Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

William Ernest Henley - Invictus

Neste famoso poema, que de início não possuía título – “Invictus” foi aposto por Arthur Quiller-Couch, por volta de 1900, quando o incluiu na seleta “The Oxford Book of English Verse” –, o poeta inglês quase que reprisa uma das ideias constantes no poema da postagem anterior: a da resiliência que é necessário ter, para suportar as circunstâncias adversas da vida e, mesmo assim, alcançar a felicidade.

Ser o dono do seu próprio destino, o capitão de sua própria alma: uma tarefa para poucos. Afinal, a grande maioria se deixa levar pelos imprevistos, sem deter o leme que possa dar rumo preciso aos seus intentos.

J.A.R. – H.C.

William Ernest Henley
(1849-1903)

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find me, unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

Poder da Mente
(Svetoslav Stoyanov: artista búlgaro)

Invictus

Do fundo da noite que me envolve,
Negra como o Inferno dum polo ao outro,
Eu agradeço aos deuses, não importa quais,
Pela minha alma inconquistável.

Dominado pelas circunstâncias,
Não me rebelei nem me insurgi.
Sob os golpes do destino
Minha cabeça está ensanguentada, mas não pendida.

Além deste vale de cóleras e lágrimas,
Cresce de forma nítida o horror das sombras,
E, no entanto, a ameaça dos anos,
Agora e sempre, me encontrou sem temor.

Não importa que estreito seja o portão,
Como cheio de castigos e pergaminho,
Eu sou o dono do meu destino:
Eu sou o comandante da minha alma.

Referências:

Em Inglês

HENLEY, William Ernest. Invictus. In: UNTERMEYER, Louis (Ed.). Modern american poetry and Modern british poetry. Combined Mid-Century Edition. New York, NY: Harcourt, Brace and Company, 1950. 2nd section: p. 61.

Em Português

HENLEY, William Ernest. Invictus. Tradução de Bezerra de Freitas. In: ALVES, Afonso Telles (Seleção e Notas). Antologia de poetas estrangeiros. São Paulo, SP: Logos, out. 1960. p. 165. (“Antologia da Literatura Mundial”; v. 8)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Friedrich von Schiller - Poesie

O poeta evoca a liberdade da poesia – esse reino encantado e incomensurável, onde estamos aptos a voar pelo poder das palavras –, para falar daquilo que de mais harmonioso há entre o céu e a terra: uma bela alma numa forma encantadora.

Beleza das belezas, a formosura do espírito desata qualquer amarra capaz de interditar o corpo, pois ainda que tudo à nossa volta concorra para um estado d’alma soturno ou pesaroso, nada atinge aquele que tenha o ânimo resiliente.

J.A.R. – H.C.

Friedrich von Schiller
(1759-1805)

Poesie

Mich hält kein Band, mich fesselt keine Schranke,
Frei schwing’ ich mich durch alle Räume fort.
Mein unermesslich Reich ist der Gedanke,
Und mein geflügelt Werkzeug ist das Wort.
Was sich bewegt im Himmel und auf Erden,
Was die Natur tief im Verborgnen schafft,
Muss mir entschleiert und entsiegelt werden,
Denn nichts beschränkt die freie Dichterkraft;
Doch Schönres find’ ich nichts, wie lang ich wähle,
Als in der schönen Form – die schöne Seele.

A Alma da Rosa
(John William Waterhouse: pintor inglês)

Poesie

Não há amarra ou barreira que me detenha,
Plano livremente pelos mais distantes quadrantes.
Meu império incomensurável é o pensamento,
E o meu instrumento alado é a palavra.
O que se agita pelo firmamento e pela terra,
O que a natureza cria em profundo segredo,
Deve a mim ser desinterditado e revelado,
Pois nada limita o livre ímpeto do poeta;
Por mais que busque, mais beleza não encontro,
Do que a bela alma na encantadora forma.

Referência:

SCHILLER, Friedrich von. Poesie. In: PLOTZ, Helen (Sel.). Poems from the german. Drawings by Ismar David. A Bilingual Edition: German - English. New York, NY: Thomas Y. Crowell Company, 1967. p. 128.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Wallace Stevens - O Motivo para a Metáfora

Eis aqui um interessante poema sobre os limites da linguagem para descrever adequadamente as nossas experiências e como, para o fazer, temos que lançar mão de metáforas, de modo a expressar que esta ou aquela experiência ocorreu como algo mais palpável e de fácil associação ou assimilação.

Uma coisa é o mundo objetivo, outra aquilo que, dele, a mente humana apreende. Mas o que fazer quando aquilo que pretendemos descrever é um sentimento a irromper em nosso âmago, experiência singular a desafiar qualquer pretensão de decodificação linguística?

Wallace antepõe os contrastes de luz no trânsito da primavera ao outono, em conjunção com todos os nossos anseios de mudança, neste obscuro mundo em que as coisas jamais foram suficientemente bem descritas.

Daí o porquê da associação a um incógnito X, como nas equações da álgebra, valor a que seguimos no encalço, de forma a solucionar o enigma formulado, ou melhor, dar sentido pelo menos satisfatório aos nossos problemas...

J.A.R. – H.C.

Wallace Stevens
(1879-1955)

The Motive for Metaphor

You like it under the trees in autumn,
Because everything is half dead.
The wind moves like a cripple among the leaves
And repeats words without meaning.

In the same way, you were happy in spring,
With the half colors of quarter-things,
The slightly brighter sky, the melting clouds,
The single bird, the obscure moon −

The obscure moon lighting an obscure world
Of things that would never be quite expressed,
Where you yourself were never quite yourself
And did not want nor have to be,

Desiring the exhilarations of changes:
The motive for metaphor, shrinking from
The weight of primary noon,
The A B C of being,

The ruddy temper, the hammer
Of red and blue, the hard sound −
Steel against intimation − the sharp flash,
The vital, arrogant, fatal, dominant X.

Tesouros do Mar
(Yana Movchan: artista ucraniana)

O Motivo para a Metáfora

Gostas de estar sob as árvores no outono,
Porque tudo está meio morto.
O vento se move como um trôpego entre as folhas
E repete palavras sem sentido.

De mesmo modo, foste feliz na primavera,
Com as meias cores das coisas aos quartos,
O céu levemente mais brilhante, as nuvens dissolvendo,
O pássaro desacompanhado, a lua obscura –

A lua obscura aclarando um mundo obscuro
De coisas nunca suficientemente bem expressas,
Onde jamais foste tu mesmo o bastante
E não o quiseste nem tiveste motivos para sê-lo,

Desejando os regozijos das mudanças:
O motivo para a metáfora, retrocedendo
Ao peso do meio-dia primordial,
O A B C do ser,

A têmpera rubra, o martelar
Do vermelho e do azul, o som intenso –
Aço contra a insinuação – o incisivo clarão,
O vital, arrogante, fatal, dominante X.

Referência:

STEVENS, Wallace. The motive for metaphor. In: UNTERMEYER, Louis (Ed.). Modern american poetry. Mid-Century Edition. 7th printing. New York, NY: Harcourt, Brace and Company, 1950. p. 274.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Sebastián Salazar Bondy - O poeta conhece a Poesia

Bondy, poeta peruano, discursa sobre a natureza da poesia, não daquela que se costuma se apurar à mesa, entre finos doces e aromáticos chás, mas da que perdura turbulenta nas escuridões do espírito, entre solidões e desafios.

A seu ver, estão destratando a poesia, de sorte que ela tem-se mostrado algo inepta, incapaz de dar conta de renovar-se, de propor-se novos rumos, sempre a rastejar pelas mesmas paragens sobre as quais se assenta o pó dos séculos.

J.A.R. – H.C.

Sebastián Salazar Bondy
(1924-1964)

El poeta conoce la Poesía

Permítanme decir que la poesía
es una habitación a oscuras, y permítanme también
que confiese que dentro de ella nos sentimos muy solos,
nos palpamos el cuerpo y lo herimos,
nos quitamos el sombrero y somos estatuas,
nos arrojamos contra las paredes y no las hallamos,
pisamos en agua infinita y aspiramos el olor de la sangre
como si la flor de la vida exhalara en esa soledad
toda su plenitud sin fracasos.

Permítanme, al mismo tiempo, que pregunte
si un peruano, si un fugitivo de la memoria del hombre,
puede sentarse allí como un señor en su jardín,
tomar el té y dar los buenos días a la alegría.
Qué equivocados estamos, entonces, qué pálida
es la idea que tenemos de algo tan ardiente y doloroso.
Porque, para ser justos, es necesario que envolvamos
nuestra ropa,
demos fuego a nuestras bibliotecas,
arrojemos al mar las máquinas felices que resuenan todo
el día,
y vayamos al corazón de esa tumba
para sacar de ahí un polvo de siglos que está olvidado
todavía.

No sé si esto será bueno, pero permítanme que diga
que de otro modo la poesía está resultando un poco tonta.

Café da Manhã no Jardim
(Frederick C. Frieseke: pintor norte-americano)

O poeta conhece a Poesia

Permitam-me dizer que a poesia,
é um quarto às escuras, e permitam-me também
que confesse que dentro dela nos sentimos muito sozinhos,
nos apalpamos o corpo e o ferimos,
nos privamos do chapéu e somos estátuas,
nos lançamos contra as paredes e não as encontramos,
pisamos em água infinita e aspiramos o cheiro do sangue
como se a flor da vida exalasse nessa solidão
toda a sua plenitude sem fracassos.

Permitam-me, ao mesmo tempo, que pergunte
se um peruano, se um fugitivo da memória do homem,
pode sentar-se ali como um senhor em seu jardim,
tomar o chá e dar bons dias à alegria.
Quão equivocados estamos, quão pálida
é a ideia que temos de algo tão ardente e doloroso.
Porque, para sermos justos, é necessário que embrulhemos
nossa roupa,
toquemos fogo em nossas bibliotecas,
atiremos ao mar as máquinas felizes que ressoam todo
o dia,
e sigamos até o coração dessa tumba
para daí retirar um pó de séculos que ainda está esquecido.

Não sei se isso será bom, porém permitam-me que diga
que de outro modo a poesia está resultando um pouco
obtusa.

Referência:

BONDY, Sebastián Salazar. El poeta conoce la poesía. In: BORDA, Juán Gustavo Cobo (Selección, prólogo y notas). Antología de la poesía hispanoamericana. 1. ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 298-299. (Colección Tierra Firme)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Edwin Arlington Robinson - As Colinas Escuras

Um poema que é uma evidente metáfora para as experiências da vida e da morte, com os seus referentes marciais, a par das imagens das colinas ensombradas, cujo perfil se delineia contra o brilho do pôr do sol, esvaindo-se conforme a luz do crepúsculo desaparece.

É a história humana: nossos antepassados viveram as suas lutas e nos legaram este mundo. E dele haveremos de dar conta aos futuros descendentes da espécie, para que, pelejando em suas lidas, possam por aqui encontrar ventura e paz.

J.A.R. – H.C.

Edwin Arlington Robinson
(1869-1935)

The Dark Hills

Dark hills at evening in the west,
Where sunset hovers like a sound
Of golden horns that sang to rest
Old bones of warriors under ground,
Far now from all the bannered ways
Where flash the legions of the sun,
You fade − as if the last of days
Were fading and all wars were done.

Além das Colinas Escuras
(Bob Broadley: artista inglês)

As Colinas Escuras

Colinas escuras ao anoitecer a oeste,
Onde o crepúsculo paira como um som de
Trompas douradas retumbantes a serenar
Velhos ossos de guerreiros sob a terra,
Longe agora de todas as vias embandeiradas
Onde resplendem as legiões do sol,
Você esmaece – como se o derradeiro dia se
Esvaísse e todas as guerras se consumassem.

Referência:

ROBINSON, Edwin Arlington. The dark hills. In: PERRINE, Laurende; REID, James M. (Eds.). 100 american poems of the twentieth century. New York, NY: Harcourt, Brace & World Inc., 1966. p. 22.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Vicente Aleixandre - Para quem escrevo (I)

O poeta revela quem são os destinatários de sua poesia: não uma minoria seleta, como frequentemente ocorria – e ainda ocorre – nos meios literários, aqui como alhures, mas aqueles homens e mulheres comuns do povo, a imensa maioria.

Afinal, todo poeta espera que a sua mensagem atinja um destinatário capaz de capturar a sua essência, porque, de outro modo, a poesia ficará presa nas páginas de um tomo, estática e estéril, sem produzir quaisquer efeitos sobre o mundo!

J.A.R. – H.C.

Vicente Aleixandre
(1898-1984)

Para quién escribo (I)

¿Para quién escribo?, me preguntaba el cronista, el
periodista o simplemente el curioso.

No escribo para el señor de la estirada chaqueta, ni
para su bigote enfadado, ni siquiera para su alzado
índice admonitorio entre las tristes ondas de música.

Tampoco para el carruaje, ni para su ocultada
señora (entre vidrios, como un rayo frío, el brillo de
los impertinentes).

Escribo acaso para los que no me leen. Esa mujer
que corre por la calle como si fuera a abrir las
puertas a la aurora.

O ese viejo que se aduerme en el banco de esa plaza
chiquita, mientras el sol poniente con amor le
toma, le rodea y le deslíe suavemente en sus luces.

Para todos los que no me leen, los que no se cuidan
de mí, pero de mí se cuidan (aunque me ignoren).

Esa niña que al pasar me mira, compañera de mi
aventura, viviendo en el mundo.

Y esa vieja que sentada a su puerta ha visto vida,
paridora de muchas vidas, y manos cansadas.

Escribo para el enamorado; para el que pasó con su
angustia en los ojos; para el que le oyó; para el que al
pasar no miró; para el que finalmente cayó cuando
preguntó y no le oyeron.

Para todos escribo. Para los que no me leen sobre
todo escribo. Uno a uno, y la muchedumbre. Y
para los pechos y para las bocas y para los oídos
donde, sin oírme, está mi palabra.

En: “Em un vasto dominio” (1962)

Velho a Dormitar
(Greg Cartmell: pintor norte-americano)

Para quem escrevo (I)

Para quem escrevo?, perguntava-me o cronista, o
periodista ou simplesmente o curioso.

Não escrevo para o senhor da imodesta jaqueta, nem
para seu enfadado bigode, nem sequer para seu elevado
índice admonitório entre as tristes ondas de música.

Tampouco para a carruagem, nem para a senhora que
nela se oculta (entre vidros, como um raio frio, o brilho
dos impertinentes).

Escrevo acaso para os que não me leem. Essa mulher
que corre pela rua como se fosse abrir as portas à aurora.

Ou esse velho que adormece no banco dessa pequena
praça, enquanto o sol poente toma-o com amor,
rodeia-o e dissolve-o suavemente em suas luzes.

Para todos os que não me leem, os que não se
cuidam de mim, porém de mim se cuidam (ainda que
me ignorem).

Essa menina que me olha ao passar, companheira de
minha aventura, vivendo no mundo.

E essa velha que sentada à sua porta tem visto vida,
paridora de muitas vidas, e mãos cansadas.

Escrevo para o enamorado; para o que passou com sua
angústia nos olhos; para o que o ouviu; para o que ao
passar não olhou; para o que finalmente caiu quando
perguntou e não o ouviram.

Para todos escrevo. Para os que não me leem
sobretudo escrevo. Um a um, e à multidão. E
para os peitos e para as bocas e para os ouvidos
onde, sem ouvir-me, está minha palavra.

Em: “Em um vasto domínio” (1962)

Referência:

ALEIXANDRE, Vicente. Para quién escribo (I). In: VARIOS. Edición, introducción, notas, comentarios y apéndice de Esperanza Ortega. Antología de la generación del 27. Madrid, ES: Anaya, 1987. p. 131-132. (Biblioteca Didáctica Anaya; v. 23)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Adolfo Casais Monteiro - Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

O poeta do Porto tece homenagens ao heterônimo de outro grande poeta, bem assim ao rio que não é propriamente o rio de sua “aldeia” – o Douro –, mas o rio Tejo, tema de um conhecidíssimo poema que também não é de Álvaro de Campos, mas de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”...

O título da ode de Monteiro, de fato, associa-se a outro poema de Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos, a saber, “Ode Marítima”, na qual aflora a imagem de um navio a vapor que, ao longe, adentra o estuário do Tejo, mero ponto de partida para um tributo ao imaginário das aventuras no mar.

J.A.R. – H.C.

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa –
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
“Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!”
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se
sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes,
Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de
glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos
fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença
indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!
O meu mal é não ser dos que trazem a beleza metida
na algibeira
e não precisam de olhar as coisas para as terem.
Quando não estás diante dos meus olhos, estás
sempre longe.
Não te reduzi a uma ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás ausente, estás mesmo ausente dentro
de mim.
Não tenho nada porque só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é um grande abraço em que
tudo é sempre virgem,
porque quando o tenho, é concreto nos braços
fechados sobre a posse.
Não tenho lugar para nenhum cemitério dentro de
mim…
É por isso é que fiquei a pensar como era grave ter
passado sem te olhar, ó Tejo.
Mau sinal, mau sinal, Tejo.
Má hora, Tejo, aquela em que passei sem olhar para
onde estavas.
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
levado nos teus braços,
debruçado sobre a cor profunda das tuas águas,
embriagado do teu vento que varre como um hino
de vitória
as doenças da cidade triste e dos homens
acabrunhados...
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que deve andar de impuro dentro
de mim,
para os meus olhos beberem a tua força de luxo
indomável,
para me lavar do contágio que deve andar a
envenenar-me
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir
à vida,
para que nunca mais, Tejo, os meus olhos possam
voltar-se para outro lado
quando tiverem diante de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que qualquer sonho,
porque é real, concreta, e única!

Lisboa e o Tejo
(Carlos Botelho: pintor português)

Referência:

MONTEIRO, Adolfo Casais. Ode ao Tejo e à memória de Álvaro de Campos. In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea de poesia sobre Lisboa. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 71-73.