Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de dezembro de 2022

Naomi Shihab Nye - Incinerando o Ano Velho

A falante olha para o ano que finda e resolve queimar deliberadamente todas as coisas que não resultaram em bons termos ou que já não têm mais sentido em continuar, transformando-as em uma chama alaranjada em espirais, “acasalada” com o ar em combustão: cartas, notas, papéis, poemas inacabados, listas de compras etc.

 

Poder-se-ia estender a ideia de incineração, do fardo de nossas vidas, para muitos outros conteúdos – não exatamente tangíveis – que se contam como experiências, ações, atitudes, conversas, pensamentos, emoções, sentimentos ou o que quer que seja que possa estar “entulhando” as nossas mentes, para então gerar uma “ausência”, um “espaço” onde sejamos capazes de colocar outros tantos haveres, mais alinhados às exigências de momento.

 

J.A.R. – H.C.

 

Naomi Shihab Nye

(n. 1952)

 

Burning the Old Year

 

Letters swallow themselves in seconds.

Notes friends tied to the doorknob,

transparent scarlet paper,

sizzle like moth wings,

marry the air.

 

So much of any year is flammable,

lists of vegetables, partial poems.

Orange swirling flame of days,

so little is a stone.

 

Where there was something and suddenly isn’t,

an absence shouts, celebrates, leaves a space.

I begin again with the smallest numbers.

 

Quick dance, shuffle of losses and leaves,

only the things I didn’t do

crackle after the blazing dies.

 

Júpiter pintando borboletas,

Mercúrio e a Virtude

(Dosso Dossi: artista italiano)

 

Incinerando o Ano Velho

 

Cartas consomem-se em segundos,

Bilhetes de amigos atados à maçaneta da porta,

lâminas de papel escarlate transparente,

ringem como asas de mariposa,

mesclando-se ao ar.

 

Grande parte de um ano qualquer é inflamável,

lista de vegetais, poemas parciais.

Alaranjada chama em volutas dos dias,

tão pouca coisa quanto uma pedra.

 

Onde havia algo e de repente não há mais,

uma ausência grita, celebra, deixa um espaço.

Começo novamente com os menores números.

 

Dança rápida, um embaralhar de perdas e folhas,

apenas as coisas que não fiz

crepitam depois que a chama se extingue.

 

Referência:

 

NYE, Naomi Shihab. Burning the old year. In: GULOTTA, Nicole (Ed.). Eat this poem: a literary feast of recipes inspired by poetry. Boulder, CO: Roost Books, 2017. p. 151.


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Martin Eggleton - Fim de Ano em Ambleside

Ministro da Igreja Metodista na Inglaterra, o poeta detém-se nestas linhas sobre o cenário à volta de Ambleside, a noroeste do país, onde despontam a Colina de Loughrigg e o Lago Windermere: as descrições projetam um frio intenso e, mais que isso, suscitam dúvidas no ente lírico acerca do fato de que a sua companheira possa eventualmente tê-lo deixado.

 

O Ano Novo se aproxima e todos os excursionistas, devotos de final de semana, retornam a suas moradas: já não há movimento de hóspedes na pensão do lugarejo e os seus proprietários aproveitam a oportunidade para fazer o balanço do ano que se encerra. O nevoeiro é a nota definitiva na paisagem, a encobrir as cintilantes luzes natalinas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Martin Eggleton

(n. 1938)

 

Year End at Ambleside

 

Mountain mists descend on Ambleside (1)

shrouding the sparkling Christmas lights

strung like onions on guest house walls;

proprietors alone now with empty rooms

and voiceless signatures (2)

take stock of the year past.

The hint of snow in the air chills me –

not so much as the thought –

that you have really left me.

 

Loughrigg’s powdered brow (3)

disdains the lake below,

silently grieving for long-socked hikers,

weekend devotees gone home,

kagouls hung away for the New Year.

Facing it without you makes me cold,

colder than the stone-ice

and the biting wind over Windermere. (4)

 

The swans still trouble the mud,

as if life had no seasons.

Winter and summer alike keep breadless ducks

voicing complaints to absent friends;

boats lie anchored, bereft, rocking their grief –

waiting for captains to board again.

It’s beginning to sleet –

you are not here,

my numbness coats the pane

with a face just like yours.

 

Ambleside ao crepúsculo

(Graham Twyford: pintor inglês)

 

Fim de Ano em Ambleside

 

Névoas da montanha descem sobre Ambleside,

encobrindo as luzes cintilantes do Natal

que pendem como cebolas nas paredes da pensão;

os proprietários, agora sozinhos, com os quartos vazios

e sem compromissos verbais firmados,

fazem um balanço do ano passado.

Os indícios de neve no ar me dão calafrios,

não tanto quanto o pensamento

de que realmente tenhas me deixado.

 

O semblante empoado de Loughrigg

desdenha o lago mais abaixo,

silenciosamente a lamentar pelos caminhantes

de meias longas,

devotos de fim de semana que se dirigem para casa,

as capas de chuva alhures penduradas para o Ano Novo.

Dá-me frio enfrentá-lo sem ti,

mais frio que o gelo em pedra

e o vento cortante sobre Windermere.

 

Os cisnes ainda turbam o lodo,

como se a vida não tivesse estações.

Tanto o inverno quanto o verão levam os patos sem vianda

a expressar suas queixas aos amigos ausentes;

os barcos acham-se ancorados, despojados, brandindo

o seu pesar –

à espera de que os capitães voltem a embarcar.

Começa a cair granizo –

tu não estás aqui,

meu entorpecimento recobre a vidraça

com um rosto como o teu.

 

Notas:

 

(1). Ambleside: lugarejo no distrito de Lakes, em Cumbria, no noroeste da Inglaterra.

 

(2). Voice signature: é um tipo de assinatura eletrônica que usa o acordo verbal gravado por um indivíduo, em vez de uma assinatura manuscrita; é considerado juridicamente vinculativo nos setores privado e público, sob certas condições; uma assinatura de voz também se chama assinatura telefônica.

 

(3). Loughrigg: colina na parte central do distrito de Lakes.

 

(4). Windermere: trata-se do maior lago natural da Inglaterra, com pouco menos que 15 (quinze) quilômetros quadrados.

 

Referência:

 

EGGLETON, Martin. Year end at Ambleside. In: __________. Christmas poems: contemporary reflections on the festive season. 1st publ. [s.l.]: Lulu Press, 2006. p. 72.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Mario Quintana - Poema do Fim do Ano

Eis aqui um poeminha dedicado às crianças, mas que tem muito a ver com o que ocorre no universo dos adultos: enchemo-nos de esperanças no começo de cada ano e, à medida que transcorrem os meses, o edifício de doze andares se exaure e, quase desenganados, pomo-nos a formular novas expectativas para mais outro ano à frente, quando tudo, mais ou menos, há de se repetir.

 

Quem não haveria de associar a mensagem destes versos de Quintana àqueles da parte final de “O Bêbado e a Equilibrista”, composição de Aldir Blanc e João Bosco: “A esperança equilibrista / sabe que o show de todo artista / tem que continuar.”?! Logo se podem deduzir as razões pelas quais essa “louca menininha de olhos verdes” teima em reiterar os seus movimentos de alto a baixo, como uma fênix a regenerar-se em seus propósitos!

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Quintana

(1906-1994)

 

Poema do Fim do Ano

 

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Mora uma louca chamada Esperança:

E quando todas as buzinas fonfonam

Quando todos os reco-recos matracam

Quando tudo berra quando tudo grita quando tudo apita

A louca tapa os ouvidos

e

atira-se

E – ó miraculoso voo! –

Acorda outra vez menina, lá embaixo, na calçada.

O povo aproxima-se, aflito

E o mais velhinho curva-se e pergunta:

– Como é teu nome, menininha dos olhos verdes?

E ela então sorri a todos eles

E lhes diz, bem devagarinho para que não esqueçam nunca:

– O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

 

Em: “Poemas para a Infância: Lili inventa o mundo” (1983)

 

Esperança

(Jay Dalvi: artista indiano)

 

Referência:

 

QUINTANA, Mário. Poema do fim do ano. In: __________. Poesia completa. Primeira Reimpressão da Primeira Edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. p. 954. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Brasileira)


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Ana Cecilia Blum - O Lume

A escritora e jornalista equatoriana pincela com matizes singulares o sentido de salvação representado pelo lume ou clarão que nos é sinalizado pelos céus, algo de algum modo consentâneo com as urdiduras do sagrado e do profano, suportadas por antinomias do velho e do novo, de erros e de acertos, de luzes e de trevas.

 

O clarão da estrela segue à nossa frente, iluminando o caminho enquanto verbo manifesto, no firme propósito de que nos convertamos em revérberos humanos do divino, como harmônicos sóis introjetados, vocacionados ao espiritual, ao aperfeiçoamento pela generosidade, altruísmo, princípios éticos e mútuo respeito.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ana Cecilia Blum

(n. 1972)

 

La Lumbre

 

Hay soles que al anochecer

se acomodan en el alma

y nos hacen,

nos fecundan,

nos convierten.

 

Somos esos y más, otros,

los nuevos, los anteriores,

un acierto, un equívoco,

andantes de tinieblas y destellos,

ego y humildad que se entrelazan,

aprietan,

estrangulan.

 

Palabras infinitas

en las hojas de la lluvia,

odisea propia,

firma existencial en el poniente.

 

Días que se mecen sacrosantos y profanos,

rutas se hacen, se deshacen,

fallas traicioneras,

sismos inminentes.

 

Y entre lo que estalla y enfurece,

un gramo de armonía en la pupila,

la lumbre esperando,

desde el fondo,

desde la antesala de todos los asombros

volteamos, nos abraza,

nos envuelve,

somos su calor, sus luces.

 

Es la lumbre

y

nos salva.

 

A Estrela

(Diane McClary: pintora norte-americana)

 

O Lume

 

Há sóis que ao anoitecer

se acomodam na alma

e nos preenchem,

nos fecundam,

nos convertem.

 

Somos esses e mais, outros,

os novos, os anteriores,

um acerto, um equívoco,

errantes de trevas e clarões,

ego e humildade que se entrelaçam,

comprimem,

estrangulam.

 

Palavras infinitas

nas folhas de chuva,

odisseia própria,

firma existencial no poente.

 

Dias que meneiam sacrossantos e profanos,

rotas se fazem, desfazem,

falhas traiçoeiras,

sismos iminentes.

 

E entre o que estoura e enfurece,

um grama de harmonia na pupila,

o lume à espera –

desde o fundo,

desde a antessala de todos os assombros

retornamos – nos abraça,

nos envolve,

somos seu calor, suas luzes.

 

É o lume

e

nos salva.

 

Referência:

 

BLUM, Ana Cecilia. La lumbre. In: ALENCART, A. P.; CRUZ-VILLALOBOS, Luis (Eds.). Carne del cielo: versos de navidad. Antología de poetas iberoamericanos de hoy. Pinturas de Miguel Elías. Santiago, CL: Hebel Ediciones, 2015. p. 142-143. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 dez. 2022.