Gravadas em versos, aqui estão algumas lembranças da poetisa em relação ao seu pai, o estilo castiço como se comportava, os sonhos de transcendência e a forma pela qual o “sal da terra” – não exatamente no sentido atribuído pelas palavras de Cristo – corroeu as estruturas de uma casa que se pretendia ungida contra máculas.
Nota-se certa inflexão de um ponto de vista ascético, para não dizer religioso, a outro que subentende um despertar lúbrico, muito mais ostensivo nas obras da poetisa paulista. Compreendes-me leitor? Os ventos de castidade foram-se com o falecido pai e o que lhes sucedeu foi uma nova casa onde as contenções sobre a sexualidade deixaram de prevalecer.
J.A.R. – H.C.
Hilda Hilst
(1930-2004)
Na tua ausência
Na tua ausência, na
casa o perfume das igrejas. O odor
Da castidade antiga
dos incensos reacendeu a alegria da infância
E aspirei contigo o
perfume menos casto das cerejas. Na casa,
Um ruído de contas de
rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.
Os ventos te
seguiram. E próxima do teu passo, eu mesma era o silêncio,
A pedra. Impossível
de abraço.
Uma torre contigo
caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardis,
Fibras trançadas, e
aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.
No teu andar, um
quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,
Espaçado e perdido.
Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terra
Corroendo os pilares,
as cruzes, a capela? E os sonhos sobre a tua fonte
É mesmo crisálida
pronta para ter asas?
Abriram-se os portões,
mas a casa era nova. A que foi nossa
Tuas filhas te
disseram que, na noite, um homem e sua torre,
Com paciências
guardadas, pouco a pouco a demoliram.
Em: Odes Maiores ao
Pai – IV, Exercícios (1959-1967)
Meus Pais
(David Hockney: pintor inglês)
Referência:
HILST, Hilda. Na tua ausência. In:
__________. Uma superfície de gelo ancorada no riso: antologia. Seleção,
organização e apresentação de Luisa Destri. São Paulo, SP: Globo, 2012. p. 104.
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