Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Fernando Moreira Salles - Navegante

No contingente mundo heraclitiano, tudo são expectativas de mudança para a outra margem do que quer que seja, um tempo de aguardo, experimentado na pele de um navegante que sequer se dispõe a lançar âncoras para estabilizar sua nau, tampouco a perscrutar os céus e os mares à procura de presságios para perigos ou venturas – mesmo porque tais são os elementos que permeiam toda a existência, e infrequentes as miradas de terceiro grau.

 

Nesse estado de distensão, vive-se o fluxo: há tempo suficiente para se contemplar as ondas, desfrutar o vento, apreciar a paisagem, até que um novo amanhecer se descortine no horizonte, trazendo outros matizes, outras “promessas divinas da esperança”, logo sequenciadas por ulteriores perspectivas nesse cenário multíplice.

 

J.A.R. – H.C.

 

Fernando Moreira Salles

(n. 1946)

 

Navegante

 

Hei de aprender a outra margem

F. Alvim

 

hoje

ergo velas

e fixo o lastro

à minha quilha

 

a proa incauta

vou, sem luzes

ao liso horizonte

do amanhecer

 

não largo amarras

desta feita

pois nem sequer

soube atá-las

 

não sei dos astros

pro meu sextante

nem de sereias

por estes mares

 

mas posso, ainda

olhar as ondas

viver o vento

e a espera

 

Sozinho pelo mar

(Ken Wood: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

SALLES, Fernando Moreira. Navegante. In: __________. A chave do mar. Desenhos de Paulo Monteiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010. p. 20.

domingo, 28 de abril de 2024

María Emilia Cornejo - Sou a garota má da história

Não há quem, lendo o título do poema em epígrafe, de autoria da nomeada poetisa peruana, deixe de associá-lo, de algum modo, a certa obra do seu compatriota Mario Vargas Llosa – qual seja, “Travesuras de la niña mala” (“Travessuras da menina má”), de 2006 –, ou mesmo a determinada passagem da composição da dupla Cazuza & Frejat, “Malandragem”, sucesso na voz da cantora Cássia Eller (1962-2001): “rezando baixo pelos cantos / por ser uma menina má”.

 

Mas veja-se lá que o propósito visível de Emilia vai mais além: é desafiar a visão machista acerca do modo de como as mulheres devem se comportar nos relacionamentos – muito em linha com os valores puritanos sobre castidade e sexo –, opondo relato ao contrário do que ocorre com muito mais frequência na sociedade, vale dizer, o homem a trair de forma reiterada a sua companheira.

 

No âmbito da literatura, recordo-me de passagens pungentes do livro “A Letra Escarlate”, de Nathaniel Hawthorne, nas quais a protagonista Hester Prynne é condenada pelo crime de adultério e sentenciada a usar uma ostensiva letra escarlate “A” (de “adulteress”) sobre suas vestes, sendo doravante desprezada pelos seus concidadãos e renegada publicamente.

 

J.A.R. – H.C.

 

María Emilia Cornejo

(1949-1972)

 

Soy la muchacha mala de la historia

 

Soy

la muchacha mala de la historia,

la que fornicó con tres hombres

y le sacó cuernos a su marido.

 

Soy la mujer

que lo engañó cotidianamente

por un miserable plato de lentejas,

la que le quitó lentamente su ropaje de bondad

hasta convertirlo en una piedra

negra y estéril,

soy la mujer que lo castró

con infinitos gestos de ternura

y gemidos falsos en la cama.

 

Soy

la muchacha mala de la historia.

 

Hester Prynne e Pearl no cadafalso

(Ilustração de Mary Hallock Foote

para ‘A Letra Escarlate’)

 

Sou a garota má da história

 

Sou

a garota má da história,

a que fornicou com três homens

e colocou chifres em seu marido.

 

Sou a mulher

que o enganou cotidianamente

por um mísero prato de lentilhas,

a que lhe tirou lentamente a roupagem de bondade

até convertê-lo em uma pedra

negra e estéril,

sou a mulher que o castrou

com infinitos gestos de ternura

e gemidos falsos na cama.

 

Sou

a garota má da história.

 

Referência:

 

CORNEJO, María Emilia. Soy la muchacha mala de la historia / Sou a garota má da história. Tradução de Márcia Marques Marinho Castro. (n.t.) Revista Literária em Tradução. Florianópolis, SC. Edição bilíngue semestral, ano 10, n. 20, 1. vol., jun. 2020. Em espanhol: p. 42; em português: p. 57. Disponível neste endereço. Acesso em: 22 abr. 2024.

sábado, 27 de abril de 2024

José Jorge Letria - Para que se possa salvar a literatura

A crítica ao “império da banalidade” no mercado das obras literárias leva o poeta a sugerir que as personagens deveriam exterminar os autores, a cada vez que se prestassem aos intentos de uma segunda edição, de superexposição e entrevistas na mídia ou, ainda, à sofreguidão por rendimentos em escalas sempre mais e mais crescentes.

 

Por extensão, penso que também valham as percepções do poeta para uma outra situação bastante frequente, a saber, a atinente às sagas intermináveis, a exemplo das que costumam ocupar as telas de cinema – redigidas no mais das vezes por roteiristas, quando não por escritores que se rendem ao serviço da indústria cultural –, que ficam a rolar numa sequência com claros propósitos arrecadatórios.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Jorge Letria

(n. 1951)

 

Para que se possa salvar a literatura

 

Gosto das personagens que morrem

antes do fim das histórias. É a vida.

As que sobrevivem estão condenadas

a um purgatório do qual

nenhuma ficção as resgatará.

As personagens devem ser como os remédios:

devem ter um prazo de validade.

Não gosto que se pergunte:

o que terá acontecido a Bernardo

e a Luísa depois daquele drama?

Há questões que a literatura não pode

nem deve deixar em suspenso. É fatal.

 

Hoje escreve-se já para a segunda edição,

para a cinta que proclama o êxito,

para a entrevista na revista do semanário,

para o império da banalidade.

A sofreguidão do novo leva o mercado

a chamar escritores a alguns transeuntes

que acidentalmente decidiram

fazer da literatura um rendimento fixo,

uma escada em espiral para a glória

dos consultórios de dentista.

 

Nestes casos particulares deviam ser as personagens

a exterminar os autores. Para quê?

Para que se possa ainda salvar a literatura.

 

O Jardim de Armida

(David Teniers, o Jovem: pintor flamengo)

 

Referência:

 

LETRIA, José Jorge. Para que se possa salvar a literatura. In: __________. O livro branco da melancolia. Lisboa, PT: Quetzal Editores, 2001. p. 94-95.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Pablo Neruda - Só a morte

O tom elegíaco tem tudo a ver com o conteúdo deste poema de Neruda, pejado de alusões e metáforas sombrias sobre a morte, esse “almirante” de trajes negros, com amplos poderes para nos apartar do rio da vida, inserindo um ponto final no livro em que inscritas todas as passagens por nós usufruídas e avaliadas como positivas ou significativas.

 

Os versos bem traduzem o quanto de angustiante e de assustador a morte representa para os humanos – tanto mais em razão de que temos consciência de sua inevitabilidade e proximidade –, sendo ela, por isso mesmo, retratada por um amplo espectro de inexoráveis simbolismos (não exatamente os mesmos para aqueles que admitem outros transcendentes domínios, pois que contemplam a morte apenas como uma das portas por onde passa o ciclo da vida).

 

J.A.R. – H.C.

 

Pablo Neruda

(1904-1973)

 

Sólo la muerte

 

Hay cementerios solos,

tumbas llenas de huesos sin sonido,

el corazón pasando un túnel

oscuro, oscuro, oscuro,

como un naufragio hacia adentro nos morimos,

como ahogarnos en el corazón,

como irnos cayendo desde la piel al alma.

 

Hay cadáveres,

hay pies de pegajosa losa fría,

hay la muerte en los huesos,

como un sonido puro,

como un ladrido sin perro,

saliendo de ciertas campanas, de ciertas tumbas,

creciendo en la humedad como el llanto o la lluvia.

 

Yo veo, solo, a veces,

ataúdes a vela

zarpar con difuntos pálidos, con mujeres

de trenzas muertas,

con panaderos blancos como ángeles,

con niñas pensativas casadas con notarios,

ataúdes subiendo el río vertical de los muertos,

el río morado,

hacia arriba, con las velas hinchadas por el sonido

de la muerte,

hinchadas por el sonido silencioso de la muerte.

 

A lo sonoro llega la muerte

como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,

llega a golpear con un anillo sin piedra y sin dedo,

llega a gritar sin boca, sin lengua, sin garganta.

Sin embargo sus pasos suenan

y su vestido suena, callado, como un árbol.

 

Yo no sé, yo conozco poco, yo apenas veo,

pero creo que su canto tiene color de violetas húmedas,

de violetas acostumbradas a la tierra

porque la cara de la muerte es verde,

y la mirada de la muerte es verde,

con la aguda humedad de una hoja de violeta

y su grave color de invierno exasperado.

 

Pero la muerte va también por el mundo vestida

de escoba,

lame el suelo buscando difuntos,

la muerte está en la escoba,

es la lengua de la muerte buscando muertos,

es la aguja de la muerte buscando hilo.

La muerte está en los catres:

en los colchones lentos, en las frazadas negras

vive tendida, y de repente sopla:

sopla un sonido oscuro que hincha sábanas,

y hay camas navegando a un puerto

en donde está esperando, vestida de almirante.

 

En: “Residencia en la tierra II” (1931-1935)

 

A Visita da Morte

(Adolph Menzel: pintor alemão)

 

Só a morte

 

Há cemitérios solitários,

tumbas cheias de ossos sem som,

o coração passando por um túnel

escuro, escuro, escuro,

como se por dentro morrêssemos num naufrágio,

como se afogássemos no coração,

como se caíssemos da pele até a alma.

 

Há cadáveres,

há pés de laje fria e pegajosa,

há a morte nos ossos,

como um som puro,

como um latido sem cão,

saindo de certos sinos, de certos túmulos,

crescendo na umidade como o pranto ou a chuva.

 

Vejo, sozinho, às vezes,

ataúdes a vela

zarparem com defuntos pálidos, com mulheres

de tranças mortas,

com padeiros brancos como anjos,

com meninas pensativas casadas com notários;

ataúdes subindo o rio vertical dos mortos,

o rio purpúreo,

a montante, com as velas inchadas pelo som da morte,

inchadas pelo silencioso som da morte.

 

A morte vem a soar

como um sapato sem pé, com um fato sem homem,

a golpear com um anel sem pedra e sem dedo,

a gritar sem boca, sem língua, sem garganta.

No entanto, seus passos soam

e seu vestido soa, calado, como uma árvore.

 

Não sei, pouco conheço, mal consigo ver,

mas acredito que o seu canto tem a cor de violetas úmidas,

de violetas acostumadas à terra

porque a face da morte é verde,

e o olhar da morte é verde,

com a aguda umidade de uma folha de violeta

e a sua grave cor de inverno exasperado.

 

Mas a morte também percorre o mundo vestida de vassoura,

lambe o chão em busca de defuntos,

a morte está na vassoura,

é a língua da morte em busca de mortos,

é a agulha da morte em busca de fio.

A morte está nos catres:

nos colchões lentos, nas cobertas negras

vive estendida, e de repente sopra:

sopra um som lúgubre que incha os lençóis,

e há leitos navegando a um porto

onde ela os espera, vestida de almirante.

 

Em: “Residência na terra II” (1931-1935)

 

Referência:

 

NERUDA, Pablo. Sólo la muerte. In: __________. Antología poética. Edición de Rafael Alberti. 1. ed. La Plata, AR: Planeta, nov. 1996. p. 69-70. (Ediciones ‘Planeta Bolsillo’)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Rupi Kaur - sotaque

Sendo uma poetisa indiano-canadense, Kaur não sente quaisquer constrangimentos ou inseguranças que possam advir de seu sotaque diferenciado, ao contrário, reafirma o orgulho que dele tem, por representar o encontro entre culturas de dois países distantes – ou como dizem suas próprias palavras: “o que importa se minha boca carrega dois mundos?”

 

É que a maneira como Kaur se expressa acaba por refletir parte do que ela é, e apreciá-la representa a forma de se autoafirmar em equilíbrio: observe-se que a poetisa emprega o termo “offspring” – “descendência” – para equiparar o seu sotaque a uma espécie de rebento tangido por certa singularidade, singularidade essa que bem se congraça às linhas de seu rosto.

 

J.A.R. – H.C.

 

Rupi Kaur

(n. 1992)

 

accent

 

my voice

is the offspring

of two countries colliding

what is there to be ashamed of

if english

and my mother tongue

made love

my voice

is her father’s words

and mother’s accent

what does it matter if

my mouth carries two worlds

 

O cisne

(Hilma af Klint: artista sueca)

 

sotaque

 

minha voz

é o fruto

de dois países num encontro

por que eu teria vergonha

se o inglês

e minha língua-mãe

fizeram amor

minha voz

tem as palavras do pai

e o sotaque da mãe

o que tem de errado

se minha boca leva dois mundos

 

Referências:

 

Em Inglês

 

KAUR, Rupi. accent. In: __________. the sun and her flowers. 1st. ed. New York, N.Y.: Simon & Schuster, 2017. p. 139.

 

Em Português

 

KAUR, Rupi. sotaque. Tradução de Ana Guadalupe. In: __________. o que o sol faz com as flores. Tradução de Ana Guadalupe. 6. ed. São Paulo, SP: Planeta do Brasil, 2018. p. 139.