Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Nicolás Guillén - Digo que não sou um homem puro

Como se poderá discorrer sobre a pureza se jamais se chegou ao polo oposto: é desse outro ponto de vista que o autor cubano, ele próprio um impuro, banhado nas águas da lascívia, se põe a discorrer sobre a pureza dos nonagenários virgens (existe essa espécie?), dos namorados que preferem se masturbar a chegarem às vias de fato do sexo, dos gramáticos, dos clérigos, das mulheres que jamais praticaram a felação – e por aí vai!

O que, realmente, Guillén pretende nos dizer é que a pureza é quase uma impossibilidade, porque vivemos cercados das mais genuínas manifestações de impureza, do esterco de gado ao ar carregado de gás carbônico e, mais ainda – com um acréscimo que faço por conta e risco –, confrontados por todos os lados com o lixo das “fake news” que os obscenos defensores do que se diz presidente de Pindorama – e ele próprio, idem – veiculam despudoradamente a cada minuto.

J.A.R. – H.C.

Nicolás Guillén
(1902-1989)

Digo que yo no soy un hombre puro

Yo no voy a decirte que soy un hombre puro.
Entre otras cosas
falta saber si es que lo puro existe.
O si es, pongamos, necesario.
O posible.
O si sabe bien.
¿Acaso has tú probado el agua químicamente pura,
el agua de laboratorio,
sin un grano de tierra o de estiércol,
sin el pequeño excremento de un pájaro,
el agua hecha no más de oxígeno e hidrógeno?
¡Puah!, qué porquería.

Yo no te digo pues que soy un hombre puro,
yo no te digo eso, sino todo lo contrario.
Que amo (a las mujeres, naturalmente,
pues mi amor puede decir su nombre),
y me gusta comer carne de puerco con papas,
y garbanzos y chorizos, y
huevos, pollos, carneros, pavos,
pescados y mariscos,
y bebo ron y cerveza y aguardiente y vino,
y fornico (incluso con el estómago lleno).
Soy impuro ¿qué quieres que te diga?
Completamente impuro.
Sin embargo,
creo que hay muchas cosas puras en el mundo
que no son más que pura mierda.
Por ejemplo, la pureza del virgo nonagenario.
La pureza de los novios que se masturban
en vez de acostarse juntos en una posada.
La pureza de los colegios de internado, donde
abre sus flores de semen provisional
la fauna pederasta.
La pureza de los clérigos.
La pureza de los académicos.
La pureza de los gramáticos.
La pureza de los que aseguran
que hay que ser puros, puros, puros.
La pureza de los que nunca tuvieron blenorragia.
La pureza de la mujer que nunca lamió un glande.
La pureza del que nunca succionó un clítoris.
La pureza de la que nunca parió.
La pureza del que no engendró nunca.
La pureza del que se da golpes en el pecho, y
dice santo, santo, santo,
cuando es un diablo, diablo, diablo.
En fin, la pureza
de quien no llegó a ser lo suficientemente impuro
para saber qué cosa es la pureza.

Punto, fecha y firma.
Así lo dejo escrito.

En: “La rueda dentada” (1972)

A Proposta
(Judith Leyster: pintora holandesa)

Digo que não sou um homem puro

Não vou te dizer que sou um homem puro.
Entre outras coisas
resta saber se a pureza existe.
Ou se é, digamos, necessária.
Ou possível.
Ou se é de bom gosto.
Por acaso você já provou a água quimicamente pura,
água de laboratório;
sem nenhum grão de terra ou de esterco,
sem nenhuma caca de passarinho,
água feita só de oxigênio e hidrogênio?
Bah! Que porcaria!

Por isso é que não te digo que sou um homem puro,
eu não te digo isso, muito pelo contrário.
Amo (as mulheres, é claro,
pois meu amor pode dizer seu nome),
e eu gosto de comer carne de porco com batata,
e grão-de-bico e linguiça, e
ovo, frango, carneiro, peru,
peixe e marisco,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
vivo fornicando (até de estômago cheio).
Sou impuro. Você quer que eu diga o quê?
Completamente impuro.
No entanto,
acho que tem muita coisa pura neste mundo
que nada mais é que pura merda.
Por exemplo, a pureza do nonagenário virgem.
A pureza dos namorados que se masturbam
em vez de dormirem juntos num motel.
A pureza de colégio interno, onde
abre suas flores de sêmen provisório
a fauna pederasta.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos acadêmicos.
A pureza dos gramáticos.
A pureza dos que garantem
que se tem de ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram gonorreia.
A pureza da mulher que nunca lambeu um pênis.
A pureza do que nunca sugou um clitóris.
A pureza daquela que nunca pariu.
A pureza de quem não fez filho nunca.
A pureza de quem bate no peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber que coisa é a pureza.

Ponto, data e firma.
Dou fé.

Em: “A roda dentada” (1972)

Referência:

GUILLÉN, Nicolás. Digo que yo no soy un hombre puro / Digo que não sou um homem puro. Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. In: LEMUS, Virgilio López (Seleção, prefácio e notas). Vinte poetas cubanos do século XX. Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros. Edição bilíngue. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, 1995. Em espanhol: p. 38, 40 e 42; em português: p. 39, 41 e 43.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Carlos Drummond de Andrade - O Retrato Malsim

Drummond rumina frente ao espelho, num instante em que se põe a fazer a barba, sobre um “retrato” do que era ele próprio há alguns anos ou décadas e como naquele instante já se percebia, com uma calva no mesmo lugar onde, em fotografias tiradas quando garoto, podiam-se ver fartos cabelos cacheados. No presente momento, outro homem já se instalou à mesa, com toda a sua “matalotagem”.

Trata-se de um outro, um espião, um investigador, melhor seria dizer um delator, a atirar-lhe no rosto as marcas da passagem do tempo, os vincos que conformam um estado de flagelação perante uma existência que chegara à marca dos sessenta anos. E Carlos agora faz-se irmão de “José”: “e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mofou, / e agora, José?”.

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

O Retrato Malsim

O inimigo maduro a cada manhã se vai formando
no espelho de onde deserta a mocidade.
Onde estava ele, talvez escondido em castelos escoceses,
em cacheados cabelos de primeira comunhão?
Onde, que lentamente grava sua presença
por cima de outra, hoje desintegrada?

Ah, sim: estava na rigidez das horas de tenência orgulhosa,
no morrer em pensamento quando a vida queria viver.
Estava primo do outro, dentro,
era o outro, que não se sabia liquidado,
verdugo expectante, convidando a sofrer;
cruz de carvão, ainda sem braços.

Afinal irrompe dono completo.
Instalou-se, a mesa é sua,
cada vinco e reflexão madura ele é quem porta,
e esparrama na toalha sua matalotagem:
todas as flagelações, o riso mau,
o desejo de terra destinada
e o estar-ausente em qualquer terra.
3 em 1, 1 em 3:
ironia passionaridade morbidez.

No espelho ele se faz a barba amarga.

Em: “Lição das Coisas” (1962)

Homem frente ao espelho
(Suzanne M. Leclair: pintora norte-americana)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond. O retrato malsim. In: __________. Poesia completa: em dois volumes. V. 1. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2001. p. 488. (Biblioteca Luso-Brasileira; Série Brasileira)

terça-feira, 28 de abril de 2020

Robert Hass - A Festa

Aparentemente, o ente lírico faz menção a uma jovem esposa que imagina como organizará a comida sobre uma mesa, a ser servida no deque de sua residência, e como hão de se suceder as coisas numa festa que organizara para os seus amigos e amigas. Mas ela não se sente feliz e começa a chorar na escuridão, logo depois de haver destrinchado o peru: “Ela não sabia o que queria”.

Mas não fique triste, não, minha senhora: vou convidar a prendada Babette, cozinheira francesa das irmãs Martine e Philippa, para preparar um lauto almoço para os seus convivas. Afinal, só de ver as imagens do festim que ela organizou para as irmãs, não há quem não saia das salas de cinema com um desejo imenso de se repimpar até não mais poder.

Já perceberam os leitores que faço alusão à película dinamarquesa “A Festa de Babette”, de 1987, dirigido por Gabriel Axel, que muito recomendo, em função de sua mensagem delicadamente humana, primeiramente pelo acolhimento de Babette pelas irmãs, numa situação que, fossem outras pessoas, seriam levantadas controversas razões para preterição, e depois pela manifestação de gratidão de Babette, que despendeu tudo o que ganhara num sorteio de loteria, para oferecer o aludido banquete às irmãs.

J.A.R. – H.C.

Robert Hass
(n. 1941)

The Feast

The lovers loitered on the deck talking,
the men who were with men and the men who were
with new women,
a little shrill and electric, and the wifely women
who had repose and beautifully lined faces
and coppery skin. She had taken the turkey from the oven
and her friends were talking on the deck
in the steady sunshine. She imagined them
drifting toward the food, in small groups, finishing
sentences, lifting a pickle of a sliver of turkey,
nibbling a little with unconscious pleasure. And
she imagined setting it out artfully, the white meat,
the breads, antipasto, the mushrooms and salad
arranged down the oak counter cleanly, and how they
all came
as in a dance when she called them. She carved meat
and then she was crying. Then she was in darkness
crying. She didn’t know what she wanted.

A Festa de Ester
(Frans Francken, o Jovem: pintor flamengo)

A Festa

Os amantes rondavam o deque a conversar,
os homens que estavam com homens e os homens que
estavam com mulheres novas,
um pouco estridentes e elétricas, e as mulheres casadas
em gozo de repouso, rostos belamente alinhados
e  pele acobreada. Ela havia retirado o peru do forno
e suas amigas parolavam no deque
sob a intrêmula luz do sol. Ela os imaginava
amontoando-se em direção à comida, em pequenos grupos,
finalizando proposições, levantando uma porção de uma
fatia de peru,
mordiscando um pouco com um inconsciente prazer. E
idealizava arrumá-la artisticamente, a carne branca,
os pães, o antepasto, os cogumelos e a salada
dispostos no balcão de carvalho com capricho, e como
todos vinham
como que em uma dança quando os chamava. Ela havia trinchado
a carne e logo pôs-se a chorar. Estava ela então chorando
na escuridão. Ela não sabia o que queria.

Referência:

HASS, Robert. The feast. In: KEILLOR, Garrison (Selector and Introducer). Good poems. New York, NY: Penguin Books, 2003. p. 261.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Walt Whitman - O Gracejo das Águias

O ente lírico, decerto ao retornar a casa para descansar, seguindo pela estrada à margem de um rio, observa um casal de águias num jogo de pré-acasalamento, empregando todos os recursos sinestésicos com o objetivo de descrever as piruetas de seus voos num movimento de cima para baixo, até que se enredam por um instante, voltando a alçar voo logo em seguida, uma ao encalço da outra.

A tradução de Luciano Alves Meira atribui à palavra “dalliance” o seu sentido mais imediato – “gracejo”, “brincadeira” –; contudo, para a explícita essência lúbrica que o poema encerra, talvez fosse melhor empregar a palavra “flerte”, “corte”, “namoro”. Afinal, o que deve ter chamado a atenção de Whitman foi ter visto duas aves de uma espécie considerada indômita num raro momento de idílio, ainda que tal idílio exiba – como diríamos? – algo demais impetuoso.

J.A.R. – H.C.

Walt Whitman
(1819-1892)

The Dalliance of the Eagles

Skirting the river road, (my forenoon walk, my rest,)
Skyward in air a sudden muffled sound, the dalliance
of the eagles,
The rushing amorous contact high in space together,
The clinching interlocking claws, a living, fierce,
gyrating wheel,
Four beating wings, two beaks, a swirling mass tight
grappling,
In tumbling turning clustering loops, straight
downward falling,
Till o’er the river pois’d, the twain yet one, a moment’s lull,
A motionless still balance in the air, then parting,
talons loosing,
Upward again on slow-firm pinions slanting, their separate
diverse flight,
She hers, he his, pursuing.

Águia Dourada
(Alan M. Hunt: artista inglês)

O Gracejo das Águias

Seguindo pela estrada, à margem do rio (minha manhã,
meu descanso),
Na direção do céu, um repentino som abafado, o gracejo
das águias,
O rápido contato amoroso, juntas, alto no espaço,
As garras reviradas que se fecham num círculo vivo,
ameaçador, giratório,
Quatro asas batendo, dois bicos, a massa girando
um abraço apertado,
Em voltas cadentes e crescentes, em queda livre,
Até que sobre o rio posicionados, os dois feitos em um,
aquietam-se por um momento,
Um balanço imóvel em pleno ar, depois se separam,
soltando as presas,
Subindo novamente com firmes vagarosas asas oblíquas,
seus voos independentes e distintos,
Ela o dela, ele o dele, procurando.

Referências:

Em Inglês

WHITMAN, Walt. The dalliance of the eagles. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 72.

Em Português

WHITMAN, Walt. O gracejo das águias. Tradução de Luciano Alves Meira. In: __________. Folhas de relva. Texto integral. Tradução e introdução de Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo (SP): Martin Claret, 2012. p. 277-278. (Série Ouro: Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, n. 42)

domingo, 26 de abril de 2020

Antonio Carlos Secchin - Sagitário

Uma fictícia previsão astrológica para quem nasceu sob o signo de Sagitário, a recomendar, paradoxalmente, ao aficionado por horóscopos, que se distancie de todos os horóscopos: o teor espirituoso dos conselhos declinados parece se pautar pela consabida forma como os astrólogos profissionais se exprimem, em generalidades que tanto podem apontar para o norte quanto para o sul, ao gosto do freguês.

Talvez seja por isso que o poeta, depois de linhas a pormenorizar “a circularidade do círculo”, apresenta-se honesto no derradeiro verso: quanta verbosidade já se enunciou no âmbito do esoterismo e quanto o sistema do capital já lançou mão desses dislates místicos, para fazer girar a roda do lucro, num oportunismo sem par!

J.A.R. – H.C.

Antonio Carlos Secchin
(n. 1952)

Sagitário

Evite excessos na quarta-feira,
modere a voz, a gula, a ira.
Saturno conjugado a Vênus
abre portas de entrada
e armadilhas de saída.
Evite apostar em si, mas, se quiser,
jogue a ficha em número
próximo do zero. Evite acordar
o incêndio implícito de cada fósforo.
E quando nada mais tiver a evitar
evite todos os horóscopos.

Sagitário: fantasia
(Josephine Wall: artista inglesa)

Referência:

SECCHIN, Antonio Carlos. Sagitário. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Antologias ABL: poesia / ABL’s Anthologies: poems. Idealização e apresentação de Ana Maria Machado. Organização de Domício Proença Filho e Marco Lucchesi. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: ABL, 2013. p. 34.

sábado, 25 de abril de 2020

Zbigniew Herbert - O Sr. Cogito Medita sobre o Sofrimento

Herbert sugere-nos, em meio a versos carregados de ironia e tonalidades satíricas, que “joguemos” com o sofrimento, forçando-o, ao fim e ao cabo, a expressar um tênue sorriso, ou seja, que sejamos capazes de convolar penas, aflições, dissabores, em amabilidades, cortesias, gentilezas – a despeito de tudo de ruim que possa suceder conosco.

Os poemas da série do Sr. Cogito revelam o humanismo presente no pensamento do autor polonês, e mesmo o nome atribuído ao personagem de quem se fala já pressupõe o caráter especulativo da poesia neles entronizada: versos curtos, sem pontuação, por vezes com inflexões desconcertantes – tal é o modo como são aclaradas as circunstâncias de vida de um hipotético homem capaz de pensar.

J.A.R. – H.C.

Zbigniew Herbert
(1924-1998)

Mr. Cogito Meditates on Suffering

All attempts to remove
the so-called cup of bitterness –
by reflection
frenzied actions on behalf of homeless cats
deep breathing
religion –
failed

one must consent
gently bend the head
not wring the hands
make use of the suffering gently moderately
like an artificial limb
without false shame
but also without unnecessary pride

do not brandish the stump
over the heads of others
don’t knock with the white cane
against the windows of the well-fed

drink the essence of bitter herbs
but not to the dregs
leave carefully
a few sips for the future

accept
but simultaneously
isolate within yourself
and if it is possible
create from the matter of suffering
a thing or a person

play
with it
of course
play

entertain it
very cautiously
like a sick child
forcing at last
with silly tricks
a faint
smile

(Translated from the Polish to English
by John Carpenter and Bogdana Carpenter)

Ancião na Tristeza
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

O Sr. Cogito Medita sobre o Sofrimento

Todas as tentativas de afastar
a assim chamada taça da amargura –
por meio da reflexão
da ação obstinada em favor dos gatos sem lar
da respiração profunda
da religião –
fracassaram

é favor aceitar
baixar obsequiosamente a cabeça
não torcer as mãos
lidar com o sofrimento de forma razoavelmente suave
como uma prótese dentária
sem falsa vergonha
mas também sem vaidade

nada de brandir o coto de um membro amputado
sobre a cabeça dos outros
nada de bater com uma bengala branca
em janelas de empanzinados

beber o extrato de ervas amargas
mas não até a última gota
deixar previdentemente
um par de goles para o futuro

aceitar
mas ao mesmo tempo
delimitá-lo dentro de si
e se isso for possível
criar a partir do conteúdo do sofrimento
uma coisa ou pessoa

jogar
com ele
é claro
jogar

brincar com ele
muito cuidadosamente
como se fosse com uma criança doente
compelindo-o finalmente
com truques bobos
a um tênue
sorriso

Nota:

Para quem tem interesse em conhecer o poema no idioma original, o polonês, recomenda-se a leitura neste endereço da internet.

Referência:

HERBERT, Zbigniew. Mr. Cogito meditates on suffering. Translated from the Polish to English by John Carpenter and Bogdana Carpenter. In: McCLATCHY, J. D. (Ed.). The vintage book of contemporary world poetry. 1st. ed. New York, NY: Vintage Books (A Division of Random House Inc.), june 1996. p. 152-153.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Kerry Shawn Keys - Fora do jardim ocidental

Eis aqui a prova de que uma tradução literal nem sempre resulta num texto melhor para se usufruir o prazer da leitura no idioma destinatário, tanto mais quando se tem como tradutor um outro poeta – Lêdo Ivo, no caso –, que com o seu talento, foi capaz de transpor as pétalas desta rosa, tornando-a, decerto, tão ou mais bela que no original em inglês.

O fato de se estar do lado de fora dos portões ocidentais leva-nos a associar a temática do poema à cena bíblica da expulsão de Adão e Eva do paraíso edênico – a maçã, enquanto símbolo da sensualidade, não poderia faltar ao enredo –, quando já não se tem mais nada a perder e o que resta aos amantes é usufruir longamente o prazer, levando a que a carne se torne “candente”.

J.A.R. – H.C.

Kerry Shawn Keys
(n. 1946)

Outside the western gate

Under the rosetrees
at the equinoctial hour,
down where the snowflowers
spring from their roots,
there, my little wilding,
the ginseng and anemone
are lifting their soft rays
through the oak
and the hemlock.

It is dawn,
little almond eyes,
and I am singing you
our watersong:

The stars have left
a fragrance
that stays,
and we stay, love,
outside the western gate,
though the Sky
is scattered with blue
in its first tumig light.

The greenbriar climbs
close on the laurel,
my heart’s erect flint
blazes
like touchwood
on your breasts, two flowering quinces
on my lips,
two quail
quivering
in the brush.

All day
our hidden body
bums like an unmined
opal
on fire,
a cresset of kisses
untouched
by the sun’s angry heat.

And when evening
opens
its cold mouth,
and the winds
whorl
into the Wood
and into the lovers
that would embrace,
we knot our limbs
and our roots,
our tongues
and our blood,
and
endless and everywhere,
a five-petalled star,
all night
we burn
them
our brightest flesh.

O jardim do artista em Vétheuil
(Claude Monet: pintor francês)

Fora do jardim ocidental

Sob as roseiras
na hora equinocial,
lá onde flores de neve
brotam de suas raízes,
lá, minha pequena maçã silvestre,
a arália e a anêmona
levantam seus doces raios
enlaçando o carvalho
e a cicuta.

Pequenos olhos de amêndoa,
é o amanhecer,
e estou cantando para ti
nossa canção de água:

As estrelas deixaram
sua longa
fragrância
e aqui estamos, amor,
fora do jardim ocidental,
embora o céu
esteja juncado de azul
em seu primeiro giro de luz.

A verde sarça sobe
agarrada ao loureiro,
e meu ereto coração de pederneira
arde
– madeira podre –
junto aos teus seios, marmelos floridos
sob meus lábios,
codornizes
ocultas
no matagal.

O dia inteiro
nossos corpos escondidos
queimam como opala
arde
dentro da terra,
um facho de beijos
que o irritado calor
do sol não toca.

E quando a tarde
abre
a sua boca fria
e o vento
sopra em espiral
dentro do bosque
e dentro dos amantes
que se abraçariam,
entrelaçamos nossos ramos
e raízes,
nossas línguas
e nosso sangue
e
interminável e ubíqua
estrela de cinco pétalas
a noite inteira
queimamos para eles
a nossa carne
mais candente.

Referência:

KEYS, Kerry Shawn. Outside the western gate / Fora do jardim ocidental. Tradução de Lêdo Ivo. In: KEYS, Kerry Shawn (Ed.). Quingumbo: new north american poetry / nova poesia norte-americana. Antologia bilíngue. São Paulo, SP: Escrita, 1980. Em inglês: p. 268; em português: p. 269.