do levante se ouviu

Em nome de nova alegria e tristeza.

 

E todo mais além que me chamava

E todo ontem claro e profundo que se insinuava

Não pode mais me seduzir.

 

Conheço águas grandes e estranhas

E uma flor que ninguém nomeia

O que ainda pode me destruir?

 

A noite me cobriu

Tão suave como veludo, tão pesada como a dor.

 

Referências:

 

Em Alemão

 

ARENDT, Hannah. Spätsommer. In: YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt: leben, werk und zeit. Frankfurt am Main, DE: S. Fischer Verlag GmbH, 1982. s. 99.

 

Em Português:

 

ARENDT, Hannah. Verão tardio. Tradução de Marco Antônio Casa Nova. In: ARENDT, Hannah; HEIDEGGER, Martin. Correspondência. Tradução de Marco Antônio Casa Nova. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2001. p. 301.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Herberto Helder - O poema: VII

Preliminarmente, uma observação: reconheço ser uma afronta transcrever apenas uma das sete seções – exatamente a última – deste magistral poema do autor lusitano. Mas espero ter a compreensão do internauta, pois o poema como um todo é extremamente longo, como se poderá estimar pela própria extensão deste excerto convenientemente selecionado.

 

O ponto em que o conteúdo do poema se revela ao autor mais parece um estado de suprema epifania, maravilhosamente moldável, de um rasgo, em libérrimos filões metapoéticos, de onde a poesia flui sem contenções até a “parte mais límpida da vida”. Frente a tamanha primavera em sagração, por que não se repetir a máxima do príncipe Míchkin: “A beleza há de salvar o mundo.”?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Herberto Helder

(1930-2015)

 

O poema

 

VII

 

A manhã começa a bater no meu poema.

As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores

líricas.

Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.

Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,

o rodopio das rosáceas do meu

poema batido pela revelação das coisas.

Os finos ramos da cabeça cantam mexidos

pelo sangue.

Talvez eu enlouqueça à beira desta treva

rapidamente transfigurada.

Batem nas portas das palavras,

sobem as escadas desta intimidade.

É como uma casa, é como os pés e as mãos

das pessoas invasoras e quentes.

 

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,

deitado de costas, com o nariz que aspira,

a boca que emudece,

o sexo negro no seu quieto pensamento.

Batem, sobem, abrem, fecham,

gritam à volta da minha carne que é a complicada carne

do poema.

 

Uma inspiração fende lírios na minha testa,

fende-os ao meio

como os raios fendem as direitas taças de pedra.

Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,

uma visita do sangue cheio de luzes interiores.

Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem

levitante,

as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

 

É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados

do poema. É Deus que rola e a morte

e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal

à beira

do povo que até mim separa os espinhos das formas

e traz sua pureza aguda e legítima.

– Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais

pequenos cravos de ouro ou peixes delicados

de música fria.

 

– Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

 

O poema dói-me, faz-me.

O povo traz coisas para a sua casa

do meu poema.

Eu acordo e grito, bato com os martelos

dos dias da minha morte

a matéria secreta de que é feito o poema.

 

– A manhã começa a colocar o poema na parte

mais límpida da vida. E o povo canta-o

enquanto crescem os campos levantados

ao cume das seivas.

Amanhã começa a dispersar o poema na luz incontida

do mundo.

 

Em: “A colher na boca” (1961)

 

Ave do Paraíso

(Se Jong Cho: artista sul-coreana)

 

Referência:

 

HELDER, Herberto. O poema: VII. In: __________. Poemas completos. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2016. p. 39-40. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)