Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 30 de novembro de 2019

Série “A” 2019 – Fim da 35ª Rodada – Projeções do Modelo Esotérico-Matemático (MEM)

Vai aqui mais uma projeção do MEM, finda a 35ª rodada: prevê-se que, mesmo com a deficiente campanha do Cruzeiro no campeonato, o time mineiro ainda conseguirá se livrar da Segundona. Será?

Na parte de cima, resta a briga por uma vaga na Libertadores de 2019, haja vista que o título do campeonato ficou mesmo com o Flamengo.

J.A.R. – H.C.


 
 
 
  

William Stafford - Pergunta-me

Trata-se aqui de um momento de contemplação persuasiva, mirando as águas de um rio, cuja quietude configura um exemplo a pontificar contra a nossa vã confiança na retórica: imóveis e frios na superfície, mas, por baixo, plenos de energia e enredamentos.

Quando a vida transcorre num fluxo gelado, sugere o poeta que devemos nos perguntar sobre os erros que cometemos, se aquilo com que tantas vezes andamos à volta representa o real sentido da vida, sobre que diferença resultou o amor ou o ódio das pessoas com quem convivemos.

Assim, poderemos vislumbrar as verdades ocultas sob as inquietações e o burburinho do quotidiano, fazendo-nos concentrar nas perguntas cruciais: o que realmente conta, perdura, tem relevância para uma vida feliz, sem peso favorável aos arrependimentos, senão às realizações que, diante dos umbrais da morte, sejam capazes de pender a libra para o lado da ventura?!

J.A.R. – H.C.

William Stafford
(1914-1993)

Ask Me

Some time when the river is ice ask me
mistakes I have made.  Ask me whether
what I have done is my life.  Others
have come in their slow way into
my thought, and some have tried to help
or to hurt: ask me what difference
their strongest love or hate has made.

I will listen to what you say.
You and I can turn and look
at the silent river and wait.  We know
the current is there, hidden; and there
are comings and goings from miles away
that hold the stillness exactly before us.
What the river says, that is what I say.

Perto do Lago
(Pierre-Auguste Renoir: pintor francês)

Pergunta-me

Nalgum dia, quando o rio estiver gelado, pergunta-me
sobre os erros que cometi. Pergunta-me se aquilo
de que me ocupei é minha vida. Outros
lentamente vieram ter em meu
pensamento, e alguns tentaram me ajudar
ou magoar: pergunta-me que diferença
fizeram o seu mais forte amor ou o seu ódio.

Escutarei o que tens a me dizer.
Tu e eu podemos dar a volta, contemplar
o rio silencioso e esperar. Sabemos
que ali está a corrente, oculta; e há
ida e vindas desde milhas distantes
que sustentam a quietude exatamente diante de nós.
O que diz o rio, isso é o que digo.

Referência:

STAFFORD, William. Ask me. In: BREHM, John (Ed.). The poetry of impermanence, mindfulness and joy. Somerville, MA: Wisdom Publications, 2017. p. 156.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Yehuda Amichai - Aeromoça

Um poema bem engraçado para o dia: Amichai, em interação imaginosa ou real com uma aeromoça, dialoga com ela de forma cifrada, a partir de ordens ou afirmações que ficam pela metade, pois não se estendem a oferecer maiores detalhes sobre o ponto até onde ambos pretendem chegar – ainda que se possa presumi-lo por simples inferência.

Mas a moça está “vacinada” contra investidas de “aventureiros” do amor, pois que, segundo o poeta, “pertence ao partido conservador / dos amantes de um só grande amor na vida”. Conclusão: o contato não passará de trivial interação nesse meio tão fugaz para se ter algo que represente mais estabilidade nas relações humanas.

J.A.R. – H.C.
  
Yehuda Amichai
(1924-2000)

A Aeromoça

A aeromoça disse para apagarmos todo material de fumar
ela não detalhou, cigarro, charuto ou cachimbo.
Respondi-lhe no meu coração: Tu tens um belo material
de amar,
eu também não detalhei.

Ela disse para eu apertar o cinto e me prender
na poltrona, eu lhe respondi:
Queria que todas as fivelas na minha vida tivessem a forma
da sua boca.

Ela disse: Tu queres café agora ou depois,
ou de modo algum. E passou por mim.
Alta até os céus.

A pequena cicatriz no alto do seu braço
atestava que ela jamais será atingida pela varíola.
Os seus olhos atestavam que ela jamais se apaixonará de novo:
ela pertence ao partido conservador
dos amantes de um só grande amor na vida.

Beleza parisiense
(Konstantin Razumov: pintor russo)

Referência:

AMICHAI, Yehuda. A aeromoça. Tradução de Moacir Amâncio. In: __________. Terra e paz: antologia poética. Organização e tradução de Moacir Amâncio. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bazar do Tempo, 2018. p. 87.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Lêdo Ivo - Os Andaimes do Mundo

O poeta alagoano está no seu melhor, neste esforço de imaginação, à espera que o mundo à sua volta ouse emergir de uma flor absurda como a vida, num país como tantos outros que brotam enquanto hipóteses fecundas do pensamento, a modo de ilhas fictícias jamais nascidas, ou melhor, sem existência real.

Lêdo rememora o instante das grandes navegações da História, quando muitos povos – o português aí incluso – buscavam rotas até o Oriente, onde poderiam comerciar menos dispendiosamente as especiarias e os bens produzidos a tão grande distância: eis aí o imaginário capturado pelo que logra impregnar o espírito, a partir de “uma janela aberta sobre a Ásia”.

J.A.R. – H.C.

Lêdo Ivo
(1924-2012)

Os Andaimes do Mundo

Minha vida é como uma janela aberta sobre a Ásia.

Professo o imaginário e, neste rito,
renasço a contemplar o inexistente
que fulge à luz do meu trópico de água
como essas ilhas fictícias que não se ajustam às horas
triviais dos navegantes,
terras jamais nascidas, horizontes pensados.

Os países são hipóteses de segredos
que aparecem e somem, ante o assombro da Terra.
Imóvel ou caminhando, vejo sempre os polos
com suas chuvas rápidas e suas esfinges entre andaimes,
e principalmente, meus amigos, com essa atmosfera de
última estação
que intriga todos os que nasceram no centro do mundo.

Além de minhas pálpebras, onde o pensamento é de sal
como se uma lágrima o houvera ungido,
haverá um país claro e perfeito, de tão doce desenho
como as pedras femininas da noite.
Ó estátuas solares, caídas ao peso de tantas flechas...
Vejo uma flor, absurda como a vida.

Onde a água dormida canta, em outrora ninhos de coral,
aí eu te verei novamente,
desolada vida, em tudo semelhante aos desertos reais.
Invenção sucessiva de mim mesmo,
ó dias, feras domadas, ó dias de minha vida,
sumidouro onde afundo, incógnito.

Em: “Linguagem” (1950-1951)

Perdida em pensamentos
(Dusan Malobabic: pintor australiano)

Referência:

IVO, Lêdo. Os andaimes do mundo. In: __________. Central poética: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar; Brasília, DF: INL, 1976. p. 97. (‘Manancial’; v. 48)

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Philip Larkin - Os Dias

É na sequência dos dias que o poeta percebe o ritual reiterado do trabalho, do quotidiano da vida e, por que não, da diversão. Mas o leitor terá percebido o motivo pelo qual Larkin menciona o padre e o médico a correr pelos campos? Claro está: refere-se ele ao momento da morte dos habitantes da área.

Afinal, o médico vai até o paciente para medicar-lhe os remédios capazes de contornar os riscos de sua saúde, e o padre, eventualmente, para administrar ao moribundo os derradeiros ritos, ou melhor, a extrema-unção. Conclusão: ao longo dos dias, correm tanto a vida e os seus contratempos, quanto a morte que, aos olhos do poeta, é um tipo de desígnio inamovível.

J.A.R. – H.C.

Philip Larkin
(1922-1985)

Days

What are days for?
Days are where we live.  
They come, they wake us  
Time and time over.
They are to be happy in:  
Where can we live but days?

Ah, solving that question
Brings the priest and the doctor  
In their long coats
Running over the fields.

Bebendo chá em Mytishchi
(perto de Moscow)
(Vasily Grigorevich Perov: pintor russo)

Os Dias

Para que servem os dias?
Os dias são o meio onde vivemos.
Eles vêm, nos despertam
Vezes sem conta.
Servem para que, neles, sejamos felizes:
Onde poderíamos viver senão nos dias?

Ah, solucionar essa questão
Leva o padre e o médico
Em seus longos sobretudos
A correr pelos campos.

Referência:

LARKIN, Philip. Days. In: BREHM, John (Ed.). The poetry of impermanence, mindfulness and joy. Somerville, MA: Wisdom Publications, 2017. p. 55.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Demostene Botez - Tristezas Atávicas

Na aparência das coisas, medida pelas palavras do próprio poeta, as tristezas a que alude neste poema só podem ser fruto de um ânimo sorumbático, devotado ao desconsolo, pois de outra forma, a quem tenha um espírito mais radiante, essas mesmas coisas, certamente, ensejariam motivos de contagiante alegria, pois dizem respeito ao fluxo da vida.

Por isso são elas denominadas “atávicas”, quer dizer, inatas, hereditárias – e pouco há capaz de dar contornos ou inflexões a essa tendência de ver o mundo em tons cinzentos, pois que decorrente de pressões internas ou orgânicas do poeta, consectárias, talvez, de um quadro de morbidez, agravado, ademais – quem sabe? – por alguma coerção de ordem social.

J.A.R. – H.C.

Demostene Botez
(1893-1973)

Tristeţi Atavice

Tristeţi adânci de iarmaroace,
De hăli cu cuşti şi panoramă,
Tristeţi de şubrede barace
Cu-ntortocheate diagrame;

Tristeţi de birturi, cafenele,
De zgomot infernal de cleşte,
De-un vânzător de floricele
Şi-un papagal care ghiceşte;

Tristeţi de după-amiezi cu soare
Cu moleşita lor căldură,
Cu cerşetori fără picioare
Ce cântă dureros din gură;

Tristeţi de bărci ce balansează
Caricaturi de-avânt schilod,
Şi de maimuţi ce imitează
Şi râd urâte la norod;

Tristeţi haine şi adânci
De-acvile cu lanţuri la picioare,
Visând seninătăti de stânci
La uşa cuştilor murdare;

Tristeţi bolnave de flaşnete
Cu valsuri vechi şi anodine,
Tristeţi şi moaşte de regrete
Ce veac v-a îngropat în mine?

A libertação das dores
(Paul Bond: pintor mexicano)

Tristezas Atávicas

Tristezas profundas das feiras,
carroças com jaulas e vistas panorâmicas,
tristezas de barracas oscilantes
com seus arabescos tortuosos.

Tristezas dos bares, dos cafés,
da gritaria infernal
de um vendedor de amendoim,
e de um periquito adivinho.

Tristezas de meios-dias ensolarados
com seu calor langoroso,
com seus mendigos de calças mal-compostas,
em patética lamentação.

Tristeza de barcos que se embalam
caricaturas, com a força mutilada
de símios imitadores
que zombam grotescamente dos espectadores.

Tristezas hostis e profundas
de águias acorrentadas
sonhando com a serenidade dos cimos,
da porta de suas sujas jaulas;

Tristezas dos realejos,
suas velhas valsas informes,
tristezas, restos de saudades,
que tempo vos sepultou em mim?

Referências:

Em Romeno

BOTEZ, Demostene. Tristeţi atavice. Disponível neste endereço. Acesso em: 30 out. 2019.

Em Português

BOTEZ, Demostene. Tristezas atávicas. Tradução de Nelson Vainer. In: VAINER, Nelson (Editor e Tradutor). Antologia da poesia romena. Prefácio de I. D. Balan. Apresentação de Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira, 1966. p. 133-134.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Cláudio Murilo Leal - Caderno de Proust

A vida literária é assim: enquanto alguns detestam “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust – a exemplo de Tom Disch –, outros cantam loas à extensa obra – como, no presente caso, o literato e poeta carioca. Fazer o quê? Os gostos diferem bastante leitor a leitor, muito embora haja um elenco de obras a formar um pretenso cânone literário ocidental – aliás, em que a série do francês quase sempre é inserta.

Por outro lado, há ainda terceiros que se valem da obra de Proust para, a partir dela, fundar “novos mundos”: cito “Como Proust pode mudar sua vida”, do suíço Alain de Botton, autor de livros que, por vezes, fazem-me lembrar os moldes de diversos trabalhos de André Comte-Sponville ou mesmo de Luc Ferry, ambos numa linha de filosofia mais aberta, voltada a difundir a matéria junto aos leitores.

J.A.R. – H.C.

Cláudio Murilo Leal
(n. 1937)

Caderno de Proust

Marcel ilumina pretéritos personagens
que os de corpo presente são opacos.
O agro sabor da mítica madalena
é uma lembrança que atravessa portas e

janelas, despregando cortiça e memória.
Alonga-se o infindável parágrafo
para além dos enredos – o caderno
recolhe resíduos sob espécie de Romance.

Ontem, noites e dias insepultos,
uma realidade cúmplice.
Retornam miragens, fantasias de infância,
confunde-se a grafia dos relógios.
(Pêndulo de sombras e silêncio.)
O leitor desvela o mágico passado.

Em: “Caderno de Proust” (1982)

Boulevard Montmartre
(Camille Pissarro: pintor francês)

Referência:

LEAL, Cláudio Murilo. Caderno de Proust. In: SEFFRIN, André (Seleção e Prefácio). Roteiro da poesia brasileira: anos 50. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2007. p. 215-216.

domingo, 24 de novembro de 2019

Tracy K. Smith - Credulidade

O amor como força que se exprime por meio de paradoxos: neste jubiloso poema, a poetisa enfatiza como dele tudo ela espera e, contraditoriamente, como aspira a viver uma vida desnuda, sem qualquer vestígio de memórias – nem mesmo daqueles anelos de que o seu amado lhe sussurrasse na boca as palavras de cujo sabor se intui a presença desse máximo sentimento.

É o amor, como diz Camões, tão contrário a si mesmo, fruto de dualidades, ambiguidades, contradições. E quem já não as experimentou, se desiludiu, mas, ainda assim, continua a prender-se a esse sentimento que, não tendo exata explicação, perdura como o motivo maior capaz de nos manter literalmente vivos.

J.A.R. – H.C.

Tracy K. Smith
(n. 1972)

Credulity

We believe we are giving ourselves away,
And so it feels good,
Our bodies swimming together
In afternoon light, the music
That enters our window as far
From the voices that made it
As our own minds are from reason.

There are whole doctrines on loving.
A science. I would like to know everything
About convincing love to give me
What it does not possess to give. And then
I would like to know how to live with nothing.
Not memory. Nor the taste of the words
I have willed you whisper into my mouth.

Garota Interrompida em Sua Música
(Johannes Vermeer: pintor holandês)

Credulidade

Cremos que nos estamos entregando,
E por isso nos sentimos bem,
Nossos corpos flutuando juntos
À luz da tarde, a música
Que entra por nossa janela tão distanciada
Das vozes que a engendraram,
Tanto quanto nossas próprias mentes longe da razão.

Há doutrinas inteiras sobre o amor.
Uma ciência. Gostaria de tudo conhecer
Sobre convencer o amor a me dar
O que ele não dispõe para dar. E então
Gostaria de saber como viver sem nada.
Nenhuma memória. Nem o sabor das palavras
Que em minha boca desejei que sussurrasses.

Referência:

SMITH, Tracy K. Credulity. In: BREHM, John (Ed.). The poetry of impermanence, mindfulness and joy. Somerville, MA: Wisdom Publications, 2017. p. 167.

sábado, 23 de novembro de 2019

D. H. Lawrence - O Pensamento

Numa definição do pensamento de claro corte intelectual, clarividente ao extremo, Lawrence pretende o ser humano tão divino quanto seja ele capaz de ser, não enredado nos problemas que derivam do que por demais se sabe, senão no que se desconhece, autênticas incógnitas ainda não desnudadas nessa equação multivariada que é o mundo.

O pensamento seria o “teste dos conceitos e a pedra de toque da consciência”, um ato de se trazer à intelecção o que transcorre na vida, que, de outra forma, permanecerá oculto, uma máquina da qual jamais saberemos de suas razões, caso nos mantenhamos no nível de meros repetidores de “ideias pré-fabricadas”.

J.A.R. – H.C.

D. H. Lawrence
(1885-1930)

Thought

Thought, I love thought.
But not the jiggling and twisting of already existent ideas
I despise that self-important game.
Thought is the welling up of unknown life into consciousness,
Thought is the testing of statements on the touchstone of the conscience,
Thought is gazing on to the face of life, and reading what can be read,
Thought is pondering over experience, and coming to a conclusion.
Thought is not a trick, or an exercise, or a set of dodges,
Thought is a man in his wholeness wholly attending.

(from M.Ps.)

Sem Título
(Pawel Kuczynski: artista polonês)

O Pensamento

O pensamento, amo o pensamento.
Não o titubear e retorcer de ideias pré-fabricadas –
Esse jogo de autossuficiência, eu o desprezo.
O pensamento é o manar da vida oculta à tona da mente,
O pensamento é o teste dos conceitos e a pedra de toque da consciência,
O pensamento é fitar a vida de frente e ler o que ali se pode ler,
O pensamento é ponderar a experiência e chegar a uma conclusão.
O pensamento não é um artifício, um exercício, uma esquivança –
O pensamento é um homem em sua inteireza e inteiramente alerta.

(Em: M.Ps.)

Referência:

LAWRENCE, D. H. Thought / O pensamento. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. In: __________. Alguma poesia. Seleção, tradução e introdução de Aíla de Oliveira Gomes. Edição bilíngue. São Paulo, SP: T. A. Queiroz, 1991. Em inglês: p. 162; em português: p. 163. (‘Biblioteca de Letras e Ciências Humanas’; série 2ª, textos; v. 6)

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Hilda Hilst - XIX, Trovas de muito amor para um amado senhor

Com seis tercetos com rima “aba”, esta seção das trovas de Hilst dialoga com o famoso soneto de Camões, quer pelo linguajar característico empregado, assaz comum nos sonetos do autor lusitano, quer por se associar à ideia sintetizada no verso definidor do amor – “É dor que desatina sem doer”.

E pelo sentido que se pode extrair do derradeiro terceto, percebe-se que a poetisa dedica ao seu senhor um amor que se pretende eterno, embora algo assemelhado ao do segundo terceto do “Soneto à Fidelidade”, de Vinicius de Moraes: “Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

J.A.R. – H.C.

Hilda Hilst
(1930-2004)

XIX, Trovas de muito amor
para um amado senhor

Se amor é merecimento
Tenho servido a Deus
Mui a contento.

Se é vosso meu pensamento
Em verdade vos dei
Consentimento.

E se mereci tal vida
Plena de amor e serena
Foi muito bem merecida.

E em me sabendo querida
Dos anjos e do meu Deus
Na morte pressinto a vida.

E o que se diz sofrimento
No meu sentir é agora
Contentamento.

E se amor morre com o tempo
Amor não é o que sinto
Neste momento.

(1960)

Almoço sobre o relvado
(Édouard Manet: pintor francês)

Referência:

HILST, Hilda. XIX, Trovas de muito amor para um amado senhor. In: __________. De amor tenho vivido. Ilustrações de Ana Prata. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 70.