Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de maio de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Parte III)

(Para ler a Parte II, acesse aqui)
(Continuação da “Teoria da Norma Jurídica”)

V.    As Prescrições Jurídicas (p. 125-157)
Neste capítulo, Bobbio busca distinguir as normas jurídicas de outros tipos de norma, não se restringindo a um estudo puramente formal, como feito apresentado anteriormente, haja vista a amplitude do universo normativo (p. 125-126).
Na definição de critérios de distinção das prescrições jurídicas, começa pelo de conteúdo: (i) é jurídica aquela norma que regula uma relação intersubjetiva, atribuindo um direito e um dever a duas pessoas simultaneamente; (ii) trata-se de uma norma bilateral, e nisto difere da norma moral, que é unilateral; e (iii) por distinguir a norma jurídica da norma moral, este critério não vale para distingui-la da norma social (p. 127).
Quanto ao critério do fim, afirma que: (i) jurídica é aquela norma que regula uma relação intersubjetiva específica, cuja finalidade é a conservação da sociedade, sem o que esta não seria possível; e (ii) todavia, este critério não pode ser considerado válido, porque não é universal, uma vez que a norma muda de sociedade para sociedade, não existindo um método para se fixar de modo unívoco os caracteres que tornam determinada norma uma regra essencial para a conservação da sociedade (p. 128).
No que diz respeito ao critério do sujeito que põe a norma, vale a assertiva de que jurídica é a norma que, independentemente da forma que assuma, do conteúdo que tenha ou do fim a que se proponha, seja posta pelo poder soberano, ou seja, por aquele poder que em uma dada sociedade não é inferior a nenhum outro poder, mas que se encontra em posição de dominar todos os demais (p. 129).
Sob a ótica do critério dos valores ou ideais, muito aceito entre os jusnaturalistas, jurídica é a norma que, além de ser posta pelo poder soberano, fundamenta-se em critérios de justiça, assente, desde logo, que o seu maior problema é a não existência de uma definição única daquilo que seja justo (p. 129-130).
Outro critério é o do destinatário ou da natureza da obrigação, com duas vertentes (Kant e Haesert), a defender que se está frente a uma norma jurídica somente quando a pessoa a quem ela se dirige está convencida de sua obrigatoriedade (p. 130-131).
Bobbio, logo após, tece comentários ao critério da resposta à violação. Afirma-se que a norma prescreve o que deve ser. Se a ação real não corresponde à ação prescrita diz-se que a norma foi violada, sendo qualificada tal violação como ilícito. Se a norma for um imperativo negativo, o ilícito consiste em uma ação, e se a norma for um imperativo positivo, o ilícito consiste numa omissão. No primeiro caso, diz-se que a norma não foi observada e, no segundo, que a norma não foi cumprida, havendo, portanto, duas formas distintas de violação – a inobservância de um imperativo negativo e o incumprimento de um imperativo positivo –, diferença que põe em relevo um critério de distinção entre o sistema científico e o normativo. Em um sistema científico, quando os fatos desmentem uma lei, gera-se a modificação das leis; já num sistema normativo, quando a ação não se adéqua à norma, orientamo-nos em modificar a ação, mantendo-se a norma (p. 131-133).
Bobbio argumenta que, para um ordenamento normativo nunca ser violado, ou bem deve ser perfeitamente racional ou bem as pessoas devem ser completamente passivas, condições impossíveis de se realizar, sendo que a segunda nem mesmo é desejável. Na hipótese da norma moral, caracteriza-se pelo tipo de sanção que provoca, a sanção moral ou interior, autoimposta pelo indivíduo, obrigando-o em consciência e, caso transgredida, gera o remorso e o senso de culpa (p. 134-136).
Afirma o autor que a sanção moral é pouco eficaz porque age, geralmente, sobre aqueles sujeitos que, de per si, já são moralmente elevados, porquanto aqueles que não respeitam a norma moral não sofrem quaisquer constrições anímicas. Por esse motivo, muitas vezes se reforçam as sanções morais com sanções religiosas, por serem externas (p. 137-138).
As sanções sociais, verdadeiro meio de controle social, são sanções externas que nos são impostas pelos membros do grupo social, em resposta à violação de uma norma social, uma norma que torna mais fácil o convívio em sociedade. As normas sociais nascem como costumes e o grupo social responde às suas violações com sanções eficazes, tais como, reprovação, isolamento, expulsão, linchamento etc. (p. 137-138).
A sanção jurídica, por seu turno, é típica de grupos que constituem ordenamentos jurídicos, sendo externa e institucionalizada. A norma jurídica institucionalizada é mais eficaz e regulamentada em todos os aspectos: conhece-se a sanção relacionada a quaisquer tipos de violações, a sua extensão ou medida e as pessoas encarregadas pela sua execução. Trata-se de uma sanção certa, proporcional e imparcial, razão pela qual se diz que a norma jurídica são normas de eficácia reforçada (p. 139-141).
Bobbio assevera que, na esfera do normativo com eficácia reforçada, existem vários níveis, embora mencione apenas dois: a autotutela, na qual o titular do direito de exercer a sanção é o mesmo titular do direito violado, e a heterotutela, na qual os dois titulares são pessoas diferentes. Nada obstante, o autor entende que apenas a heterotutela é capaz de garantir a ordem e a igualdade de tratamento entre as partes (p. 142).
Os não-sancionistas não têm a sanção como um elemento constitutivo do direito, sob vários argumentos, mormente o de que o ordenamento não se baseia no temor da sanção, mas na adesão espontânea à norma, pois uma ordem fundada apenas na força não seria eficaz. Bobbio refuta essa objeção afirmando que a adesão espontânea é necessária, mas não suficiente à manutenção do ordenamento. Admitindo-se que não haja consenso na obediência, persiste, portanto, a distinção entre a adesão livre e a adesão forçada (p.142-145).
Mais adiante, Bobbio enfrenta o tema das normas sem sanção: o fato de estas existirem evidenciaria que a sanção não é o caráter distintivo do direito. O autor rejeita mais essa objeção sustentando que não há dúvida de que as normas sem sanção sejam normas jurídicas, porque quando se fala de sanção não se refere a nenhuma norma singular, mas ao fato de que ordenamento como um todo tem caráter sancionador. A adesão de uma norma ao ordenamento faz referência à sua validade, enquanto a sanção delimita a sua eficácia, motivo pelo qual se afirma que uma norma pode ser válida mesmo sem ser eficaz (p. 146-147).
Ademais, há dois casos típicos de normas sem sanção: (i) normas cuja sanção se mostra inútil – em decorrência do senso de oportunidade e de justiça, resultando em adesão espontânea; e (ii) normas postas para autoridades muito elevadas na hierarquia das normas – de modo a tornar impossível ou pouco eficiente a aplicação de uma sanção, em razão de elas próprias deterem a produção da força coercitiva. Afora tais situações, uma ordem é tanto mais jurídica quanto mais o mecanismo sancionatório funciona (p. 147-150).
Uma terceira objeção que se coloca é a dos ordenamentos sem sanção: se há ordenamentos jurídicos que não preveem sanção, então não é a sanção a determinar a juridicidade de uma norma. A correlação entre direito e sanção somente era válida quando se reconhecia como ordenamento jurídico apenas o estatal; todavia há outros ordenamentos fora do âmbito estatal, nos quais se encontram processos sancionatórios (p. 150-151).
Um dos argumentos dos não-sancionistas, por exemplo, é o de que o direito internacional não deveria ser considerado jurídico, porque não prevê sanções. Na realidade, é uma questão de palavras, dependendo do que se entende por “direito”. Em outros termos: não é verdade que no direito internacional não haja sanções, pois a guerra assume a função sancionatória quando ocorrem violações. Por conseguinte, o direito internacional não deixa de ser um ordenamento jurídico, porquanto apresenta uma sanção regulada. A diferença entre o ordenamento estatal e o internacional ocorre no modo pelo qual são regulados: naquele, por meio da heterotutela; neste, por intermédio da autotutela (p. 152-153).
No último tópico deste capítulo, Bobbio aborda uma quarta objeção, referente às normas em cadeia e ao processo ao infinito. Assevera Thon, pelas palavras do autor, que em todos os ordenamentos não se pode remeter ao infinito a norma sancionadora, pois caso se admita que somente seja jurídica a norma que é sancionada, em escala ascendente todas as normas do ordenamento deveriam sê-lo, daí porque existindo, na instância mais alta, norma não sancionada, disso decorre que a sanção não constitui elemento distintivo do ordenamento jurídico (p. 153-154).
Bobbio rechaça essa objeção, pois se sanciona o tipo que deve ser punido e não a própria norma. Ademais, o fato de que a norma não sancionada seja o vértice do ordenamento é a consequência da inversão da relação força/direito. Enfim, deve-se considerar que a adesão espontânea é fundamental em um ordenamento e essa é a justificação para as normas superiores do sistema: “[...] as normas não-sancionadas representam aquele mínimo de consenso sem o qual nenhum Estado poderia sobreviver” (p. 155-157).
VI.   Classificação das Normas Jurídicas (p. 159-170)
Segundo Bobbio, há muitas distinções possíveis entre as normas jurídicas, entre os quais: (i) conteúdo das normas – normas materiais e processuais ou entre normas de comportamento e de organização; (ii) modo como as normas são estabelecidas – normas consuetudinárias e legislativas; (iii) destinatários – normas primárias e secundárias; (iv) natureza e estrutura da sociedade regulada: normas de direito estatal, canônico, internacional etc. No entanto, o autor apega-se ao critério formal, por se relacionar exclusivamente à estrutura lógica das proposições prescritivas (p. 159-160).
Para desenvolver seu estudo, Bobbio estendeu às proposições normativas algumas distinções referentes às proposições descritivas. A primeira delas é entre proposições universais e proposições singulares: (i) universais: são proposições em que o sujeito representa uma classe composta por vários membros, v.g., “os homens são mortais”; (ii) singulares: são aquelas em o sujeito representa um sujeito singular, v.g., “Sócrates é mortal”. De modo similar, há também normas jurídicas universais e singulares (p. 160).
As proposições prescritivas e, portanto, as normas jurídicas, são constituídas por dois elementos: o sujeito a quem a norma se dirige, ou seja, o destinatário, e o objeto da prescrição, isto é, a ação prescritiva. Em razão de que o destinatário da ação pode se apresentar de modo universal ou singular, distinguem-se quatro tipos de normas: com destinatário universal, com destinatário singular, com ação universal e com ação singular (p. 160-161).
Quanto à doutrina da generalidade e abstração, mostra-se imprecisa, porque não especifica se os dois termos devem ser entendidos como sinônimos ou não, além de ser insuficiente ou falaciosa, uma vez que, ao colocar os precitados requisitos, leva a crer que não existem normas jurídicas individuais e concretas (p. 162).
Caso se admita que em um determinado sistema de normas torna-se necessária a previsão de sua violação, deve-se admitir, do mesmo modo, que ao lado de normas gerais e abstratas, existam normas particulares e concretas. Diz-se então geral, a norma com destinatário universal; abstrata, a norma com ação universal; individual, a norma com destinatário singular; e concreta, a norma com ação singular (p. 162).
Considerando que a palavra norma faz pensar em regulação contínua de uma ação, seria mais correto usá-la para a norma com ação universal, passando a chamar as normas com ação singular, em vez de normas concretas, por ordens. De modo similar, em razão de o comando ser uma função direta de prescrição a um sujeito singular, para executar determinada ação, as normas individuais podem ser chamadas comandos (p. 162-163).
Bobbio observa que generalidade e abstração são características não da norma enquanto tal, mas enquanto dever-ser, ou seja, não a norma jurídica real, mas aquela ideal, justa, inspirada nos princípios de igualdade e certeza. Nesse contexto, a generalidade da norma seria a garantia da igualdade, e a abstração a garantia de sua certeza. Como corolário, o autor afirma que a teoria da generalidade e da abstração são objetivos ideais do ordenamento jurídico, embora de difícil materialização na prática (p. 164-165).
Uma outra distinção tradicional da lógica clássica, que pode ser aplicada às proposições prescritivas, é aquela entre proposições positivas e negativas: (i) uma prescrição afirmativa obriga a se fazer algo, tratando-se de um comando – “todos devem fazer X”; (ii) uma prescrição negativa proíbe de se fazer algo, tratando-se de uma proibição – “ninguém deve fazer X”; (iii) uma prescrição que isenta alguém de fazer alguma coisa, não lhe permitindo fazê-la, é uma permissiva negativa – “nem todos devem fazer X”; e (iv) uma prescrição que isenta alguém de não fazer algo, permitindo-lhe fazê-la, é uma permissiva positiva – “nem todos devem não fazer X” (p. 166).
Do quanto sumariado, resulta que as prescritivas afirmativas e aquelas negativas, ou seja, os comandos e proibições, são contrários; as permissivas afirmativas e aquelas negativas são subcontrários; comandos e permissões negativos, proibições e permissões positivas são contraditórios entre si (p. 168).
Por fim, há a distinção entre norma categórica e hipotética. Enquanto a norma categórica estabelece uma ação que deve ser cumprida, a norma hipotética estabelece que uma ação deve ser cumprida, caso se verifique certa condição. Outra distinção é aquela entre normas instrumentais – em que a ação por elas prescrita é tomada como um meio para se alcançar um objetivo (“se você quiser Y, deve X”) –, e normas finais – em que a ação prescrita tem valor de fim (“se você não quiser Y, deve X”). Caso se combinem as normas instrumentais e finais com as normas positivas e negativas, obtém-se quatro tipos de normas hipotéticas: (i) “se você quiser Y, deve X”; (ii) “se você quiser Y, não deve X; (iii) “se você não quiser Y, deve X”; e (iv) “se você não quiser Y, não deve X” (p. 169-170).

(Para ler a Parte IV, acesse aqui)


&

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Parte II)

(Para ler a Parte I, acesse aqui)
(Continuação da “Teoria da Norma Jurídica”)

III.    As Proposições Prescritivas (p. 49-84)
O autor inicia este capítulo observando que considerará a norma em seu ponto de vista formal, ou melhor, em sua estrutura, independentemente de seu conteúdo. Assim, seu estudo atenta para a norma em sua estrutura lógico-linguística (p. 49).
Em seu estudo formal das normas jurídicas, Bobbio analisa três diferentes espécies de formalismos, a cuidarem de problemas diversos: (i) ético: procura responder à pergunta sobre o que é a justiça; (ii) jurídico: ambiciona definir o que é o direito; e (iii) científico: investiga como deve se comportar a ciência jurídica e o trabalho dos juristas. Cada um desses formalismos pressupõe a ocorrência do outro, sendo todos necessários, conclui Bobbio, para um conhecimento pleno da experiência jurídica (p. 50-51).
Passando à análise formal da norma, o autor a define como uma proposição, entendida esta como um conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade. Um código ou uma constituição nada mais são do que um conjunto de proposições pertencentes à categoria geral das proposições prescritivas (p. 52).
Diz Bobbio que a sua linha de investigação desenvolver-se-á em quatro fases, a constituírem o objeto de cada um dos capítulos subsequentes da obra sob comento: (i) estudo das proposições prescritivas e sua distinção dos outros tipos de proposições; (ii) exame e crítica das principais teorias sustentadas sobre a estrutura formal da norma jurídica; (iii) estudo dos elementos específicos da norma jurídica como prescrição; e (iv) classificação das prescrições jurídicas (p. 52).
A forma mais comum de uma proposição é um juízo, ou seja, uma proposição composta por um sujeito e um predicado, do tipo “S é P”. Distintamente, o enunciado nada mais é do que a forma gramatical e linguística pela qual um dado significado é expresso. Logo, uma norma é uma proposição prescritiva não necessariamente redutível a um juízo, podendo ser expressa por diversos enunciados. Segue daí que uma proposição pode ser verdadeira ou falsa, mas uma norma jurídica não se reveste de tais atributos, senão de validade ou invalidade, ou, quando muito, de justiça ou injustiça (p. 53-54).
Bobbio adota dois critérios para distinguir as proposições: a forma gramatical, atenta ao modo pelo qual a proposição é expressa, e a função, que diz respeito ao fim a que se propõe alcançar aquele que a pronuncia. Relativamente à forma gramatical, as proposições podem ser declarativas, interrogativas, imperativas e exclamativas. Quanto à função, podem ser asserções, perguntas, comandos e exclamações. Destacando a função de comando, Bobbio a associa à pretensão de influir no comportamento alheio, para modificá-lo. Por esse motivo, a forma imperativa é a forma preferencial dos comandos, ainda que a mesma forma gramatical possa exprimir diversas funções (p. 54-57).
A linguagem detém, conforme o autor, três funções distintas, que quase sempre se manifestam mescladas no discurso: (i) descritiva; (ii) expressiva; e (iii) prescritiva. Destaque-se que a maioria das normas jurídicas modula-se sob a forma de proposições prescritivas, de comandos expressos no mais das vezes de forma declarativa (p. 57-59).
Bobbio passa a enfrentar, então, o problema lógico da distinção entre proposições descritivas e proposições prescritivas, propondo três características básicas que as diferenciam: a função, o comportamento do destinatário e o critério de valoração. Enquanto as proposições descritivas têm a função de informar outrem, sendo prova de sua aceitação a crença, imputando-se-lhes os adjetivos de verdadeiras ou falsas, as proposições prescritivas objetivam modificar o comportamento de outrem, sendo prova de sua aceitação a execução, podendo ser válidas ou inválidas, justas ou injustas (p. 59-61).
O autor acrescenta, ainda, outros bons comentários: (i) o critério de valoração empregado para se aceitar ou rejeitar uma prescrição descritiva é a sua correspondência com os fatos (critério de verificação empírica) ou com postulados auto-evidentes (critério de verificação racional); e (ii) o critério de valoração empregado para se aceitar ou rejeitar uma proposição prescritiva é a sua correspondência com os valores últimos (critério de justificação material) ou a derivação das fontes primárias de produção normativa (critério de justificação formal) (p. 61-62).
Frente à tese reducionista segundo a qual as prescrições podem ser reduzidas a descrições capazes de definir o que acontecerá depois de um determinado comportamento, Bobbio faz as seguintes objeções: (i) fundamenta-se no princípio de que sempre há uma sanção prevista pela norma, o que nem sempre é verdadeiro; (ii) ainda que a norma expresse uma sanção, o desconforto com ela não pode ser avaliado antecipadamente, em virtude de que sua valoração somente é passível de apuração em cada caso concreto; e (iii) a sanção é, em si, uma obrigação, pois quem está no poder deve necessariamente aplicá-la (p. 63-66).
De modo similar, o autor refuta a tese reducionista de que as proposições prescritivas podem ser reduzidas a expressões, tornando explícita a vontade de quem emite o comando, com três argumentos: (i) ainda que se altere a forma da norma de prescritiva para expressiva, modifica-se apenas a forma, pois o escopo é sempre fazer alguma coisa a alguém, eis que a função da prescrição não muda; (ii) a participação emotiva do emitente do comando, tema caro à forma expressiva, mostra-se como uma condição supérflua; e (iii) a lei perdura no tempo e, no curso de sua existência, separa-se da vontade do legislador, continuando a ter sua função de controle, independentemente das avaliações que lhe deram origem (p. 67-69).
Voltando-se mais detidamente às proposições prescritivas (regras jurídicas, morais etc.), Bobbio, reconhecendo a existência de muitos outros, seleciona três critérios que lhe parecem relevantes: (i) de acordo com a relação entre sujeito ativo e passivo da prescrição; (ii) de acordo com a forma; e (iii) de acordo com a força obrigante (p. 69).
Com relação ao primeiro critério, a relacionar os sujeitos ativo e passivo, distinguem-se os imperativos autônomos dos imperativos heterônomos. Denominam-se autônomos aqueles imperativos nos quais a mesma pessoa é quem estabelece a norma e quem a executa. Chamam-se heterônomos aqueles nos quais quem dita a norma e quem a executa são duas pessoas distintas. Essa distinção, introduzida por Kant em Fundamentos da Metafísica dos Costumes, assegura que a moral se expressa em imperativos autônomos e que o direito o faz por imperativos heterônomos ou, em outras palavras, que quando nos comportamos moralmente não obedecemos a ninguém distinto de nós mesmos, mas quando atuamos juridicamente obedecemos às leis que, pelo contrário, nos são impostos por outros (p. 69-72).
Quanto à forma, distinguem-se os comandos em imperativos categóricos e os imperativos hipotéticos. Os primeiros são aqueles que prescrevem uma boa ação em si mesma, em sentido absoluto, que deve ser cumprida incondicionalmente, tal como não se deve mentir. Distintamente, os imperativos ou comandos hipotéticos prescrevem uma boa ação para se atingir um fim, ou seja, deve-se cumpri-la condicionalmente sob a hipótese de se desejar atingir esse fim. Segundo Kant, os imperativos categóricos seriam próprios da moral, podendo-se chamar, portanto, de normas éticas (p. 72-75).
Outro critério de distinção, no âmbito das proposições prescritivas, relaciona-se à força vinculante. Diferentemente dos imperativos ou comandos, que têm maior força vinculante, porquanto são prescrições obrigatórias, existem proposições que não buscam determinar o comportamento alheio, muito embora tenham relevância no mundo do direito: os conselhos e as instâncias (p. 76).
Para Bobbio, a distinção entre os comandos e conselhos pode servir para diferenciar direito da moral: enquanto o direito obriga, a moral apenas aconselha. Para Hobbes, todavia, os argumentos para distingui-los são, substancialmente, cinco: (i) em relação ao sujeito ativo; (ii) em relação ao conteúdo; (iii) em relação ao destinatário; (iv) em relação ao fim; e (v) em relação às consequências (p. 77-78). Bobbio rejeita os argumentos (i) e (iv), pois, respectivamente, quem aconselha também se reveste de autoridade, além de que os comandos não ocorrem apenas no interesse do comandado (p. 78-79).
No âmbito do emprego de conselhos no direito, o autor começa por afirmar que, em qualquer ordenamento, ao lado de órgãos deliberativos, há órgãos consultivos. Enquanto os primeiros atentam para os atos de vontade, pois se reportam a comandos ou ordens, os segundos, enquanto exteriorizados sob a forma opinativa ou de conselhos, classificam-se como atos de representação (p. 80).
Os pareceres ou opiniões não são vinculativos, ainda que digam respeito a medidas específicas a serem adotadas, porquanto objetivam apresentar elementos suficientes acerca de determinada questão, arregimentando os conhecimentos para a ciência de quem vai tomar a decisão. Observe-se, por exemplo, que os organismos internacionais não ordenam ou emitem comandos, mas apenas formulam recomendações (p. 80-81).
Bobbio estabelece também uma distinção entre conselhos e exortações: enquanto os conselhos tentam mudar o comportamento dos outros por meio de bons argumentos e razões, as exortações buscam fazer o mesmo pelo emprego de motivos sentimentais (p. 82).
Como último tópico deste capítulo, detalham-se as distinções entre comandos e instâncias, entendidas estas como a ação de fazer alguém agir em nosso benefício, sem constrangê-la. Sob a instância não se está obrigado como no comando, sendo o interesse apenas de quem a exprime, diversamente do conselho. Ademais, a instância pode ser inspirada num módulo de tipo informativo ou num módulo de tipo emotivo, neste caso, constituindo as invocações ou súplicas (p. 84).
IV.   As Prescrições e o Direito (p. 85-124)
A teoria da imperatividade do direito ou das normas jurídicas como comandos postula que as proposições componentes de um ordenamento jurídico pertencem à esfera da linguagem prescritiva, pois, essencialmente, ordenam, vetam, permitem ou punem. Daí a razão pela qual a imperatividade é elevada a caráter constitutivo do direito (p. 85).
Bobbio afirma que a formulação da doutrina imperativista exclusiva teria sido obra do jurista alemão August Thon, em sua obra Norma giuridica e diritto soggestivo (1878), para quem: “Todo o direito de uma sociedade não é senão um conjunto de imperativos ligados tão estreitamente entre si que a desobediência a uns constitui frequentemente o pressuposto daquilo que é comandado pelos outros” (p. 86).
O mencionado perfil exclusivista decorreria do fato de Thon vislumbrar que a teoria imperativista caminha, para maior parte dos seus partidários, pari passu com a teoria estatista – normas jurídicas somente são aquelas emanadas do Estado – e com a teoria coativista – a coação é a característica fundamental da norma jurídica –, pelo que, não sendo partidário dessas caracterizações, procurou formular sua doutrina livre de compromissos com tais teorias (p. 86-87).
Após mencionar obras jurídicas de seus compatriotas Francesco Carnelutti e Giorgio Del Vecchio, Bobbio afirma que, a considerar os três requisitos habituais da norma jurídica – a imperatividade, o estatismo e a coatividade –, August Thon aceita apenas a imperatividade, Del Vecchio acolhe a imperatividade e o estatismo, mas Carnelutti aceita os três (p. 87-88).
Passando à categorização dos imperativos, o autor os classifica como imperativos positivos, ou seja, em comandos de fazer, e imperativos negativos, isto é, em comandos de não fazer (proibições) (p. 88-89).
Bobbio resgata as contribuições de Christianus Thomasius, que distinguia a moral do direito partindo da ideia de que a moral comanda e o direito proíbe. Bobbio rejeita essa teoria, pois se mostra “[...] uma concepção demasiado restrita da função do direito e do Estado”. Diz ele que a função do direito não se restringe a possibilitar a coexistência das liberdades externas por meio de obrigações negativas, mas também permitir a cooperação recíproca dos homens em convívio, o que requer a imposição de obrigações positivas (p. 91).
Bobbio passa a outra distinção, entre comandos e imperativos jurídicos, segundo a qual as normas jurídicas pertenceriam à segunda categoria, e não à primeira. Essa tese foi sustentada pelo jurista sueco Karl Olivecrona, em sua obra Law as Fact (1939). Para ele, considerando que um comando pressupõe uma pessoa que comanda e um destinatário desse comando, na lei faltaria a pessoa que comanda, sendo, portanto, um imperativo impessoal. Bobbio julga a presente tese também inconvincente, pois lhe parece difícil demonstrar que todos os imperativos jurídicos sejam impessoais, além de que estes existem em outros sistemas normativos que não os jurídicos, nos quais a regra é a impessoalidade (p. 93-94).
Mais à frente, Bobbio passa a outro exemplo de teoria imperativista exclusiva, qual seja, a do direito como norma técnica, de Adolfo Ravà, para quem o direito é um conjunto de imperativos que, conforme Kant, podem ser denominados por normas técnicas, verdadeiros imperativos hipotéticos – e não categóricos –, pois: (i) as normas jurídicas atribuem tanto as obrigações quanto os direitos subjetivos; (ii) o direito é coercível; e (iii) em todo ordenamento jurídico existem normas que ordenam meios para se atingir um fim, e não ações boas em si mesmas, assentadas sob genuíno tecnicismo jurídico (p. 94-96).
Bobbio passa, então, a analisar a temática acerca dos destinatários da norma jurídica. Para Saint Romano, o ordenamento jurídico não tem destinatários. Para Jhering, os destinatários da norma jurídica são “[...] os órgãos judiciários encarregados de exercer o poder coativo”. Para Allorio, “[...] não há lugar para nenhuma norma que não seja destinada a órgãos do Estado”. Bobbio disserta, ainda, sobre a particular contribuição de Kelsen, que vislumbrava duas espécies de normas: as normas primárias, coativas ou sancionadoras, destinadas ao Estado, e normas secundárias, destinadas aos cidadãos, uma vez que ordenam o comportamento que evita a sanção (p. 100-102).
Importa frisar, neste momento, que Kelsen, de início, definia como norma jurídica primária aquela que estipulava a sanção, ao passo que aquela que definia a conduta capaz de evitar a coação, somente poderia valer como norma jurídica secundária (KELSEN, 1998, p. 86). Posteriormente, reviu o seu ponto de vista, e inverteu as definições anteriores, passando a norma primária ao lugar que, anteriormente, pertencia à secundária e vice-versa (KELSEN, 1986, p. 181 e ss).
Bobbio refuta muitos dos argumentos anteriores com as seguintes objeções: (i) num ordenamento jurídico há normas tanto dirigidas aos órgãos judiciais quanto aos cidadãos; (ii) afirmar que as normas primárias não são jurídicas não corresponde à verdade, quando se considera a sua juridicidade sob o enfoque de validade; (iii) há normas terciárias e, sob tal perspectiva, o poder sancionatório poderia ser a estas remetido, o que descaracterizaria a adjetivação de normas secundárias àquelas normas que lhes fossem anteriores na escala ascendente; tampouco se resolveria o problema restringindo a resposta à norma fundamental enquanto única norma; e (iii) dizer que o ordenamento jurídico possui eficácia reforçada não significa afirmar que as normas primárias não sejam qualificadas como tal, já que contam com eficácia (p. 103-104).
Progredindo em direção às teorias mistas, Bobbio afirma que elas admitem, tal como a teoria permissiva parcial, que, em todo ordenamento jurídico, há proposições imperativas, porém negam que todas sejam imperativas ou redutíveis a imperativas. Desse modo, ao lado das normas imperativas – a impor deveres –, há outras normas permissivas, que atribuem faculdades ou permissões (p. 104-105).
As normas jurídicas podem, desse modo, ser imperativas ou permissivas. As normas imperativas, por sua vez, podem ser positivas – enquanto comandos para ações obrigatórias de fazer –, ou negativas – como os comandos para ações proibitórias de não fazer. Idem para as normas permissivas, as quais também podem ser positivas – a configurarem permissões de ações de fazer –, ou negativas – a permitirem ações facultativas de não fazer. Acrescente-se que, para haver uma norma permissiva, faz-se necessária a existência prévia de uma norma imperativa, e que aquela preveja uma exceção desta (p. 105-107).
Adiante, o autor passa a traçar uma espécie de quadro evolutivo do sistema normativo. Partindo-se da hipótese abstrata em que ainda não haja um sistema normativo, revela-se uma situação em que tudo é lícito. Nesse estado de natureza, hobbesiano, ocorre absoluta ausência de normas imperativas, já que não existem deveres, mas apenas direitos. Com a passagem do estado de natureza para o estado civil, criam-se normas imperativas, primeiro negativas e depois positivas, gerando uma nova situação tripartite, com três esferas: esfera do proibido, esfera do lícito e esfera do comandado (p. 108-109).
Na hipótese em que todo comportamento seja ou proibido ou comandado e nenhum seja lícito, ter-se-ia a condição de que tudo é obrigatório, típica dos estados totalitários. A realidade histórica, todavia, conhece apenas situações em que a esfera do lícito convive com a do obrigatório, distante das duas hipóteses extremas anteriores, quais sejam, a de supressão de toda liberdade natural ou a de anarquia pela total ausência de Estado (p. 109).
Assim, reconhece-se o Estado liberal, para o qual vale a máxima de que tudo é permitido, exceto o que é proibido, em contraposição ao Estado socialista, onde tudo é proibido, exceto o que é permitido. Bem observa Sombart que “[...] no primeiro a esfera do permitido prevalece sobre a do obrigatório; no segundo, ao contrário, a esfera do obrigatório prevalece sobre a do permitido” (p. 110-111).
Outra teoria mista é a das regras finais de Brunetti, normas que, segundo ele, não seriam imperativas, pois não impõem uma ação como boa em si mesma, mas boa para atingir um certo fim, tal como na teoria do direito como norma técnica, de Ravà, com a diferença de que, nesta, a meta é a definição do direito em seu complexo e, naquela, o objetivo é a caracterização de certas normas jurídicas em confronto com outras (p. 112-113).
Quanto às teorias negativas, negam que as normas jurídicas sejam imperativas. Um dos primeiros autores a divulgar essa tese foi Zietelmann, para quem as proposições jurídicas são assertivas – não comandos –, genuínos juízos hipotéticos expressos sob a forma “se ..., tu deves”, ou de outro modo, verdadeiras asserções sobre relações já existentes (p. 115-116).
Para Kelsen, a norma moral constitui um comando e a norma jurídica, ao contrário, constitui um juízo hipotético, a relação ou nexo específico de um fato condicionante – o ilícito – com uma consequência condicionada – a sanção –, sob a seguinte fórmula: “Se é A (ilícito), deve ser B (sanção)” (p. 118-119).
Bobbio entende que a teoria do juízo hipotético não é uma teoria contrária à tese da norma jurídica enquanto prescrição, porque o juízo em que se expressa a norma é sempre um juízo hipotético prescritivo – atribui-se a uma determinada ação (meio) uma consequência (fim) – e não descritivo, isto é, um juízo que na sua segunda parte contém uma prescrição do tipo “...deve ser B” (p. 119).
Outra formulação da teoria antimperativista é a que define as normas jurídicas não como juízos hipotéticos, mas como juízos de valor, verdadeiros “[...] cânones que valoram um comportamento do indivíduo na vida em sociedade”. Giuliano e Perassi são dois dos principais partidários dessa teoria (p. 120).
Bobbio comenta que quando os autores anteriores afirmam que a norma é a valorização de certos fatos, querem dizer que a norma jurídica qualifica certos fatos como jurídicos, isto é, coliga a certos fatos determinadas consequências jurídicas. A mais importante e frequente dessas consequências jurídicas é o surgimento de uma obrigação ou sobre a pessoa dos consociados, caso se trate de uma norma primária, ou sobre os juízes, no caso de normas secundárias (p. 121).
Ao final deste capítulo, Bobbio argumenta que as disputas entre imperativistas e não-imperativistas apresentou-se como uma disputa quanto ao gênero, quando, em verdade, reportam-se às espécies, vale dizer, aos diversos tipos de proposições prescritivas, enquanto palpavelmente distintas das descritivas (p. 124).

(Para ler a Parte III, acesse aqui)


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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Parte I)

(Para ler a nota de aviso, acesse aqui)

RESENHA DA “TEORIA GERAL DO DIREITO” DE NORBERTO BOBBIO
1     Referência
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Tradução de: Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007 (Justiça e Direito).
2    Apresentação do Autor e de suas Obras [1]
Norberto Bobbio - antes de tudo, um mestre da filosofia política europeia - foi professor das Universidades de Siena e Pádua, tendo passado, a partir de 1948, a catedrático da Universidade de Turim. Nasceu em 18/10/1909, em Turim (Itália) e faleceu na mesma cidade, em 9/1/2004. Licenciado em Direito e Filosofia, dedicou-se à carreira universitária, com docência no âmbito da Filosofia do Direito e da Filosofia Política. Tais matérias ocuparam grande parte de sua extensa bibliografia, que sempre atentou para os problemas da vida cultural e ideológica de seu tempo.
A temática de seus estudos é muito ampla, sendo a maior parte de suas obras compêndios de ensaios ou de apontamentos universitários, abarcando assuntos distintos, como a filosofia política, a sociologia jurídica, a teoria geral do direito, a filosofia analítica, o direito internacional, a teoria da justiça, os direitos humanos e a história da filosofia.
Dentro da variada gama de estudos jurídicos, destaca Bobbio sua predileção pelos problemas da teoria geral do direito, aficção procedente da leitura de Carnelutti. É decisiva, contudo, a influência kelseniana, de acordo com a qual desenvolve uma teoria normativista e formalista. A tal matéria dedicou grande quantidade de ensaios, destacando-se os apontamentos correspondentes a dois cursos acadêmicos, publicados inicialmente com as denominações de Teoria da Norma Jurídica, em 1958, e de Teoria do Ordenamento Jurídico, em 1960. Essas duas publicações, por sua conexão e continuidade, seriam compiladas posteriormente em um só volume, com a denominação de Teoria Geral do Direito, objeto desta resenha.
3    Síntese das Principais Ideias [2]
PREFÁCIO (p. IX-X)
Bobbio observa que, acatando sugestões de seu editor e de críticos, resolveu republicar, em um só volume e sob o título em apreço, dois cursos que houvera ministrado na Universidade de Turim, nos anos acadêmicos de 1957-58 e 1959-60, enquanto professor de filosofia do direito, quais sejam, Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico. Tratam eles da síntese dos estudos do autor, relativa à teoria do direito, durante os quase vinte anos que vão do primeiro pó-guerra até aproximadamente 1968 (p. IX-X).
Bobbio reconhece a inspiração nitidamente kelseniana de seus textos, ainda que defira tributos aos pensadores italianos da doutrina da instituição, segundo os quais a definição do direito não há de ser buscada, como acontecia tradicionalmente, nos caracteres distintivos da norma, mas nos do ordenamento (p. XI).
Por fim, como a antecipar possíveis vislumbres de pacificação entre aspectos teóricos muitas vezes antitéticos, o autor observa que adotará “[...] uma tendência constante a evitar teses extremistas, que exibem originalidade barata, e as reducionistas, que se omitem de enxergar todos os lados da questão” (p. XII) [3].
PRIMEIRA PARTE − TEORIA DA NORMA JURÍDICA (p. 1-170)
I.      O Direito como Regra de Conduta (p. 3-24)
Como dispõe Bobbio, o direito pode ser considerado como um conjunto de normas ou de regras de conduta. Por conseguinte, “[...] a experiência jurídica é uma experiência normativa” (itálico do autor) (p. 3).
As normas jurídicas são apenas parte de todas as normas ou regras de conduta. Há também norma de natureza religiosa, moral, social etc. Sendo assim, regras são “[...] proposições com a finalidade de influenciar o comportamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir a ação dos indivíduos e dos grupos mais para certos objetivos que para outros” (p. 6).
Ao regularem relações, os diversos tipos de regras configuram distintos planos de atuação: (i) as regras morais, no âmbito da relação do homem consigo mesmo; (ii) os preceitos religiosos, na relação do homem com as divindades; e (iii) as normas jurídicas, quando as relações dizem respeito às interações humanos (p. 6-7).
Segundo Bobbio, há, pelo menos, duas teorias jurídicas diferentes da teoria jurídica normativa: a teoria do direito como instituição e teoria do direito como relação. Quanto à primeira, Santi Romano afirma que o conceito de direito deve conter os seguintes elementos essenciais (p. 8-9): (a) deve reconduzir ao conceito de sociedade (ubi societas ibi ius / ubi ius ibi societas); (b) deve conter a ideia de ordem social; e (c) antes de ser norma, deve ser organização. Essa sociedade ordenada e organizada é o que Santi Romano chama instituição: para que ela exista, o elemento fundamental é a organização. Bobbio replica que, apesar de se poder dizer que o direito pressupõe uma sociedade, não é verdade que toda sociedade existente tem natureza jurídica: não se pode dizer que ubi societas ibi ius (p. 10).
O autor tece algumas outras críticas à teoria institucionalista: (i) “[...] não há nenhuma razão que induza a excluir que a teoria normativa também possa ser compatível com o pluralismo jurídico”, haja vista que não se há de restringir a palavra norma apenas às normas do Estado (p. 14); e (ii) a afirmação de que antes de ser norma o direito é instituição é discutível, pois não há organização sem normas, escritas ou não-escritas (p. 15).
Bobbio tece elogios à teoria da instituição, no sentido de que graças a ela a teoria geral do direito evoluiu de teoria das normas à teoria do ordenamento, assumindo uma nova ordem de problemas, ligados à formação, coordenação e integração de um sistema normativo (p. 16).
Adentrando a seara da teoria da relação, particularmente no da teoria da relação intersubjetiva, afirma-se que a relação entre dois indivíduos é uma expressão jurídica, uma vez assente na ideia, originária do direito natural, de Estado como um contrato entre os homens. Segundo os institucionalistas, todavia, uma simples relação entre dois sujeitos não pode constituir direito, porquanto é “[...] necessário que esta relação esteja inserida numa série mais ampla e complexa de relações constituintes, isto é, a instituição (p. 17).
A teoria kantiana do direito, por sua vez, entende que uma relação jurídica ocorre por acordo entre vontades livres de indivíduos. Kant classifica as relações humanas em quatro modalidades: (i) um sujeito tem direitos e deveres e outro tem apenas direitos e não deveres (relação com as divindades); (2) um sujeito tem direitos e deveres e outro tem apenas deveres e não direitos (relação de escravidão); (3) um sujeito tem direitos e deveres e outro não tem nem direito nem deveres (relação com animais); e (4) um sujeito tem direitos e deveres e outro também tem direitos e deveres, o que, entre as modalidades mencionadas, retrata a lídima relação jurídica entre os homens (p. 18).
Bobbio cita, ainda, Del Vecchio, para quem a mesma ação pode ser avaliada sob uma perspectiva moral − em cotejo com a mesma pessoa que executa a ação − ou sob uma perspectiva jurídica, vale dizer, em relação às pessoas a quem a ação é dirigida, o que permite delimitar o direito “[...] como um conjunto de relações entre sujeitos, de modo que se um tem o poder de realizar certa ação, o outro tem o dever de não impedi-la” (p. 18-19).
Depois de sumariar as ideias de Alessandro Levi, em sua Teoria generale del diritto, Bobbio as critica por pretender reduzir o direito a uma mera relação, e não a uma relação regulada. Ao fim, o autor afirma que a teoria da relação jurídica acaba por desembocar, tal como a teoria da instituição, na teoria normativa (p. 21).
Essas três teorias, segundo Bobbio, não se excluem reciprocamente, senão se integram utilmente uma com a outra. Sintetizando os três aspectos acentuados em cada uma delas − a organização, a relação e a norma −, o autor sobreleva a importância desta última: “A intersubjetividade e a organização são condições necessárias para a formação de uma ordem jurídica; o aspecto normativo é condição necessária e suficiente” (itálico do autor) (p. 24).
II.     Justiça, Validade e Eficácia (p. 25-48)
Diante de uma norma jurídica, pode ser colocada uma tríplice ordem de problemas: 1) se ela é justa ou injusta; 2) se ela é válida ou inválida; 3) se ela é eficaz ou ineficaz. “Trata-se dos três problemas distintos da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica” (itálicos do autor) (p. 25). Esses três critérios de valoração da norma originam três problemas distintos, independentes entre si, no sentido de que a justiça não depende nem da validade nem da eficácia, e a eficácia não depende nem da justiça nem da validade (p. 28).
O critério de justiça, a delimitar o problema deontológico do direito, procura avaliar a aptidão da norma para realizar os valores históricos que inspiram o ordenamento jurídico. O critério de validade, a configurar o problema ontológico do direito, busca apurar a existência da norma, independentemente de ser considerada justa ou injusta. Finalmente, o critério de eficácia, ínsito ao problema fenomenológico do direito, diz respeito à observância da norma pelos seus destinatários e, em caso de violação, a imposição de meios coercitivos pela autoridade que a evocou (p. 26-28).
Sob tal esquema de Bobbio, surgem seis proposições que derivam das formulações anteriores (p. 28-31): (i) uma norma pode ser válida sem ser eficaz; (ii) uma norma pode ser válida sem ser justa; (iii) uma norma pode ser eficaz sem ser válida; (iv) uma norma pode ser eficaz sem ser justa; (v) uma norma pode ser justa sem ser válida; e (vi) uma norma pode ser justa sem ser eficaz.
Bobbio exercita ainda outra caracterização dessas três dimensões do direito: (i) a filosofia do direito, sob o enfoque da justiça, ao investigar a correspondência da norma com os valores sociais, passaria a delimitar o que comumente se denomina teoria da justiça; (ii) a filosofia do direito, sob o enfoque da validade, ao investigar as características específicas do ordenamento, constituiria a chamada teoria geral do direito; e (iii) a filosofia do direito, sob o enfoque da eficácia, ao investigar o comportamento efetivo dos homens em sociedade, sob a égide da normatividade jurídica, constituiria a denominada sociologia jurídica (p. 31-33).
Ignorar qualquer destes três níveis da normatividade jurídica − validade, eficácia e justiça −, como esquecer quaisquer das três dimensões do mundo jurídico − norma, fato social e valor −, significa um exaurimento do direito, a recaída nas posturas unilaterais do formalismo, do sociologismo ou do jusnaturalismo radical ou exacerbado. Como diz Bobbio, esse é o “[...] erro do ‘reducionismo’, que leva a eliminar ou no mínimo a ofuscar um dos três elementos constitutivos da experiência jurídica e, portanto, a mutila” (p. 34).
As manifestações históricas e atuais dessa unilateralidade reducionista abarcariam assim, segundo Bobbio, três atitudes diferentes: (i) redução da validade à justiça; (ii) redução da justiça à validade; e (ii) redução da validade à eficácia (p. 34).
Bobbio, atentando para o trinômio justiça, validade e eficácia, passa a empreender minudente análise acerca das três vertentes que possuem como objeto preferencial de sua análise cada uma dessas dimensões do direito, a saber, o direito natural (jusnaturalismo), o positivismo jurídico (juspositivismo) e o realismo jurídico, respectivamente.
No que pertine ao direito natural, o autor objeta “[...] que o direito corresponda à justiça é uma exigência ou, se preferirmos, um ideal a ser alcançado que ninguém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato (p. 35-56)”. Distinções entre o justo e o injusto não são universais, como se verdade matemática demonstrável fossem.
Com respeito ao positivismo, como exposto, equivoca-se ao reduzir a justiça à questão de validade das normas, sob argumentos diversos, como, por exemplo, o de Kelsen − pela subjetividade e irracionalidade subjacentes ao conceito de justiça (p. 39).
Hobbes diz que não há um justo por natureza, mas por convenção. Não existe critério do justo e do injusto fora da lei positiva, isto é, fora do comando do soberano. Não é possível, segundo ele, distinguir o justo do injusto no estado de natureza: justo é aquilo que é comandado, apenas pelo fato de ser comandado, ou de outro modo, “[...] é injusto o que é proibido, apenas pelo fato de ser proibido” (p. 39).
Bobbio expõe, em seguida, os aportes teóricos do realismo jurídico: no transcurso do século XX, muitos foram os pensadores do direito que buscaram na realidade social os elementos balizadores para as suas formulações teóricas, pois ali é a paragem “[...] onde o direito se forma e se transforma, nas ações dos homens que fazem e desfazem com seus comportamentos as regras de conduta que os governam”. Tal abordagem, segundo o autor, vai de encontro ao jusnaturalismo e ao positivismo, pondo em relevo mais a eficácia que a justiça ou a validade (p. 42). Para os realistas, o que importa é o direito aplicado em sua concretude − em contraste ao direito imposto −, pois é o “[...] único objeto possível de pesquisa por parte do jurista que não queira se entreter com fantasmas vazios” (p. 43).
Logo após, Bobbio apresenta um breve histórico dos contributos das correntes sociológicas do direito, sumariadas em suas três principais vertentes: (i) escola histórica do direito (Carl Von Savigny); (ii) concepção sociológica do direito (Kantorowicz, François Gény, Eugen Erlich); e (iii) concepção realista do direito (Oliver W. Holmes, Roscoe Pound, Jerome Frank). Ao final, afirma que essas correntes tiveram o poder de impedir a “[...] cristalização da ciência jurídica em uma dogmática sem impulso inovador” (p. 46).
De resto, a principal crítica que se faz ao realismo jurídico, segundo Bobbio, resumiu-se à “[...] revisão das fontes do direito, vale dizer, numa crítica ao monopólio da lei e na reavaliação de duas outras fontes diversas da lei, o direito consuetudinário e o direito judiciário (o juiz legislador)” (itálico do autor) (p. 47).

(Para ler a Parte II, acesse aqui)


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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Nota de Aviso)

Norberto Bobbio
(1909-2004)

Tal como o fiz para o clássico da ciência jurídica Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, apresentarei neste bloguinho, em algumas postagens consecutivas, uma resenha da obra Teoria Geral do Direito, que, em suma, nada mais é do que o consolidado de dois cursos ministrados pelo famoso jusfilósofo italiano Norberto Bobbio: Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico, este último também publicado no Brasil há alguns anos, em separado, pela Editora da UnB. Sublinhamos que as notas entre colchetes, ao longo da resenha, aparecem detalhadas somente ao seu final, no ponto imediatamente anterior às referências adotadas. Ótimo proveito, internauta!
J.A.R. – H.C.
(Para ler a primeira parte da resenha, acesse aqui)


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Ciência e Poesia: Conflito em Poe

Haveria conflito entre a ciência e poesia? A ciência tende a afastar, por completo, as quimeras e os mitos a que recorrem os poetas para imaginar um mundo de beleza?

 

Se não for impróprio o que hei de afirmar, talvez esse conflito seja aparentado daquele outro que o cientista social Max Weber – como dizem, um dos “três porquinhos” da Sociologia, juntamente com Marx e Durkheim –, já houvera levantado há algumas décadas, por meio de sua teoria do “desencantamento do mundo”.

 

Em todo caso, o processo de racionalização do mundo ocidental – a industrialização nele considerada – veio a devastar os cenários do Parnaso e do Olimpo: toda a magia imanente à realidade deixou de ser palpável, para se transformar num copo um pouco mais vazio!

 

E como a ciência contribuiu para tal processo! Poe atribui-lhe o poder de haver desterrado vários mitos, em seu famoso poema “To Science” – que abaixo transcrevemos no seu original, em inglês, e numa versão em que nos esmeramos por manter intacta, pelo menos, a estrutura de rimas do autor norte-americano.

 

Um olhar atento às suas palavras permite-nos concluir que a Ciência, literalmente, logrou banir de seu palco quaisquer referências aos Elfos, às Hamadríades, às Náiades e a Diana, todos eles entidades de famosas mitologias europeias, a incorporar um substrato de sonho, de espírito criador e de manifestação do belo, do qual somente a humanidade não corrompida, de íntegro espírito, é capaz de usufruir!


Será mesmo que o cenário ficou melhor, desvestido de seus protagonistas imaginários? Certamente que, para a Literatura, não! Logo ela que vive da poesia e da criatividade de seus autores. Essa convicção é que configura o elemento de defesa de Poe: a Ciência tem uma face predatória – e pouca imaginação! –, já que, segundo ele, se volta a conceber realidades maçantes.

 

Concordaria você com Poe, leitor?!

 

J.A.R. – H.C. 

 

Edgar Allan Poe

(1809-1849)

 

To Science

 

Science! true daughter of Old Time thou art!

Who alterest all things with thy peering eyes.

Why preyest thou thus upon the poet’s heart,

Vulture, whose wings are dull realities?

 

How should he love thee? or how deem thee wise?

Who wouldst not leave him in his wandering

To seek for treasure in the jewelled skies,

Albeit he soared with an undaunted wing?

 

Hast thou not dragged Diana from her car?

And driven the Hamadryad from the wood

To seek a shelter in some happier star?

 

Hast thou not torn the Naiad from her flood,

The Elfin from the green grass, and from me

The summer dream beneath the tamarind tree? 

 

Montagem Futurista de Alex Andreev

(Artista de São Petersburgo)

 

À Ciência

 

Ó Ciência! Do Vetusto Tempo descendes!

Com sagazes olhos as coisas transformas;

por que devorar-me o coração pretendes,

ó abutre, cujas asas são maçantes formas?

 

Como o vate há de amar-te ou fiar-te os louros,

se o impediste de vagar em suas quimeras

por céus ornados, à procura de tesouros,

ainda que, presto, ascendesse àquelas esferas?

 

Não sacaste Diana de sua biga a moscardo?

E acaso as Hamadríades do bosque não tiraste,

para em estrela mais feliz buscar resguardo?

 

Porventura as Náiades de sua fonte não exilaste,

idem o Elfo do verde prado, e a mim por igual,

ao pé do tamarindo, de todo sonho estival?

 

Referência:

 

POE, Edgar Allan. To science. In: __________. The raven and other favorite poemsNew York, NY: Digireads, 2010. p. 37.

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