Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Joyce Sutphen - Moça sobre um Trator

Antes mesmo que conhecesse as letras do alfabeto, a voz lírica já apresentava dotes para aprender as coisas do mundo ao redor, no caso específico, os afazeres da vida no campo. Quando se tornou uma mocinha, com efeito, passou a ajudar nas atividades rurais, conduzindo um trator munido de recursos para empilhar fardos de feno nas prateleiras do celeiro.

 

Há quem apresente habilidades motoras e espaciais como se fossem inatas, enquanto outros parecem predispostos a acidentes no mais comezinho locomover-se: o que releva na história ora descrita – ou o que, pelo menos, a poetisa buscou enfatizar –, certamente, é o fato de que se trata de uma garota a pilotar habilmente um trator –  e não um rapaz –, pois o que se vê como atividades femininas corriqueiras no campo são a lavoura, a colheita de frutos (quando ainda manual), ou mesmo a produção de alimentos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Joyce Sutphen

(n. 1949)

 

Girl on a Tractor

 

I knew the names of all the cows before

I knew my alphabet, but no matter the

subject; I had mastery of it, and when

it came time to help in the fields, I

learned to drive a tractor at just the right

speed, so that two men, walking

on either side of the moving wagon

could each lift a bale, walk towards

the steadily arriving platform and

simultaneously hoist the hay onto

the rack, walk to the next bale, lift,

turn, and find me there, exactly where

I should be, my hand on the throttle,

carefully measuring out the pace.

 

Pôster Chinês

(Autoria Desconhecida)

 

Moça sobre um Trator

 

Eu sabia os nomes de todas as vacas antes

de conhecer o meu alfabeto; contudo,

sem que importasse

o assunto, eu o dominava, e uma vez

chegado o momento de ajudar nos campos, aprendi

a conduzir um trator à adequada

velocidade, para que dois homens, caminhando

a cada lado do veículo em movimento,

pudessem levantar cada um o seu fardo, caminhar

em direção

à plataforma móvel a ritmo uniforme e,

simultaneamente, içar o feno até a

a prateleira, deslocar-me até o próximo fardo,

levantá-lo,

dar a volta, para de novo encontrar-me lá,

exatamente onde

eu deveria estar, com a minha mão no acelerador,

a medir cuidadosamente o ritmo.

 

Referência:

 

SUTPHEN, Joyce. Girl on a tractor. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 163.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Lord Byron - Melodia Hebraica

A rigor, tem-se aqui uma paráfrase do poema original em inglês de Byron, na qual se vê a conversão de quarto sextilhas em cinco quadras com semelhante teor, a expressar a profunda paixão e saudade do povo judeu por sua terra natal – uma vez que disperso pelo mundo todo –, plaga essa idilicamente concebida em suas singularidades: gazelas selvagens, riachos, colinas, cedros, templos, escombros e assim por diante.

 

Byron lança mão das histórias bíblicas para ancorar os motivos lavrados em cada verso, belos em sua sonoridade, burilando assim um cântico de clamor pela desolação de uma civilização milenária, ou de outra forma, de empatia e comiseração pela sina do povo judeu – à altura da redação do poema ainda não reinstalado na Palestina.

 

J.A.R. – H.C.

 

George G. Byron

(1788-1824)

Retrato por Thomas Phillips

 

The Wild Gazelle

 

The wild gazelle on Judah’s hills

Exulting yet may bound,

And drink from all the living rills

That gush on holy ground;

Its airy step and glorious eye

May glance in tameless transport by: –

 

A step as fleet, an eye more bright,

Hath Judah witness’d there;

And o’er her scenes of lost delight

Inhabitants more fair.

The cedars wave on Lebanon,

But Judah’s statelier maids are gone!

 

More blest each palm that shades those plains

Than Israel’s scatter’d race;

For, taking root, it there remains

In solitary grace:

It cannot quit the place of birth,

It will not live in other earth.

 

But we must wander witheringly,

In other lands to die;

And where our fathers’ ashes be,

Our own may never lie:

Our temple hath not left a stone,

And Mockery sits on Salem’s throne.

 

In: “Hebrew Melodies” (1815)

 

Vista de Jerusalém

(Ludwig Blum: pintor morávio-israelense)

 

Melodia Hebraica

 

A selvagem gazela ágil e bela,

Pasce alegre nos vales de Judá,

Pode as vistas fitar na terra santa,

Beber no manso arroio que além está:

 

Mas Judá já não vê nessas paragens,

Porque gemem com os pais, todos cativos,

As filhas que já teve, cujos olhos,

Que os da linda gazela são mais vivos!

 

Lá do Líbano em cima brandamente

O cedro majestoso a coma alteia.

Mas debalde se busca, entre as ramagens,

Lindos portes das filhas da Judeia!

 

Do que elas mais felizes, as palmeiras

Não se podem apartar do pátrio solo,

As raízes opõem-se ao triste exílio,

Não inclinam a grilhões o altivo colo!

 

Mas nós, pobres, errantes, caminhamos,

Sofrendo do desterro a sorte má!

Não teremos na pátria as nossas cinzas,

A desgraça é que reina hoje em Judá.

 

Em: “Melodias Hebraicas” (1815)

 

Referências:

 

Em Inglês

 

BYRON, George Gordon. The wild gazelle. In: __________. The complete works by Lord Byron. Including his suppressed poems and others never before published. Vol. I. Paris, FR: Baudry’s Foreign Library, 1832. p. 463.

 

Em Português

 

BYRON, George Gordon. Melodia hebraica. Tradução de Joaquim Serra. In: SERRA, Joaquim (Seleção e Tradução). Mosaico: poesias traduzidas. Parahyba, PB: Tipografia de José Rodrigues da Costa, 1865. p. 45.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen - Arte Poética II

Andresen especula, sob a forma de prosa poética, acerca de ser poeta e de sua arte – a da palavra carregada de sentidos, de plena realidade, obstinada e intransigente porque extraída à vida –, a configurar um denso caminho que leva até a província em que o próprio poeta se reconhece – não uma espécie de artesanato desprovido de quaisquer liames consequenciais que não sejam os da mera “mimesis” do tangível.

 

Cuide-se que Andresen não preceitua que a poesia deva se abduzir às coisas concretas, detratando-as, antes, a elas se deve ceder prevalência em relação aos escaninhos da idealidade, para assim manifestar os liames de um convívio saudável do poeta com as vozes e as imagens que lhe chegam a cada momento, tal que se lhe revele a consciência de “estar no mundo”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Sophia de M. B. Andresen

(1919-2004)

 

Arte Poética II

 

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

 

O Grande Século

(René Magritte: artista belga)

 

Referência:

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Arte poética II. In: __________. Coral e outros poemas. Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 362-363.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Kenneth Rexroth - Tranquilamente

Quietude, tranquilidade, calma e outros adjetivos é tudo o que sintetiza o momento de remanso do casal a que os versos do infratranscrito poema dizem respeito. Mesmo a menção ao Oceano Pacífico alinha-se, em justa medida, à composição deste cenário quase arquetípico de uma relação amorosa que, para ser sincero, trouxe-me à imaginação as nuances de uma antiga composição da dupla Roberto Carlos & Erasmo Carlos – “Proposta” (1973).

 

Lá nos recessos do coração, há uma sensação de lentidão, silêncio, quietude e confiança, palavras que convergem, conforme a presumível intenção do poeta, para a ideia de tranquilidade do título. Nas referências às partes do corpo – face, coxas, cérebros, corações – depreende-se a conexão física entre os amantes e destes com o mundo à volta, fazendo ecoar, por igual, um sentido de harmonia pelo soneto.

 

J.A.R. – H.C.

 

Kenneth Rexroth

(1905-1982)

 

Quietly

 

Lying here quietly beside you,

My cheek against your firm, quiet thighs,

The calm music of Boccherini

Washing over us in the quiet,

As the sun leaves the housetops and goes

Out over the Pacific, quiet –

So quiet the sun moves beyond us,

So quiet as the sun always goes,

So quiet, our bodies, worn with the

Times and the penances of love, our

Brains curled, quiet in their shells, dormant,

Our hearts slow, quiet, reliable

In their interlocking rhythms, the pulse

In your thigh caressing my cheek. Quiet.

 

Um casal numa pousada tocando música,

uma mulher à escuta na porta

(Pieter Fontijn: pintor holandês)

 

Tranquilamente

 

Recostado aqui tranquilamente a teu lado,

Minha face contra tuas firmes coxas em repouso,

A música calma de Boccherini

Banhando-nos na quietude,

Enquanto o sol se afasta dos telhados e se vai

Sobre o Pacífico, bonançoso –

Tão plácido o sol se move para além de nós,

Tão plácido como o sol sempre se vai,

Tão quietos, nossos corpos, fatigados pelos

Momentos e penitências do amor, nossos

Cérebros enovelados, serenos em suas conchas,

adormecidos,

Lentos os nossos corações, sossegados, imperturbáveis

Em seus ritmos entrelaçados, o pulsar

De tua coxa a acariciar-me a face. Tranquilo.

 

Referência:

 

REXROTH, Kenneth. Quietly. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 138.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Henry David Thoreau - Walden (Excerto)

Esta passagem da ‘Conclusão’ de ‘Walden’ (1854), de H. D. Thoreau (1817-1862), selecionada por Garrison Keillor (n. 1942), bem poderia ter sido concebida por algum escritor místico, haja vista os cotejos encetados pelo autor entre a topografia das águas de um rio e a forma de vida de que somos dotados, ou mesmo as explanações de suas ideias à maneira dos transcendentalistas norte-americanos.

 

O discurso de Thoreau assume um tom positivo e profético, ainda que admita que suas preleções, aos ouvidos de João ou Jônatas – gente comum do povo –, não venham a ser totalmente compreendidas ou assimiladas. De todo modo arremata resolutamente: “Só amanhece o dia para o qual estamos despertos. O dia não cessa de amanhecer. O sol é apenas uma estrela da manhã”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Henry David Thoreau

(1817-1862)

 

Walden (Excerpt)

 

The life in us is like the water in the river. It may rise this year higher than man has ever known it, and flood the parched uplands; even this may be the eventful year, which will drown out all our muskrats. It was not always dry land where we dwell. I see far inland the banks which the stream anciently washed, before science began to record its freshets. Every one has heard the story which has gone the rounds of New England, of a strong and beautiful bug which came out of the dry leaf of an old table of apple-tree wood, which had stood in a farmer’s kitchen for sixty years, first in Connecticut, and afterward in Massachusetts, – from an egg deposited in the living tree many years earlier still, as appeared by counting the annual layers beyond it; which was heard gnawing out for several weeks, hatched perchance by the heat of an urn. Who does not feel his faith in a resurrection and immortality strengthened by hearing of this? Who knows what beautiful and winged life, whose egg has been buried for ages under many concentric layers of woodenness in the dead dry life of society, deposited at first in the alburnum of the green and living tree, which has been gradually converted into the semblance of its well-seasoned tomb, – heard perchance gnawing out now for years by the astonished family of man, as they sat round the festive board, – may unexpectedly come forth from amidst society’s most trivial and handselled furniture, to enjoy its perfect summer life at last!

I do not say that John or Jonathan will realize all this; but such is the character of that morrow which mere lapse of time can never make to dawn. The light which puts out our eyes is darkness to us. Only that day dawns to which we are awake. There is more day to dawn. The sun is but a morning star.

 

Homem no Bosque

(Chenlu Zhu: artista chinesa)

 

Walden (Excerto)

 

A vida em nós é como a água no rio. Ela pode aumentar este ano a um nível jamais visto e inundar os planaltos ressecados; pode até ser o ano memorável que afogará todos os nossos ratos almiscarados. Aqui onde moramos nem sempre foi terra seca. Vejo em áreas bem interiores as margens outrora banhadas pelos rios, antes que a ciência começasse a registrar suas enchentes. Todos já ouviram a história, que percorreu a Nova Inglaterra, do besouro forte e bonito que saiu do nó seco de uma velha mesa de madeira de macieira, que havia ficado sessenta anos na cozinha de um agricultor, primeiro em Connecticut e depois em Massachusetts – saído de um ovo que fora depositado na árvore viva muitos anos antes, conforme se viu depois contando as camadas anuais do tronco, e que ficou roendo audivelmente o interior durante várias semanas até conseguir sair, após ter sido incubado talvez pelo calor de uma chaleira. Quem não sente fortalecida sua fé na ressurreição e na imortalidade, ao ouvir isso? Quem sabe qual a bela vida alada, cujo ovo ficou enterrado por muitas eras sob muitas camadas concêntricas de lígneo embotamento na vida ressequida do convívio social, outrora depositado no alburno da árvore viva e verdejante, que aos poucos se converteu na imagem de sua sepultura de madeira totalmente seca – talvez roendo audivelmente o interior, desta vez durante anos, até conseguir sair, para o espanto da família sentada ao redor da mesa festiva –, que pode inesperadamente surgir do móvel mais trivial e comemorado entre o convívio social, para gozar finalmente sua plena vida estival!

Não digo que João ou José venham a entender tudo isso; mas este é o caráter daquele amanhã que o mero decorrer do tempo jamais fará alvorecer. A luz que extingue nossos olhos é escuridão para nós. Só amanhece o dia para o qual estamos despertos. O dia não cessa de amanhecer. O sol é apenas uma estrela da manhã.

 

Referências:

 

Em Inglês

 

THOREAU, Henry David. Walden (excerpt). In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 424-425.

 

Em Português

 

THOREAU, Henry David. Walden (excerto). Tradução de Denise Bottmann. In: __________. Walden: conclusão. Apresentação de Eduardo Bueno. Tradução de Denise Bottmann. 1. ed. reimp. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015. p. 313-314. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 884.)