Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de agosto de 2021

John Updike - Fellatio

Metáforas do que se passa numa paisagem bucólica, pastoral, ora bem numa granja ou herdade, onde semeadura e colheita são procedimentos habituais, são empregadas por Updike neste breve poema, para empreender associação com práticas eróticas de felação, realizadas à noite por “asseadas secretárias” em seus amantes: equipara-se o ato à floração nos campos ou mesmo às nuvens nos céus.

Ainda que o sexo oral seja praticado às largas hodiernamente, retratá-lo como “lindo” – como Updike o faz – raras vezes se testemunha na literatura, o que poderia denotar alguma ironia do poeta em relação à suspeita de que aquelas mulheres, tão impolutas e de bom desempenho no local de trabalho, voltem mais tarde aos seus amantes e se comportem, então, de um modo completamente distinto. Ou não: talvez o poeta veja mesmo alguma beleza no fato de que mulher e amante compartilhem um vínculo tão intenso ou desmedido, estando ela, por tal razão, disposta a levar a efeito quaisquer práticas para vir a agradá-lo.

J.A.R. – H.C.

 

John Updike

(1932-2009)

 

Fellatio

 

It is beautiful to think

that each of these clean secretaries

at night, to please her lover, takes

a fountain into her mouth

and lets her insides, drenched in seed,

flower into landscapes:

meadows sprinkled with baby’s breath,

hoarse twiggy woods, birds dipping, a multitude

of skies countaining clouds, plowed earth stinking

of its upturned humus, and small farms each

with a silver silo.

 


O grande masturbador

(Salvador Dalí: pintor espanhol)

 

Fellatio

 

É lindo pensar

que cada uma destas asseadas secretárias

à noite, para deleitar seu amante, tome

uma fonte em sua boca

e deixe-a dentro, encharcada em semente,

aflorar-se paisagens:

prados orvalhados pelo sopro infante,

roucas ramagens, pássaros rasantes,

múltiplo céu com nuvens, a terra fétida fendida

com seu humus revirado, em cada pequeno sítio

um silo de prata.


Referência:

UPDIKE, John. Fellatio / Fellatio. Tradução de Elson Fróes. In: FRÓES, Elson. Poemas traduzidos. Edição eletrônica, copyright © Elson Fróes, 2003. Em inglês: p. 16; em português: p. 17.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Miguel Torga - Guerra civil

Não se trata, exatamente, de uma guerra civil no sentido denotativo do termo, senão uma “guerra civil” metafórica, do poeta contra ele mesmo, pois que, segundo suas próprias palavras, não teria outro inimigo com quem porfiar. E o mais desconcertante é que a luta se trava contra uma parte que, para o falante, não lhe integra o ser, eis que insultada pela outra que de fato lhe sopra ao espírito: uma aliança absurda de criança e de adulto.

Os pensamentos, os sentimentos, as palavras e as obras incorporam o censor que lhe pede castigo. Exasperado pela loucura – ou mesmo por sua ausência –, de qualquer modo, não se dá por vencido: anela por outra vida, outra aventura, outro incerto destino. A esta hora, na outra margem da existência, terá logrado êxito em seu afã? (rs)

J.A.R. – H.C.

 

Miguel Torga

(1907-1995)

 

Guerra civil

 

É contra mim que luto.

Não tenho outro inimigo.

O que penso,

O que sinto,

O que digo

E o que faço,

É que pede castigo.

E desespera a lança no meu braço.

 

Absurda aliança

De criança

E de adulto,

O que sou é um insulto

Ao que não sou;

E combato esse vulto

Que à traição me invadiu e me ocupou.

 

Infeliz com loucura e sem loucura,

Peço à vida outra vida, outra aventura,

Outro incerto destino.

Não me dou por vencido,

Nem convencido,

E agrido em mim o homem e o menino.

 

Em: “Orfeu rebelde” (1958)

 

Retrato do Dr. Gachet

(Vincent van Gogh: pintor holandês)


Referência:

TORGA, Miguel. Guerra civil. In: __________. Poesia completa. 1. ed. Lisboa, PT: Dom Quixote, 2000. p. 563.

domingo, 29 de agosto de 2021

Virgil Suárez - Aguacero

O poeta e romancista Virgil Suárez, cubano de nascimento, conta-nos como via a figura do pai, na Havana de sua infância, a trabalhar alimentando os animais do zoológico local e a presenciar os fortes aguaceiros que caíam sobre a ilha, almejando um dia, quem sabe, partir para o exílio – o que de fato veio a ocorrer ainda na primeira metade dos anos setenta.

Com efeito, Virgil Suárez chegou aos EUA com doze anos e, hoje, é professor especialista em redação criativa e literatura latina, especialmente cubano-americana, na Florida State University, em Tallahassee. Do passado, temos estas memórias, que se converteram em tema de muitos de seus poemas, bem assim o legado de toda a literatura hispano-americana com que entrou em contato.

J.A.R. – H.C.

 

Virgil Suárez

(n. 1962)

 

Aguacero

 

These downpours of my Cuban childhood

when my father loved to smoke a cigarette

on the patio of the house in Havana

and watch as the sheets of rain bent against

the tin roofs of the shacks in the neighbor’s

yard, the way drops hung from the wire

mesh of the chicken coops and fell one

by one on the dirt, dampening, darkening

as they fell, and he would remove his shirt

after a long day’s work feeding the zoo

animals and he would sit on his makeshift

hammock, lean back, blow smoke up

at the rafters, and he listened to all that rain

as it fell on everything. He imagined

it was raining all over the island, his island,

and the sound of it drumming on the plantain

fronds rose all around him like the clamor

of thousands of cattle birds scattershot

into the heavens, and when he closed his eyes

he dreamt of a man, his hands buried deep

into fertile earth, seeding a son, a wife,

in new life from which so much hardship

sprouted in this life, in the next, exile

a possibility dripping from his fingertips –

then the song of bullfrogs calling home the night.

 

From: “Banyan” (2001)

 

Barraco sob uma tormenta

Tela digital

(Piya Singh: artista indiana)

 

Aguacero (1)

 

Aqueles aguaceiros da minha infância cubana,

quando meu pai gostava de fumar um cigarro

no pátio da casa em Havana

e ver como os lençóis de chuva dobravam-se contra

os telhados de zinco dos barracos no quintal

do vizinho, a forma como as gotas pendiam da tela

de arame dos galinheiros e caíam uma

a uma sobre o barro, umedecendo-o, escurecendo-o

à medida que caíam, e então despia-se da camisa

depois de um longo dia de trabalho a alimentar os animais

do zoológico e sentava-se em sua rede

improvisada, recostava-se, soprava fumaça

até as vigas, e escutava toda aquela chuva

a cair sobre tudo. Imaginava

que chovia por toda a ilha, a sua ilha,

o som dela a tamborilar nas frondes das bananeiras

erguendo-se à volta como o clamor

de milhares de garças-boieiras dispersas

nos céus e, quando fechava os olhos,

sonhava com um homem, suas mãos assaz enterradas

em terra fértil, semeando um filho, uma esposa,

em nova vida da qual haviam de brotar tantas agruras

nesta vida, na próxima, o exílio como

uma possibilidade a escorrer-lhe pela ponta dos dedos –

depois o canto das rãs-touro chamando-o a casa à noite.

 

Em: “Bânia” (2001) (2)


Notas:

(1) Mantida a grafia no original em espanhol, por bastante evidente o seu significado em português – aguaceiro, chuvarada, temporal.

(2) Bânia é uma espécie de figueira-brava originária de Bengala.

Referência:

SUÁREZ, Virgil. Aguacero. In: BOLLER, Diane; SELBY, Don; YOST, Chryss (Eds.). Poetry daily: 366 poems from the world’s most popular poetry website. Rita Dove and Dana Gioia: advisory editors. Naperville, IL: Sourcebooks, 2003. p. 292.

sábado, 28 de agosto de 2021

Gonzalo Rojas - Os verdadeiros poetas são de repente

O poeta chileno descreve nestas linhas como seriam os verdadeiros poetas, sempre postados frente ao precipício, do qual não sentiriam o menor vestígio de medo, como Ícaros adolescentes a desafiar um mar “aziago”, pervagando nos mistérios que medram e logo se desfazem numa mente fértil – desígnio incorporado ao conatural vaticínio a que são atraídos.

Quase se poderia afirmar que o fotograma arquitetado para o vate prototípico de Rojas nos levaria sempre a um prodígio, tal como o poeta francês Jean Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), que, num impulso – e ainda muito jovem –, deixou a sua marca na poesia universal, tendo publicado, v.g., “Uma temporada no inferno” (1873), decerto um símile ao precipício a que se reporta Rojas.

J.A.R. – H.C.

 

Gonzalo Rojas

(1916-2011)

 

Los verdaderos poetas son de repente

 

Los verdaderos poetas son de repente:

nacen y desnacen, dicen

misterio y son misterio, son niños

en crecimiento tenaz, entran

y salen intactos del abismo, ríen

con el descaro de los 15, saltan

desde el tablón del aire al roquerío

aciago del océano sin

miedo al miedo, los hechiza

el peligro.

 

Aman y fosforecen, apuestan

a ser, únicamente a ser, tienen mil ojos

y otras mil orejas, pero

las guardan com el cráneo musical, olfatean

lo invisible más allá del número, el

vaticinio va com ellos, son

lozanía y arden lozanía.

 

O poeta e sua musa

(Giorgio de Chirico: artista italiano)

 

Os verdadeiros poetas são de repente

 

Os verdadeiros poetas são de repente:

nascem e desnascem, dizem

mistério e são mistério, são crianças

em crescimento tenaz, entram

e saem intactos do abismo, riem

com o descaro dos 15, saltam

do trampolim do ar ao rochedo

aziago do oceano sem

medo do medo, os enfeitiça

o perigo.

 

Amam e fosforescem, apostam

em ser, unicamente em ser, têm mil olhos

e outras mil orelhas, mas

as guardam no crânio musical, farejam

o invisível para lá dos números, o

vaticínio vai com eles, são

frescor e ardem frescor.


Referência:

ROJAS, Gonzalo. Los verdaderos poetas son de repente / Os verdadeiros poetas são de repente. Tradução de Eric Nepomuceno. In: __________. Antologia poética de Gonzalo Rojas. Tradução de Eric Nepomuceno. Edição bilíngue: Espanhol x Português. Brasília, DF: Editora da UnB, 2018. Em espanhol: p. 50; em português: p. 51. Disponível neste endereço. Acesso em: 12 mai. 2021.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Sophia de Mello Breyner Andresen - A escrita

Andresen toma o exemplo de Byron, vivendo num amplo palácio em Veneza (IT) – o Palazzo Mocenigo –, praticamente desabitado, como ilustração à sua tese de que, para se lançar de um modo exitoso à escrita, são necessários “solidões e desertos / e coisas que se veem como quem vê outra coisa” – e mais algum instrumental a dar contorno “atento” à cena.

Talvez o contexto fixado para a prática da escrita diga muito sobre as próprias estratégias por ela levadas a efeito em tal mister. Mas o fato é que não há como se concentrar num ambiente rumoroso ou ressonante, pois mesmo que as ideias se sucedam aos burburinhos, colocá-las em ordem no papel, de uma forma literariamente eficaz, configura conjuntura um tanto diversa.

J.A.R. – H.C.

 

Sophia de Mello B. Andresen

(1919-2004)

 

A escrita

 

No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho

Lord Byron usava as grandes salas

Para ver a solidão espelho por espelho

E a beleza das portas quando ninguém passava

 

Escutava os rumores marinhos do silêncio

E o eco perdido de passos num corredor longínquo

Amava o liso brilhar do chão polido

E os tectos altos onde se enrolam as sombras

E embora se sentasse numa só cadeira

Gostava de olhar vazias as cadeiras

 

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital

Mas a escrita exige solidões e desertos

E coisas que se veem como quem vê outra coisa

 

Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa

Imaginar o alto pescoço espesso

A camisa aberta e branca

O branco do papel as aranhas da escrita

E a luz da vela – como em certos quadros –

Tornando tudo atento

 

Em: “Ilhas” (1989)

 

Quarto de Byron no Palácio Mocenigo:

Veneza – IT

(William Henry Lake Price: pintor inglês)


Referência:

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A escrita. In: __________. Coral e outros poemas. Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 319.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

William Empson - Ignorância da Morte

Em sete tercetos Empson põe-se a elucubrar sobre a morte e o que ela representaria para a nossa civilização, ou melhor, para budistas, cristãos e até mesmo comunistas: ao final, conclui que, embora se sinta muito em branco com relação ao assunto, o mais indicado é que a maioria das pessoas deva estar preparada para deixá-lo mesmo em branco!

Se me for permitida uma rápida digressão, poderia sugerir uma leitura muito bem fundamentada sobre o tema: a obra “História da Morte no Ocidente”, do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), na qual o autor se detém a afirmar que a fuga da morte parece ser a tentação maior do Ocidente. E essa recusa em sequer pensar na morte, manifestada nos derradeiros versos deste poema de Empson, não nos deixa mentir! (rs)

J.A.R. – H.C.

 

William Empson

(1906-1984)

 

Ignorance of Death

 

Then there is this civilizing love of death, by which

Even music and painting tell you what else to love.

Buddhists and Christians contrive to agree about death

 

Making death their ideal basis for different ideals.

The communists however disapprove of death

Except when practical. The people who dig up

 

Corpses and rape them are I understand not reported.

The Freudians regard the death-wish as fundamental,

Though the ‘clamour of life’ proceeds from its rival ‘Eros’.

 

Whether you are to admire a given case for making less clamour

Is not their story. Liberal hopefulness

Regards death as a mere border to an improving picture.

 

Because we have neither hereditary nor direct knowledge of death

It is the trigger of the literary man’s biggest gun

And we are happy to equate it to any conceived calm.

 

Heaven me, when a man is ready to die about something

Other than himself, and is in fact ready because of that,

Not because of himself, that is something clear about himself.

 

Otherwise I feel very blank upon this topic,

And think that though important, and proper for anyone to bring up,

It is one that most people should be prepared to be blank upon.

 

A vitória de Eros

(Angelica Kauffmann: pintora suíça)

 

Ignorância da Morte

 

Então há este amor civilizador pela morte, pelo qual

Até a música e a pintura dizem-te o que mais há para amar.

Budistas e cristãos esforçam-se por chegar a acordo sobre a morte,

 

Dela lançando mão como base ideal para distintos ideais.

Os comunistas, contudo, desaprovam a morte,

Exceto quando nela há praticidade. As pessoas que desenterram

 

Cadáveres e violam-nos não são, conforme creio, denunciadas.

Os freudianos consideram fundamental o desejo de morte,

Ainda que o “clamor de vida” provenha de seu rival ‘Eros’.

 

Supor-se que se admire um certo caso por fazer menos clamor

Fica à margem de sua história. A perspectiva liberal

Reputa a morte como mero linde para um panorama melhorado.

 

Em razão de não termos noção direta nem hereditária da morte,

Torna-se ela o gatilho da maior arma do homem das letras –

E estamos felizes por equipará-la a qualquer concebida calma.

 

Deus meu, quando um homem está disposto a morrer por algo

Que não seja por si mesmo, e de fato prontifica-se por razão diversa,

Não por razões que lhe tocam, isso diz com clareza sobre si próprio.

 

Sob outra mirada, sinto-me muito no vazio acerca deste tema,

E penso que embora crucial e oportuno para quem quer que o suscite,

É um dos que passar em branco deveria ser o mote para a maioria.


Referência:

EMPSON, William. Ignorance of death. In: RODMAN, Selden (Ed.). An new anthology of modern poetry. New York, NY: Random House Inc., 1946. p. 335. (“The Modern Library”)